Esta é a edição de lançamento da Deriva, publicação independente com dois grandes temas centrais: psicanálise e cultura — guarda-chuva no qual pretendemos reunir textos sobre literatura, cinema, filosofia, ciências sociais, artes, entre outros.
No dicionário, a palavra deriva assume diferentes conotações. Destacamos algumas:
1. Desvio do caminho de uma embarcação, causada por ventos ou correntes.
2. Desvio em relação ao estado normal de um aparelho ou instrumento.
3. Ação de derivar, de fluir a partir de.
4. À deriva: ao sabor do acaso.
Todas essas ideias contribuem para a nossa apresentação. A Deriva tem origem na experiência de um projeto editorial anterior, a Confeitaria, embora a partir daqui ganhe vida autônoma.
Permanecer em movimento é o que nos interessa: embora a Deriva seja fruto de um ano de planejamento e trabalho, também foi e será afetada pelo acaso diversas vezes, e queremos abrir espaço para essa interferência.
Quanto à linha editorial, faremos uma breve digressão para antes de delimitá-la: no ensaio Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907), Sigmund Freud escreveu que “os poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer uma vasta gama de coisas entre o ceú e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos permitiu sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, uma vez que se nutrem de fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência”.
Ao longo de toda a sua obra, Freud recorreu principalmente a dois autores: os escritores Johann Wolfgang von Goethe e William Shakespeare funcionaram como bússolas que o guiaram e o iluminaram em todo o seu percurso tanto como clínico quanto como autor.
Em Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916), Freud primeiro reflete sobre alguns personagens shakesperianos emblemáticos, como Ricardo III e Lady MacBeth, para então concluir: “após essa longa digressão pela literatura, retornemos à experiência clínica — mas apenas para estabelecermos em poucas palavras a inteira concordância entre elas”.
A literatura e a arte, de forma geral, nos oferecem um vislumbre da complexidade da condição humana, repensando temas que nos ocupam desde sempre, e que a ciência tradicional, com sua estrutura lógica, nem sempre consegue acompanhar. Nesse sentido, o escritor Milan Kundera argumenta, expandindo o conceito de ciência:
“Aqueles que dizem (…) que o conhecimento é a única moral do romance são traídos pela aura metálica da palavra ‘conhecimento’, comprometida demais por seu vínculo com as ciências. É preciso pois acrescentar: todos os aspectos da existência que o romance descobre, ele os descobre como beleza”.
Nessa mesma ocasião. Kundera esclarece que beleza na arte seria uma “luz subitamente acesa ao jamais-dito”. Pois a arte, como a psicanálise, parece capaz de se aproximar desse espanto e, paradoxalmente, sustentá-lo em sua opacidade.
No romance A insustentável leveza do ser, Kundera dedica um capítulo — As palavras incompreendidas — à diferença de vocabulário entre dois personagens centrais do romance, Sabina e Franz. Nessas páginas, o narrador tenta descrever os desencontros entre ambos a partir de uma espécie de dicionário, que demonstra o quanto uma mesma palavra carrega representações semânticas e afetivas muito diferentes para cada um.
Ao examinar o código existencial de Franz e o de Sabina a partir de alguns temas pontuais (a ideia de mulher, de fidelidade, de traição, de obscuridade, de luz, de beleza, de cemitério, de força, de pátria), o narrador demonstra que cada uma corresponde a um universo diferente no código do outro. No caso dos personagens, essa distância acabou se tornando intransponível.
Esse é um dos grandes dilemas da condição humana: só é possível chegar ao outro, construir uma ponte, se nos submetermos à cultura, isso é, a um código comum que inclui a linguagem. Mas, de outro lado, nunca perdemos nossa relação subjetiva com as palavras, encharcadas de nosso mundo interno.
Em Romeu e Julieta, a personagem de Shakespeare questiona qual seria o significado de um nome, qual seria a força e a autonomia de um mero vocábulo. Esse nome poderia conter o objeto que nomeia, ou o objeto sobreviveria ainda que renomeado?
“[Julieta para Romeu] Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título.”
Seguindo esse caminho, podemos dizer que significante e significado não estão descritos objetivamente em um catálogo universal, mas sim revelados, progressivamente, em contexto, numa relação.
Poderíamos afirmar que a linguagem transita entre o que é íntimo e o que é coletivo, e as duas vivências se somam uma à outra continuamente. A arte e a psicanálise são ferramentas que abrem espapaço para que possamos experimentar hipóteses, em busca de construir pontes que nos permitam estar minimamente juntos.
