Café Society (2016) talvez seja o melhor dos piores filmes de Woody Allen, o que não é pouca coisa se levarmos em conta a extensa filmografia do diretor que não se cansa de filmar, mesmo com a velhice e as dificuldades que a mesma lhe causam, tema este que Woody já levantou em algumas entrevistas nos últimos anos. O que gera a pergunta que incomoda a todo artista: até quando? Seu último lançamento, Café Society, é um belo filme, apesar de estar em uma terceira categoria de seus longas.
Costumo dividir os filmes de Woody Allen em três categorias: os muito bons, os excelentes, e os extraordinários. Não é coisa de fã, embora, claro, eu o seja. Mas sou fã de outros diretores, de autores da literatura, de algumas bandas e artistas, e posso apontar um outro livro ou disco, ou filme, que acho absolutamente um erro em suas obras. Não é o caso aqui. Esclarecendo: os muito bons possuem alguns tantos defeitos, a meu ver, mas me divertem, e têm algum nível mínimo de profundidade que me fazem pensar, nem que seja sobre mim mesmo; Setembro e este Café Society são alguns exemplos. Excelentes: Meia-Noite em Paris ou Desconstruindo Harry, por exemplo. Extraordinários: longa lista, que vai de Hannah e Suas Irmãs a Annie Hall, passando por Zelig, o meu preferido, que eu acho uma verdadeira obra-prima.
Pois que falemos de Café Society. Notei que a história bem poderia ser uma história curta do autor americano F. Scott Fitzgerald, não só pela época, por seus tipos que são ali representados, pelo enredo, pelas tramas que se enroscam em torno da história principal e criam pequenos pontos de tensão ou de humor, tudo isso, mas principalmente, pela voz em off, que de tempos em tempos, intervém no filme para contar-nos algo além do que se é mostrado ou, então, deixar algo como pista, como no caso do misterioso “namorado” de Vonnie (interpretada por Kristen Stewart). É das técnicas preferidas de Fitzgerald, especialmente em seus contos, ou, quando nos romances, em fechamentos de capítulos. Foi muito perceptível ouvir aquela voz em off e ser transportado para uma história do autor do Grande Gatsby. Se tivessem me dito que o roteiro era dele e não do próprio Woody, eu teria acreditado. Mérito do diretor, demérito meu?
O recurso da voz em off tem sido muito utilizado pelo diretor nos últimos anos, algumas vezes com sucesso, o que denota que tal estratégia depende muito do tipo de história que se conta e principalmente do que vai se contar ali com aquela voz que de repente vai invadir a tela e não será dita por nenhum personagem, mas sim por um narrador clássico, vindo de um perfil mais “literário”. Em Café Society o acerto é total, pois a técnica não soa exagerada, o timing é perfeito, encaixa-se bem em todos os momentos, não invade a cena, nem quebra a expectativa do espectador, adiantando-a ou frustrando-a, soa bastante fitzgeraldiana. Com os vaivéns do enredo, que não são poucos, principalmente com as tramas em torno do protagonista Bobby (Jesse Eisenberg) e sua típica família judia nova-iorquina cheia de problemas, como o gângster a outro big shot de um estúdio em Hollywood (que vai se revelar uma espécie de interessante antagonista), e uma mãe superprotetora caricata que resmunga em iídiche, o diretor amarra todas as situações de uma maneira sutil e bastante coesa, o que prende a atenção do espectador e fixa nossa atenção a detalhes que muitas vezes estão acontecendo fora do plano central do palco, como no teatro moderno (e na literatura moderna, onde os eventos à margem submetem os protagonistas a seus destinos). Essa é uma das maiores riquezas de Café Society.
Qualquer caricatura, principalmente a judaica, nunca é gratuita, e quando não servem para sustentar um humor de complexidade sempre maior do que a que se mostra, sugerem até certa melancolia. Uma dor que não se conta, ou se conta através do riso – vide o diálogo de Bobby com Veronica (Blake Lively) na noite em que se conhecem, que chega a mimetizar o diálogo de Annie Hall com Alvy Singer, no terraço do apartamento dela, sobre judeus. Tal qual Annie, Veronica vê os judeus como “amusing and exotic”, é o mesmo discurso. Nós, os judeus, poderíamos até ter chifres, vejam só. Bobby, neste ponto do filme, não é mais tão desajeitado como era no começo da história e lida com a situação com bom humor. Já Alvy Singer, bem sabemos, fica sem graça, não tem muito o que dizer.
É uma situação clássica. Nós, exóticos, misteriosos, inteligentes, o que raios Freud teria dito de nós? Veronica diz que lá na cidade de onde veio, sabe-se lá qual, não havia judeus, e Bobby é o primeiro que conhece na vida dela. Por que somos assim tão “pushy”?, ela lhe pergunta em outro momento. A pergunta que fica no ar, para um rapaz que não é lá nenhum Alain Delon e ousa convidar uma Blake Lively para um bar de jazz às 2 da manhã é “por que vocês gostam de garotas tão bonitas se nem são tão bonitos assim?”. Por que o tio Phil Stern fica com a Lolita do filme (quem viu sabe quem) se é mais velho, acabado, tosco, de certo modo?
Woody Allen estaria nos provocando, dado o contexto de sua vida pessoal? O que Freud disse sobre nós, judeus, além de que nos odiamos tanto a nós mesmos? Fitzgerald não tratou disso em nenhum de seus romances ou contos, mas quem sabe Woody Allen esteja tentando.
Texto de Thiago Blumenthal
Ilustração de Beatriz Leite
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