Sucumbi à tentação de reencontrar Elena Ferrante. Houve, de minha parte, um pequeno desinteresse, uma vez que sua identidade secreta talvez tenha sido revelada. Como o argumento me pareceu bastante plausível, acabei acreditando que a misteriosa autora italiana seja de fato a tradutora Anita Raja. Nada de errado em dar rosto ao nome, mas é verdade que eu apreciava muito a independência do texto em tempos de autoficção e autores-estrelas.
Mas, mais forte do que eu, Ferrante pulou minha fila de afazeres e leituras mais uma vez e, em dois dias, me preencheu de uma nova história, de novo, surpreendente. Não que seja o seu melhor livro. De tudo que já li, e me falta somente o último da tetralogia napolitana, o romance Dias de Abandono continua sendo para mim a sua obra-prima. Já escrevi sobre o livro, fiz clubes de leitura na Inglaterra, onde vivo, e o discuti exaustivamente. Ainda assim, não me canso de pensar nele, de querer falar mais sobre ele. A mesma força, porém, é encontrada aqui, tanto no tom, na crueza, como na narrativa viciante de seu primeiro livro publicado, L’Amore Molesto (ainda inédito no Brasil, será lançado em breve pela editora Intrínseca).
A dificuldade que tive em avançar nas primeiras páginas foi de ordem pessoal. Feito a narradora, Delia, eu também enterrei a minha mãe, me apoiei nas duas irmãs, não dormi na primeira noite de luto porque minha mãe aparecia no meu quarto, visualizei o cortejo e o enterro com apuro e, como para Delia, os odores daquela experiência ainda não viraram lembrança para mim. A narradora descreve com cruel precisão a dureza que um funeral representa.
A partir daí, o romance nos agarra com o mistério em volta da morte de Amalia, mãe de Delia, novamente dentro de seu ambiente mais familiar e que evoca muito da força narrativa — Nápoles e o dialeto da região, a desordem e o machismo de seus habitantes. Tudo isso é Elena Ferrante sendo Elena Ferrante.
Como faz a autora para não esgotar o tema de violência familiar, doméstica, da falta de polidez, do retrato miserável de distinção de classes abordado em todos os seus livros? Talvez seja mérito da narrativa veemente, fértil, de força incontestável e linguagem enxuta. Talvez seja a riqueza de personagens que, ainda que tão vivos e verossímeis, guardam vestígios do imaginário napolitano. Pensamos em roupas íntimas penduradas nos varais vizinhança afora, pensamos em objetos sendo jogados de janelas como consequência de alguma discussão, pensamos em gritos e fofocas feitas em calçadas. Apesar de alimentar fantasias e cartões postais, a região de Nápoles guarda, talvez orgulhosamente, essas características tão latinas, tão passionais encrustadas na rotina dos seus habitantes.
Em um período que estive lá, recebi bronca por colocar minhas calcinhas para secar no banheiro. Signora Concetta, que sabia quantas vezes na semana eu saía de casa e não voltava, me garantiu que o varal do prédio tinha espaço para as roupas da signorina brasiliana também. Cheguei a bater uma fotografia de uma das minhas peças íntimas ao lado das cuecas do Signor Domenico, marido de Concetta. Pensava sempre na mineirice que aprendi: “roupa suja se lava em casa”. Em Nápoles, roupa íntima se mostra no varal comunitário.
Essa falta de privacidade é o que precisamente permeia o incômodo nas relações e nos encontros pela cidade fundamentados na origem do que Delia, agora fora dali e distanciada, identifica e rejeita. A curiosa vizinha, Signora Risa, o tio Filippo e a própria Amalia, antes de ser encontrada boiando no mar, são personagens que me envergonham e repelem Delia. Como em Dias de Abandono e nos livros da tetralogia, o uso do dialeto representa o reencontro com a origem difícil da personagem, que conseguiu escapar de tal sina e, então distanciada, olha para o tamanho da miséria por onde passou.
L’Amore Molesto é também um livro sobre morte e luto. As ideias propostas por Freud perpassam a ação da história— é com enorme dificuldade que Delia lida com o paradoxo presença X ausência, a memória de quem ela pretende esquecer.
Mais uma vez me confundo com a narrativa e parece que a minha própria dificuldade com a morte da minha mãe foi explicitada no romance. Penso em quantas pessoas me disseram que pareço fisicamente com a minha mãe, quando o que eu almejava era que o rosto dela no meu espelho fosse esquecido. Por muito tempo, evitei a associação. Era, feito a teoria de Freud, necessário matar a mãe para seguir em frente. Amalia assombra Delia exatamente dessa forma, inclusive a semelhança física que dói porque nos surpreende de repente. Nas reações mais espontâneas, encontramos a nossa origem: um pai, uma mãe.
