Formas de voltar para Casa, do chileno Alejandro Zambra, trata de meios de se reconciliar com o passado: com um relacionamento que se esgotou, com o misto de repugnância e ternura trazido pela imagem de nossos pais, com uma história coletiva na qual não nos conformamos com nosso papel. O livro, republicado no Brasil pelo editora Tusquests , tematiza a ditadura chilena e o pós-Pinochet, trazendo um narrador/protagonista cindido entre um suposto ficcionista que rumina sobre o processo de escrita do romance e outro personagem: um professor que reencontra já adulto uma garota por quem se interessou quando criança. As trajetórias dos dois narradores correm em paralelo, cada qual com sua respectiva família e com as mulheres com quem precisam lidar: Claudia e Eme.
Se em Bonsai e A vida privada das árvores Zambra criava uma duplicidade nos nomes dos protagonistas Julio e Julián, aqui as experiências dos dois narradores [ambos não nomeados] se espelham de tal forma que chega a haver cenas sobrepostas e diálogos repetidos quase linha a linha na vida de um e de outro. A repetição, no entanto, não nos permite ter certeza de que os dois narradores são o mesmo. Pelo contrário: o que ocorre é um reforço de como situações e conflitos que vemos como particulares na verdade se repetem bastante entre pessoas com um contexto de vida semelhante. A sobreposição e repetição das experiências é um dos mecanismos utilizados por Zambra para demonstrar a influência do coletivo no plano individual. Os personagens ruminam sobre seus problemas pessoais, mas, em última análise, as questões que se colocam em suas vidas são tentativas de elaborar seu papel em um esquema mais amplo. Ou, como uma das personagens coloca ironizando a tendência do leitor [e do narrador] de personalizar as coisas: “é mais fácil entender assim. É melhor pensar que tudo isso foi uma história de amor”.
A técnica de Zambra termina por desestabilizar o sentido do narrado uma vez que não sabemos exatamente que instância narrativa está falando em cada momento e por criar um jogo de relativização em que o relato pessoal e a memória são ao mesmo tempo valorizados por sua capacidade de tocar o leitor e de dar concretude a uma experiência histórica [no caso, à experiência ditatorial chilena] e questionados em sua relevância e capacidade de transmitir alguma verdade. O narrador diz que ninguém fala pelo outro e que no fim só contamos a nossa história, mas ele é o primeiro a fazer uso de personagens e a se apropriar das histórias de outros. Quando o narrador diz que “ler é cobrir a cara, escrever é mostrá-la”, o leitor não tem alternativa senão perguntar qual das caras ele está mostrando, e qual estamos cobrindo. Em minha opinião, escrever é esconder, ler é mostrar e a cara sempre será a de um outro, que ninguém aqui é trouxa.
O que os narradores [ou as duas facetas de um mesmo narrador] e as mulheres com as quais eles se relacionam têm em comum é o passado como personagens secundários na história do Chile. “Enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar guardanapos em forma de barcos”, diz o narrador. A trajetória desses personagens se dá às margens da história chilena. Isso se configura mais concretamente em sua condição de crianças durante o regime de Pinochet, mas também no fato de Claudia ter sido a irmã escolhida para ser poupada enquanto Ximena se envolvia na militância do pai; na posição de conveniente neutralidade assumida pelos pais do narrador em relação à política; nas ruas desprovidas de nomes históricos onde ele morava quando menino, “travessas de fantasia, a salvo da história”.
A infância literal do protagonista durante a ditadura denuncia a posição de infantilidade assumida pelos pais dele e por todos aqueles que, em uma situação como aquela, preferiram se retirar de cena, não se envolver na ação central de seu tempo. O narrador começa elaborando essa questão quando reconhece que o papel das crianças na história de seus pais é sempre um papel secundário. Eme, sua ex-mulher, relembra um episódio de sua infância em que ficou claro para ela que a vida de seus pais não girava ao seu redor e sim o contrário, era ela quem orbitava a vida deles, uma percepção algo deprimente que toda criança atenta acaba sofrendo depois da fase em que se considera o centro do universo. O episódio narrado por Eme se passa em uma noite em que ela e as amigas brincavam lá fora enquanto seus pais pediam que voltassem para casa, pois estava tarde. Em dado momento, uma notícia importante surge no rádio e os pais param de chamá-las, esquecendo-se momentaneamente de sua existência. Para a menina, aquele era um momento de perda de protagonismo familiar. Para os pais, era um desses momentos em que nossas vidas individuais, tão cultivadas, parecem insignificantes diante de eventos coletivos. Em cenas como essa, Zambra cria uma relação de equivalência entre a figura dos pais e a do país. Enquanto o narrador precisa se entender com sua história familiar e o papel de seus pais na história do país, Claudia precisa fazer o caminho de volta dos Estados Unidos —, país que ela odiava quando criança por influência do pai —, para o Chile, onde o mesmo pai acaba de morrer.
