Estamos a salvo, ao menos de nossa onipotência.
A experiência da quarentena me remeteu aos meus estudos sobre o Holocausto. O primeiro livro que me veio à mente foi O coração informado: autonomia na era da massificação (1985), do psicólogo judeu Bruno Bettelheim. Sugiro fortemente sua leitura; que possamos nos reconhecer como seres ativos e criativos, em tempos de exceção, é um recurso fundamental para sobrevivência, não apenas física, mas também — e fundamentalmente —sobrevivência psíquica.
Bettelheim apresenta ao leitor sua experiência nos campos de concentração nazista, nos conta como fez para se manter ativo e reflexivo, mesmo quando o objetivo era o de despersonalizar o sujeito. Na Alemanha nazista, desprover de seus bens materiais e afetivos era parte estratégica da perda daquilo que unifica o sujeito como ser — sua “identidade”.
Estamos diante de um cenário de isolamento, de incertezas, medos e angústias, mas também da possibilidade de reconhecermos quem somos, o que dá sentido às nossas escolhas, aos nossos desejos e aos nossos atos.
Recordei-me também de outro livro que teve impacto profundo em minha vida — Modernidade e Holocausto (1989), do sociólogo Zygmunt Bauman. Nele, Bauman nos apresenta a uma sociedade burocratizada e, exatamente por isso, capaz de cometer as maiores atrocidades que a humanidade já testemunhou. Ele nos convoca a olhar para a burocratização das relações, burocratização das experiências de escolha. Afirma que desresponsabilizar-se pelos seus atos e apenas seguir ordens é o que tornou possível esses assassinatos em massa. Pessoas ligavam as câmeras de gás e até mesmo ateavam fogo em estabelecimentos lotados de outras pessoas, e o faziam muitas vezes por seguirem ordens. Sem implicação, o humano se conduz à ruína.
Hoje, vemos alguns dirigentes afirmarem que o isolamento social é apenas “ficção científica”. Diferenças à parte, é importante pensar que segui-los também é letal, como foi letal abrir a manivela que infiltrava gás tóxico às câmeras de gás em Auszhwits, Birkenau e outros tantos.
Para além dos tempos de guerra, esse novo tempo é também passível de esperança. Falamos tanto do de “atenção plena”, de estarmos presentes no aqui e no agora, de vivermos com inteireza, resistindo à aceleração da modernidade, e eis que aqui estamos. Somos obrigados a viver o dia a dia.
Obrigados a lidar com o frustração de planos e com a imprevisibilidade do futuro, o que é assustador, mas também libertador. Liberta nosso sentimento de onipotência, liberta nossas fantasias mais infantis e narcísistas de que seguiríamos sendo “Sua majestade, o bebê”, como propôs Freud. Com isso, poderíamos ganhar autonomia, sabedoria, maturidade. Maturidade tão ansiada e desejada, mas que vem carregada de responsabilidades. Respeito, ética, empatia.
Temos a possibilidade de cuidarmos de nós e daqueles que amamos. Temos a possibilidade de nos reconhecermos frente à universalidade dos eventos, ganhamos a noção de que o planeta é composto por muitos, mas também é um. Temos então a possibilidade de compreender que aquilo que afeta o outro afeta a nós mesmos. E então o Velho Testamento se faz presente: “Quem salva o homem [ser humano], salva a humanidade”. Vejam só, mais uma vez o Pequeno Príncipe nos ensina de forma singela aquilo que é relevante à vida:
“— E você? Acha que as flores…
— Que flores que nada! Não acho nada! Respondi qualquer coisa. Estou ocupado com coisas sérias!
Ele me olhou estupefato.
— Coisas sérias?
Ele me via, de martelo na mão e os dedos pretos de graxa, curvado sobre um objeto que lhe parecia muito feio.
— Você fala como os adultos!
Aquilo me deixou um pouco envergonhado. Mas impiedoso, ele acrescentou:
— Você confunde tudo… mistura tudo!
Ele estava realmente irritado. Agitava ao vento os cabelos muito dourados:
— Conheço um planeta onde há um senhor cor de carmim. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou ninguém. Nunca fez nada além de contas. E o dia inteiro ele repete como você: ‘Sou um homem sério! Sou um homem sério! E se sente cheio de orgulho. Mas isso não é um homem, é um cogumelo!’.“
Abandonar nossa onipotência é reconhecer que não há equação que antecipe a experiência de estarmos vivos. A natureza nos conta de suas estações, do seu tempo e do seu ritmo. Que possamos ter sabedoria e maturidade para contemplá-la, com responsabilidade, sem perder a liberdade de pensamento da criança que fomos um dia e que também continuamos a ser por toda a vida.
Gabriela Malzyner é psicanalista e professora, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Imagem: aquarela de Antoine de Saint-Exupéry para o livro ‘O pequeno príncipe’ (1943).
0 Comments