“(…) a tristeza de um filho pela morte do pai não consegue suprimir sua satisfação por ter finalmente conquistado sua liberdade. Em nossa sociedade de hoje, os pais tendem a se agarrar desesperadamente ao que resta de uma potestas patris familias agora tristemente antiquada.” Sigmund Freud
A questão da identidade é mais ampla do que a semelhança física. É preciso deixar de ser órfão, abandonado, para se responsabilizar pela própria solidão como consequência da ordem natural e do intercâmbio entre vida e morte. É a escolha feita por Hamlet, também personagem que existe a partir e apesar da morte do pai.
Delia leva consigo o fantasma de Amalia narrativa adentro, como na aventura caótica na funicular, trem que conheço bem, e que leva consigo toda a desordem que nós latinos somos capazes de causar. Lá dentro, correndo de fantasmas e seguindo outro (Caserta), Delia vê Amalia consigo.
O personagem de Caserta remete a outra recorrência na narrativa de Ferrante. Como em Dias de Abandono há a poverella (pobre coitada), em L’Amore Molesto a figura de Caserta novamente tenta exorcizar misérias que se relacionam com classe, com desajustes emocionais e com a dolorosa revista da origem. Uma figura que me remete ao pulcinella napolitano, também ao malandro, aquele carioca, e ao bobo da corte de Shakespeare e Moliére. É a figura marginal, mas carismática, que consegue driblar regras e burocracias, expondo uma realidade de miséria, suborno e permuta, que espelha a exigência do status quo das classes na província de Nápoles e sua relação com máfia. Caserta é um aproveitador, um vagabundo, um manipulador, um personagem misterioso, que exige da narradora o reencontro com seu passado rejeitado.
O livro pode ser classificado como suspense psicológico. Os telefonemas anônimos, a estranha circunstância do suposto suicídio de Amalia, a procura por Caserta, o encontro com Antonio, a vida sexual de Amalia, que envolve lingeries caras e luxos incompatíveis com a pobreza e os costumes da mãe costureira inserida numa Nápoles abafada. É uma narrativa que dói porque encontra no leitor, mais uma vez, o espelho distorcido no qual nos enxergamos quando estamos diante de livros com a potência que encontramos em Ferrante.
Mais do que um livro sobre morte, L’Amore Molesto é uma tentativa bem sucedida de representar a complexidade do relacionamento entre mãe e filha. As camadas que entrelaçam as identidades e os papéis que Delia e Amalia desempenham são confusos, às vezes se mesclam, se confundem. O vigor da narrativa de Ferrante dá conta, ainda, de expor o tabu dessa relação. Delia, por vezes, detesta Amalia e tudo que ela representa. A mãe vem atrelada ao dialeto, sinônimo da dureza do passado, da violência que Delia quer esquecer e, precisamente por isso, lembra-se tanto.
Apesar da narrativa em primeira pessoa, Delia raras vezes se refere à mãe como tal. Amalia passa a ser chamada pelo seu nome, o que sugere um distanciamento da filha, que vulgariza sua identidade através de um tratamento comum. Mas, contrariamente, remete-nos à importância daquela mulher que foi única porque teve um nome, foi além de mãe: Amalia.
Uma das únicas vezes que Delia se refere à Amalia como mãe é no impactinício da narrativa. Como em Dias de Abandono, que começa pelo ápice da crise da protagonista, em L’Amore Molesto, a autora nos coloca em estado de alerta logo na primeira linha, quando nos insere no olho do furacão. A má notícia dá o tom imediato do drama que seguirá:
“Minha mãe se afogou na noite de 23 de maio, meu aniversário”
O papel masculino mais uma vez é retratado vigorosamente, com dureza determinante. Talvez com a exceção de Caserta, que representa a imoralidade e os negócios escusos dos pulcinellas de Nápoles, Ferrante deixa os papéis masculinos em segundo plano e as relações femininas, aqui entre mãe e filha, em primeiro. São, não obstante, papéis impregnados pelo machismo, que atormenta e persegue o olhar de Delia sobre Nápoles, sobre a casa onde cresceu e os lugares que revisita. Os homens não têm o mesmo grau de complexidade do que suas personagens femininas, o que me parece intencional. Isso, sem dúvida, marca o trabalho da autora.
Com a morte da mãe e a referência à culpa, inevitável nessa relação, mais uma vez Elena Ferrante aperta a ferida. No meu caso, uma ferida de nervo exposto, sempre à vista, sempre dolorida, da qual me lembro diariamente de esquecer.
Texto de Nara Vidal
Ilustração de Beatriz Leite
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