É uma verdade universalmente conhecida na internet que propagadores de spoiler merecem uma morte lenta e saborosa, quem sabe cozidos em banho-maria no sangue da última pessoa que ousou mudar de ideia.
Difícil pensar em uma coisa que traga mais consenso, mais senso de comunidade e uma revolta mais morninha e confortável do que a crença de que revelar partes importantes de uma trama — quer seja televisiva, literária ou cinematográfica — consiste em uma espécie de crime contra o prazer de quem ainda não terminou aquela história.
Quem dera fosse apenas o de quem ainda não terminou uma história que está se desenrolando aqui e agora. É preciso preservar também o prazer de quem sequer começou, de quem não sabe se um dia vai começar, de quem não tem planos concretos, de quem declaradamente não vai. Aos poucos, ganha terreno a ideia de que cada vez mais aspectos de uma trama são importantes e, portanto, spoilers. Resenhas e até críticas são reduzidas a sinopses alongadas que nada podem concluir ou revelar. Vai se formando a noção de que o direito à surpresa deve ser mantido não apenas no campo da ficção, mas também do jornalismo, da vida em geral.
Durante a Olimpíada de 2016, por exemplo, quando os jogos eram transmitidos por gravações na tevê americana, veículos como a NPR adotaram “alertas de spoiler” para notícias. Ao abrir o site da NPR ou sua página no Facebook, você veria chamadas que excluíam a informação factual (quem ganhou, como foi o jogo) em respeito àqueles que ainda não tinham visto a partida. Os anúncios de spoiler foram comemorados por um público que sentia que esse sim era um veículo que o respeitava. Foi um caso de uma ação caça-cliques entendida como um favor ao leitor.
Assistir a qualquer coisa ao vivo tem um valor em si, uma camada de emoção que não pode ser reproduzida numa gravação, ainda que recente. Você e os atletas, o bairro e todo mundo estão, senão no mesmo espaço, ao menos no mesmo minuto, na mesma página. É uma comunhão possível. Mas qual o sentido de não saber o resultado para preservar o prazer de uma gravação? Me parece um caso em que o fetiche do spoiler se sobrepôs a um fetiche às vezes chamado de jornalismo.
O caso da transmissão da Olimpíada nos EUA foi um fenômeno interessante porque um único canal detinha o direito de exibição dos jogos no país. Esse canal decidiu exibir gravações para acomodar melhor as coisas em sua programação (spoiler: para ganhar mais dinheiro). O efeito que se criou foi o de uma bolha. Ali dentro, naquele pequeno país que são os Estados Unidos, os jogos aconteciam em um horário diferente. Eles efetivamente aconteciam em outro horário. Eles só podiam acontecer em outro horário porque os Estados Unidos são uma grande ilha. Fosse no Brasil, isso talvez não se repetiria. Não se repetiria porque nosso interesse por notícias, pessoas e produtos estrangeiros é outro. Porque somos mais permeáveis. Nos Estados Unidos, no entanto, a NBC conseguiu fazer os jogos acontecerem no horário que bem entendia. Ela conseguiu ajustar o tempo cá — pressionando para que as competições de maior sucesso nos Estados Unidos fossem alocadas em horários que não faziam sentido no país que sediava os jogos, para o público concreto desses jogos — e lá, transmitindo gravações protegidas por alertas de spoilers na imprensa nacional. Puf, eles mudaram o tempo dos jogos.
Com um orçamento mais modesto, mas com grande convicção, os pequenos censores do spoiler também tentam mudar o tempo dos seriados, dos filmes, dos livros, criando o sonho de um presente eterno em que eu possa começar hoje a assistir uma série amplamente vista e comentada em 2007 — digamos, Mad Men — sem saber o que aconteceu. No dia em que esse sonho se concretizar, eu estarei, dizem eles, sendo completamente respeitada no meu direito de consumidora tardia de produtos culturais descartáveis.
Para que isso seja possível, as discussões públicas sobre uma obra precisam ser abafadas. A única graça que esses produtos comerciais que consumimos pode ter, a única coisa que esses produtos que no melhor dos casos são diluições infinitesimais de algo que um dia foi bom podem trazer, que é a discussão coletiva, recebe a amarra do spoiler como um pacto de não agressão entre consumidores passados e futuros. Qualquer discussão, análise, ponderação passa a ser calada em um “por favor, vejam”. De um possível analista, o público passa a ser um mero divulgador do que consome.
