Das coisas caídas: ‘O imponderável Bento contra o crioulo voador’, de Joaquim Pedro de Andrade
Se muitas vezes parece impossível ter uma relação com o passado sem desistir de querer compreendê-lo perfeitamente, ou de desejar que ele explique o presente em uma relação causal, talvez um gesto que possamos fazer, para tentar vê-lo sob um prisma novo, seja para trás. E para o chão, lugar das coisas caídas. Talvez seja possível que nelas, através delas, possamos, afinal, nos apropriar de uma reminiscência.
Quando nos deparamos com um passado como o nosso, é menos uma imagem exata que se tem do que as ressonâncias que ele produz para o lugar em que nos situamos, agora. A política de esquecimento (uso aqui propositadamente a palavra esquecimento no lugar da palavra memória) brasileira em relação a seu passado é uma dessas ressonâncias, que chega até nós. A ideia de país do futuro (e nunca do presente) é a ideologia que afirma que há somente uma direção para olhar: para frente. Assim, seguimos não falando de nossa colonização violenta, da escravidão, dos assassinados e desaparecidos em duas longas ditaduras. A ditadura de 1964 especificamente, tantas vezes tida como “ditadura suave”, nos deixou um legado pesado: “a naturalização da violência como grave sintoma social no país” (O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 124).
O final dos anos 1960 também foi um momento de forte transição política, cultural e estética no Brasil. O desejo de ruptura com um regime de contemplação acrítica, ou de consumo das imagens, propiciaram uma ruptura com a superfície da tela. Assim, tendo promovido uma espécie de revolução na linguagem cinematográfica brasileira, o Cinema Novo marcou uma transformação profunda no cinema nacional. Havia uma inquietação entre os cineastas brasileiros para redescobrir (ou descobrir, afinal) um lugar para o cinema em um país com tamanhas complexidades sociais e históricas.
O cinema de Joaquim Pedro de Andrade chama atenção por sua insistência em querer dar a ver as muitas camadas da sociedade brasileira, no que nos parece um desejo de atingir sua estrutura — contraditória, violenta —, por meio de personagens que se movimentam em contextos autoritários; pelo modo como suas histórias trabalham a ideia de margem; na maneira como suas narrativas se articulam com o passado, encarnando de diferentes formas a ideia de fragmento, de ruptura.
Conhecido por suas adaptações literárias ao cinema, como O padre e a moça (1965) e Macunaíma (1969), Joaquim Pedro de Andrade escreveu um único roteiro original — que, infelizmente, não chegou a ser filmado. Nele, essas questões mencionadas (personagens que se moldam em conjunturas violentas, a reconfiguração de episódios da história recente do país) reaparecem com força e singularidade. O imponderável Bento contra o crioulo voador (1986), lançado pela primeira vez dois anos após a morte do cineasta, pela editora Marco Zero, e relançado em 2018 pela editora Todavia, foi finalizado quando Joaquim Pedro ainda estava no hospital, internado na luta contra um câncer.
Retomando seu assunto principal — o país —, o cineasta constrói uma narrativa que contém diversos elementos críticos à dinâmica social brasileira, com seus autoritarismos e arbítrios institucionalizados, para contar a história rocambolesca de Bento, um piloto da FAB que se torna um “santo”. O roteiro, que alude a passagens violentas dos anos da ditadura civil-militar, (como a morte do militante político Stuart Angel, filho de Zuzu Angel), é uma espécie de fábula da queda de Bento, o imponderável novo santo, cravada com “o improvável dotado de verossimilhança” – como pontua Carlos Augusto Calil no prefácio à edição publicada em 1990. Tendo como pano de fundo Brasília — com suas figuras de poder, em suas relações achacadas com a imprensa —, a história é repleta de personagens alheias ao que acontecia no país, em plena ditadura civil-militar.
Vale notar que é raro ver um roteiro ser publicado. E esse pode ser lido como uma espécie de novela, já que as rubricas guardam muito pouco do dado técnico (indicações de movimento de câmera e mise-en-scène). Elas revelam, ainda, a mira conhecida do cineasta: a violência encarada nos vários sedimentos da cena, perfurando, por meio de gestos absurdos de personagens e torções inesperadas na narrativa, o primeiro estrato das relações postas em conflito.
Não tendo passado os fantasmas de que fala a obra de Joaquim Pedro de Andrade, muito da tentativa de dizer, em seus filmes, aqueles anos violentos, perdura. Em O imponderável Bento contra o crioulo voador, por fim, abundam imagens aéreas — e, ao final da história, há uma interessante imagem de queda, que fecha a ideia com o qual comecei esse texto: ao olhar as coisas que caem, afinal, podemos saber mais do presente do que se insistirmos naquelas que permanecem erguidas. O trabalho de Joaquim Pedro de Andrade, por sorte, nos propõe sempre esse olhar para trás e para o chão.
Carla Kinzo é escritora, editora e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo.
Imagem: fotografia de Joaquim Pedro de Andrade.
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