Adolfo Bioy Casares (1914-1999) pertence à geração de escritores fundamentais da literatura argentina. Ao lado de Jorge Luis Borges, de Macedônio Fernandes e do uruguaio Felisberto Fernández lançou as bases do realismo fantástico, que se consagrou na escola latino americana por Gabriel Garcia Marques, Julio Cortázar e o brasileiro J.J. Veiga.
Dois traços do surrealismo europeu são importados e reformulados pela literatura descomunal: a indeterminação da relação com a realidade e a invenção de uma nova forma de amor. O romance Nadja (1928), de André Breton, decisivo para a formação da psicanálise de Jacque Lacan, é um exemplo maior do cruzamento destas duas exigências, pois nele misturam-se pessoas e lugares reais com a aparição de uma mulher cuja existência é suspeita.
A grande novidade do realismo mágico sul-americano, comparado ao surrealismo francês, é a infiltração da violência e o diálogo com os estados de segregação e de opressão política. Enquanto os surrealistas franceses, inspirados no marxismo institucional dos anos 1930 e 1940, criavam pontos de heterogeneidade e estranhamento em uma realidade social excessivamente confiante, coerente e organizada, seus análogos latino- americanos precisavam extrair efeitos de perturbação estética, diante de uma realidade social por si só explicitamente louca, arbitrária e incoerente, daí a redução do contrassenso a elementos estratégicos da trama.
Enquanto os dadaístas e surrealistas denunciavam o sofrimento de determinação, baseado no excesso de experiências de conformidade, adequação e subserviência, o realismo mágico de Cortázar trabalhava sobre como certas experiências de indeterminação podem ser cruciais para a economia do sofrimento. Enquanto os europeus tinham a construção por horizonte, os latino-americanos queriam saber como pode ser possível viver entre escombros de uma civilização que nunca aconteceu. Essa mistura entre guerra e doença, tão frequente em Garcia Marques, é um ótimo modelo para pensar nosso estado de exceção permanente e de como ele inspira tão facilmente a exceção da exceção.
O cenário atual de convergência entre crise política e pandemia à brasileira faz emergir, de forma aguda, a alternativa obscena entre uma biopolítica, que faz o estado adquirir cada vez mais poderes sobre a administração e controle sobre a circulação dos corpos, e a necropolítica, como regime mais ou menos ostensivo do “deixar morrer”, da lentificação programada dos recursos de proteção e da leniência negacionista do perigo emergente. Estando a população idosa mais vulnerável a este contexto, nos parece oportuno recuperar o livro de Bioy Casares, Diário da guerra do porco — publicado no Brasil pela editora Cosac Naify em 2010, como iluminura e alegoria do momento.
Diário da guerra do porco, escrito em 1968, exagera uma pergunta incômoda para o universo capitalista: afinal para que servem os velhos —pergunta que trabalha com o que a psicanálise chama de mal-estar, que não deve ser nomeado e que funciona como premissa tácita para que a ordem social mantenha-se como tal.
Se entendemos que a terceira idade é um estado de interrupção da vida laboral, que apenas onera o resto “produtivo” de nossa sociedade, que deve arcar com os custos de manutenção e saúde, progressivamente elevados, sem reverter em efetiva agregação de valor, por que mesmo ela tem direito à existência? Lembremos que foi este tipo de raciocínio que deu origem às práticas de eliminação de doentes terminais e de crianças deficientes durante o nazismo.
A questão de fundo para Casares é justamente o sentido do “inútil” e o destino nos aparece “irracional” do ponto de vista da produtividade. A situação é semelhante ao Cortázar do conto “A autoestrada do Sul”, na qual, subitamente, o trânsito de uma estrada se vê paralisado e, a partir de então, uma nova forma de vida se desenvolve, com crianças nascendo e pessoas morrendo dentro dos carros-casas, sem que nenhuma pergunta direta seja feita pelos personagens. Também o romance Sombras de reis barbudos, de J.J. Veiga, na qual uma cidade é subitamente invadida por muros que restringem a movimentação e determinam os caminhos possíveis da vida das pessoas, insere-se nesta problemática do impossível ao qual somos levados pela exageração de premissas que parecem obviamente corretas, mas das quais não nos apropriamos de suas consequências mórbidas:
O enredo de Diário da guerra do porco é relativamente simples. Quatro amigos — Jimi, Arévalo, Rey e Vidal — que vivem em um cortiço de Buenos Aires começam a perceber a existência de uma guerra promovida pelos jovens contra os velhos A fidelidade entre eles começa a se dissipar quando são atacados sem piedade ou resistência e uma suposta justificação científica: “Há estudiosos. Por trás de tudo isso há muitos médicos. Muitos sociólogos, muitos planejadores. No mais estrito sigilo eu lhe digo: há também gente da Igreja.”
O texto cria uma experiência de mal-estar no leitor ao mostrar a ascensão social da lógica da indiferença e da segregação, por meio da exageração da “normalidade” dos personagens.
“— A velha dos gatos —assentiu Rey. — De que podiam acusá-la? Da extravagância de alimentar gatos. Pois então, ontem, sem mais nem menos, na esquina da casa dela, um bando de moleques a matou a pancadas, diante de resignados transeuntes.
— E dos gatos — acrescentou Jimi, que não tolerava por muito tempo tristezas.