A lógica do spoiler estabelece que a fruição de uma obra estaria na surpresa individual com o rumo dos acontecimentos. História boa seria aquela que me surpreendesse, que trouxesse um encaminhamento inesperado para os conflitos apresentados. Mas história boa, por outro lado, seria aquela verossímil, então você precisa me surpreender, porém sendo extremamente verossímil. No limite, são expectativas contraditórias. Puxando demais a sardinha para a surpresa você vai parar na ilha de Lost, onde tudo pode acontecer, inclusive qualquer coisa.
Isso porque se você me inseriu em um universo ficcional coerente, me apresentou os conflitos, me ambientou ali, é possível que eu consiga prever resoluções verossímeis. Porque resoluções verossímeis seriam progressões lógicas. Um dos princípios do drama burguês é justamente isso, a concatenação de acontecimentos: uma cena puxa a outra, como se houvesse ali um imperativo lógico, e não uma mão invisível fazendo dos personagens o que bem entendesse.
Na minha adolescência, filme bom, bom mesmo, era o que conseguia atar esses dois nós. Surpreender sem nocautear a verossimilhança interna. Pense em Efeito Borboleta, ou em O Sexto Sentido. Eram roteiros espertos. Eram obras que você pode matar, enterrar e jogar a última pá de cal no segundo em que desvendar o mistério. Porque não tem mais nada ali. Os filmes são um grande nada com um e aí sacou? no fim. A pessoa que disser que eu estraguei O Sexto Sentido ao contar o fim estará completamente correta. A pergunta é se um filme que pode ser estragado com uma frase merece ser preservado.
Mas no caso de obras (mesmo as rebaixadas, comerciais, dramáticas e vazias) que tiverem um fiapo a mais do que O Sexto Sentido, qual seria o trauma? Burlar a ditadura do spoiler é dizer que a fruição de uma obra pode estar em outra coisa que não seja o enredo básico, o argumento.
Existem muitas formas de fruir uma obra que não incluem a surpresa do fim. Quando o público ia assistir a uma tragédia grega, por exemplo, ele muitas vezes já conhecia a história de cabo a rabo, ou no mínimo sabia o básico, os fatos principais. Na peça Agamenon, de Ésquilo, por exemplo, Clitemnestra mata o marido, enquanto em outras versões é o amante dela quem mata, ela é apenas a cúmplice, ou a mandante. Seria, no entanto, inconcebível sentar para assistir a uma versão de Agamenon em que o próprio Agamenon não morresse, mas saísse de lá sobre duas pernas berrando “por essa vocês não esperavam” ou “foi tudo um sonho”.
Isso porque a graça de uma peça não estava na tensão dramática, em não saber o que vai acontecer em seguida, e sim nas emoções suscitadas e no debate em torno da história. É por isso que o “clímax” da tragédia, por assim dizer, que a liberação da tensão dramática, acontecia muito antes do que o clímax de um drama burguês. Para o espectador do drama burguês, o clímax resolve todos os mistérios da trama, fecha a conta e passa a régua.
Já na tragédia grega, o ápice de tensão era o momento em que os personagens se tornavam conscientes da natureza dos acontecimentos, que se reconheciam, que entendiam seu lugar no mundo. Édipo compreendia que o assassino que ele buscava era ele próprio. Nesse momento, o véu da ironia dramática era subitamente retirado. Ou seja, o público deixava de saber mais do que os personagens (tem essa: nas peças gregas a ignorância muitas vezes estava no personagem. Era ele quem ia se surpreender, não o público).
Depois disso tinha: todo o resto. O embate de emoções que isso causava, o debate. Conte para o coleguinha que Édipo mata o pai e casa com a mãe e você terá retirado um total de nenhum prazer dele em assistir a Édipo Tirano. Mas se contar para o próprio Édipo quem são seu pai e sua mãe, capaz de não ter história.
Concedo que dos festivais gregos para cá alguma água já rolou, mas do drama burguês para cá inúmeras águas rolaram, inclusive a do meu pranto. É verdade que grande parte das obras que vemos e lemos hoje ainda é dramática e, portanto, depende ou pelo menos se beneficia amplamente de um “pela mãe do guarda”. Não estou dizendo aqui que quem reclama de spoiler não sabe consumir essas obras. Pelo contrário: é justamente por entenderem a fragilidade do prazer trazido por essas obras que as pessoas se armam contra o spoiler.
Mas vamos comer esse M&M’s de garfo e faca. Vamos colocar o guardanapo no colo. É isso que fazemos ao nos recusarmos a fugir de spoilers em favor de uma discussão pública sobre uma obra. Sobre obras que, bem ou mal, são o nosso repertório coletivo atual. Vamos observar as notas de carvalho dessa Coca-cola, vamos deixar o Dolly respirar e vamos esperar que, meus sais, algo melhor seja servido.
Texto de Juliana Cunha
Ilustração de Beatriz Leite
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