Essas ideias formam a linha que costurou os diferentes textos publicados nessa primeira edição, a que chamaremos de Prólogo (no teatro grego antigo, o prólogo era a primeira parte da tragédia, na qual se fazia a exposição preliminar da obra). Para as próximas edições, teremos temas específicos — a ideia é que sejam como pequenos mergulhos que nos convidam à reflexão e ao debate.
Nesta edição, a relação entre luz e sombra está presente em todo o conteúdo, a começar pelo tema da tradução literária, que deu ensejo a dois textos: Do copo para o quase-Copo, em que refletimos sobre alguns dilemas contemporâneos da tradução de literatura. Para isso, entrevistamos seis tradutores com diferentes visões do ofício, organizadas pela jornalista Juliana Cunha; e um artigo do tradutor Pedro Sette-Câmara contando um pouco da experiência de ler e traduzir a escritora canadense Alice Munro, laureada com o Nobel de Literatura de 2013.
Em literatura, Cintia Nogueira retorna aos gregos para analisar o romance Destinos e fúrias, de Lauren Groff; Nara Vidal escreve sobre o impacto do reencontro com Elena Ferrante em ensaio sobre o romance Um Amor Incômodo; Victor Heringer nos conta um pouco de sua visão de mundo e de suas experiências literárias; Ana Guadalupe publica um poema inédito; e Flávia Stefani Resende inicia uma seção especial, a Folhetim — a ideia é que a de que seja um romance em construção: cada capítulo funciona como um conto autônomo; ao final, os contos formarão, em conjunto, uma outra história. Cada conto-capítulo será escrito por uma pessoa diferente.
Ainda em literatura, temos Sofia Soter escrevendo sobre o livro Pequenas delicadezas, de Cheryl Strayed, e Emanuela Siqueira contando sobre os cadernos queimados de Elise Cowen e questionando a ausência das mulheres da Geração Beat. Na seção Leituras, alguns convidados compartilham suas indicações de leitura: são cinco listas com dez livros cada e pequenos comentários que acompanham as recomendações.
Já a psicanálise pavimenta o caminho de Eduardo Leonel na escrita de um texto um texto sobre Sampa, de Caetano Veloso, enquanto Luiz Durante pensa sobre redes sociais e jornada do herói em A negação da morte. Em A imitação da rosa, Tatianne Dantas faz uma aproximação entre psicanálise e literatura ao analisar o conto homônimo de Clarice Lispector, e a psicanalista Gabriela Malzyner vai buscar no cinema o material para elaborar o luto da perda de seu analista em um ensaio.
A partir de conceitos das ciências sociais, Daniela Antoniassi aborda o confronto entre diferentes culturas em texto sobre o documentário argentino El etnográfo. No artigo Margens ficcionais, Priscilla Campos aproxima a antropologia da literatura, e Stephanie Borges pensa sobre o imaginário coletivo do “universo masculino” em Máscara e Sofrimento, a partir do documentário The mask you live in.
A relação entre cinema e psicanálise inspirou textos como o ensaio Cinema de recriação, de Miguel Marques, que escreve sobre a visão dos cineastas Sergei Eisenstein e Peter Greenaway, e o artigo de Dalvanira Lima sobre o filme O quarto de Jack, analisado à luz de conceitos lacanianos.
Cinema é um de nossos interesses principais e, por isso, ficamos contentes em publicar resenhas críticas, como a de Aquarius, escrita por Olívia Fraga, e a de Café Society, por Thiago Blumenthal. Também queremos abrir espaço para as séries e minisséries, narrativas breves que ocupam posição de destaque na cultura contemporânea. É o que fazemos com a publicação do texto de Taís Bravo sobre a série Gilmore Girls.
Todos os textos desta edição foram ilustrados pela artista Beatriz Leite, que nos ajudou a construir a linguagem visual da revista. A edição de arte é de Thiago Thomé Marques.
A organização dos textos na primeira página da Deriva tem para nós um sentido editorial, é uma proposta de experiência de leitura. Recomendamos começar pelo ensaio Foi tudo um sonho, de Juliana Cunha, uma espécie de manifesto a favor do spoiler. Assim, estarão avisados: os textos sobre livros, filmes e séries publicados na Deriva estarão repletos deles.
Gostaria de agradecer a todas as autoras e a todos os autores pela participação. Agradeço duplamente a Thiago Thomé Marques, Flávia Stefani Resende e Juliana Cunha pelo apoio editorial.
Boa leitura!
Fabiane Secches
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