— Farejavam o cadáver — precisou Rey.“
O conflito de gerações e a velhice como símbolo da finitude. A “guerra” silenciosa entre velhos e jovens é explicitada no plano da ação, mas impensada no plano de seus fundamentos. Elementos mágicos, algumas vezes intuitivos, nunca são explicados, segundo a tese de que a violência advém no lugar no qual a palavra se torna impronunciável, como uma espécie de mal-estar com denúncia da desagradável verdade. A agressividade entre gerações pode ser disfarçada por meio do que a psicanálise chama de formação reativa, ou seja, um exagero da atitude em sentido contrário de nossos sentimentos. Exagero feito exatamente para deformarmos nossos sentimentos hostis. Presença do sensorial como parte da percepção da realidade. São exemplos disso a admiração exagerada, mas também a pena e a imputação de culpa à própria pessoa: “Alguns velhos não se cuidam nem um pouco. Eu diria que eles provocam.”
A negação das transformações do corpo e o temor do desamparo e da morte na velhice surgem, assim como a negação do envelhecimento por aquele que o vive e, principalmente, por aquele que se identifica com o ideal da eterna juventude. A negação torna-se assim a atitude capaz de encobrir e proteger o velho dos efeitos de seu próprio envelhecimento. Faz parte disso a negação da sexualidade na terceira idade. Variação da crença neurótica de que o único desejo dos pais é se reunirem para cuidar dos filhos: “— Velhos que se metem com mulheres são um triste espetáculo”.
A ambivalência que cerca o processo de envelhecimento e a sua alegoria social a torna o suporte perfeito para a ilusão de que “velho é sempre o outro”. É assim que a velhice vira sinônimo de inadaptação à passagem do tempo, desatualização e inutilidade. Cruelmente, nossa represália aos que lutam para fugir deste destino retrata nosso ódio ao destino que não queremos aceitar e àqueles que o representam, ainda que involuntariamente: “Quer que e explique minhas dúvidas? — perguntou Dante. — Há pessoas que sentem repugnância e se enfurecem com o cabelo grisalho; por outro lado, há outros que sentem raiva é de um velho de cabelo pintado.”
A presença da locução adversativa “por outro lado” nos faz pensar que a frase vai se opor aos se enfurecem com a velhice. Contudo, o que encontramos na conclusão é apenas uma evolução qualitativa da raiva, de tal forma que “há os que sentem fúria e por outro lado os que sentem raiva”. Ali onde esperamos contradição ela não acontece, o que redunda em uma mensagem trágica: “há aqueles que deixam o cabelo grisalho e os que pintam o cabelo, mas o efeito é o mesmo”. Há os que lutam contra o envelhecimento e os que se entregam a ele, mas ambos são objeto de escárnio de maldizer social.
Negação, formação reativa, mal-estar e agressividade incidem sobre o próprio sujeito que maltrata seu processo de envelhecimento, que nada quer saber sobre isso: “Descobriram que nenhum velho se considera velho”.
A inversão entre os que um dia foram cuidados e que um dia serão os cuidadores torna-se o objeto crucial do que precisa ser excluído da realidade para que ela possa tornar-se mais e mais consistente. O ajuste de contas entre gerações não deixa de ser potencialmente agressivo, iluminando assim como o ódio a velhice é a atitude complementar da idealização da juventude.
Por isso, no centro do romance está a reviravolta de afetos entre pais e filhos. Nela, os pais se vingam uma vez mais dos filhos mal agradecidos que lhes viraram as costas. O egoísmo projetado dos jovens sobre os velhos, a desexualização e deshumanização da velhice não soa como uma vingança pela má educação recebida, nem pelo déficit de afeto, que sempre remanesce entre pais e filhos, mas como fragmento traumático e insuportável, que nega e, ao mesmo, é condição de possibilidade para nossa ilusão de plenipotência de uma humanidade produtiva e sexuada: “— Todo velho se transforma em animal“.
O livro não permanece atual apenas pela ironia acerca da inutilidade da velhice em tempos de neoliberalismo, mas porque nos alerta, como a recente vitória do Brexit na Inglaterra, da emergência de regimes autoritários na Hungria de Orbán, da Turquia de Ordogan, nos Estados Unidos de Trump, de que há outra verdade no interior da verdade produtivista e neoliberal. Verdade que diz respeito ao caráter patrimonialista e cristão do capitalismo na qual ela se insere.
Patrimonialista, porque conforme a análise de Thomas Piketty em O capital no século XXI, a riqueza nos últimos dois séculos acumula-se mais pela herança do que pelo trabalho ou pelo talento. Cristão, porque isso nos remete a um tipo de justiça já anunciado no Novo Testamento segundo Mateus: “Quem muito tem mais lhe será dado, quem pouco tem, mesmo este pouco lhes será tirado”. Versão premonitória do neopentecostalismo baseado na teologia da prosperidade, que floresce em solo brasileiro. Ou seja, em uma autêntica reversão dialética, os autênticos jovens bem sucedidos geralmente o são à custa de heranças e benefícios espoliados. Espoliação que precisa ser esquecida, nem que seja pelo recurso à violência e ressentimento para com os velhos.
A reversão final do livro é a lição que precisamos aprender: os velhos têm desejos e desejos que envelhecem nem por isso perdem força. Além da biopolítica e da necropolítica, há a oniropolítica como retomada na linguagem da história dos desejos desejados.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Imagem: “An old man with beard”, de Rembrandt van Rijn.
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