“Em todas as provas havia um item de identificação de personagens, que incluía meros personagens secundários: quanto menos relevante fosse, maior a possibilidade de que nos perguntassem por ele, de modo que memorizávamos os nomes com resignação e também com a alegria de cultivar uma pontuação segura. Era importante saber que o jovem coxo de recados se chamava Hippolyte e a criada, Félicité, e que o nome da filha de Emma era Berthe Bovary.
Havia certa beleza no gesto, pois éramos então justamente isso, personagens secundários, centenas de meninos que cruzavam a cidade mal equilibrando as bolsas de lona. Os moradores do bairro experimentavam o peso e faziam sempre a mesma piada: parece que você leva pedras na mochila. O centro de Santiago nos recebia com bombas de gás lacrimogêneo, mas não levávamos pedras e sim tijolos de Baldor ou Ville ou Flaubert”.
O dilema do narrador de Formas de voltar para casa não se resume ao drama infantil de se descobrir secundário na vida dos pais. As coisas ficam mais complexas quando ele percebe que seus pais também eram personagens secundários na história do país, o que o coloca em uma condição duplamente coadjuvante que resulta na apropriação da história de Claudia, cujo pai participava da resistência ao governo Pinochet, enquanto seus próprios pais nada faziam. Aquela citação que fiz lá em cima precisa então ser relida sob uma chave mais grave: quando o narrador diz que “enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num canto”, ele está excluindo seus pais do campo dos adultos uma vez que eles não estavam entre os que matavam nem entre os que eram mortos pela ditadura. Esse sentimento de que a história dele não é importante, pois ele apenas dobrava guardanapos em forma de barcos em uma casa em que a vida durante uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina se resumia a um plácido dobrar de guardanapos, acompanha o narrador. Como se reconciliar com uma história em que fomos coadjuvantes, quiçá figurantes, enquanto outros atuavam?
A identificação dos pais como crianças ignorantes e confortáveis em sua ignorância surge na música que eles ouvem [“Qué sabe nadie”, de Raphael]; na cena em que, durante uma discussão na casa do “avô comunista”, o narrador diz que “até vovó e minha mãe, e até um dos meus primos, que com certeza não entendia a situação, riram”, estabelecendo um vínculo entre o primo, uma criança, e a incapacidade de compreensão de sua mãe e avó; na cena em que um professor pergunta se ele é comunista e ele não nega, mas coloca uma informação que o impede de ser comunista: “eu sou um menino”. O professor então pergunta se o pai dele é comunista e ele diz “meu pai não é nada”. Surge ainda na separação que se estabelece na escola, após a ditadura, entre bons e maus, entre aqueles que eram filhos de colaboradores do regime e aqueles que eram filhos da resistência. O narrador, no entanto, não se situa em nenhum campo ideológico, não é bom nem mau, o que ele mesmo entende como sendo um pouco mau.
Essa inaceitação do próprio papel durante o regime, ainda que fosse apenas um menino vivendo na aba dos pais, como ele mesmo pontua, molda o caráter do protagonista. Há um sentimento de culpa por ter sido um menino — e um menino feliz — enquanto outros matavam ou eram mortos. Ao ver seus álbuns de infância, por exemplo, ele constata que aquelas fotos servem para “nos demonstrar que não queremos aceitar o quanto fomos felizes”. Ao ouvir relatos de que o Chile de sua juventude era um país sangrento e perigoso, essas imagens se contrastam com as lembranças de sua infância feliz e aparentemente protegida. Tudo isso leva o narrador a desenvolver uma ojeriza à ideia de segurança que pode ser observada, por exemplo, em seu espanto ao ver as travessas Lucila Godoy Alcayaga e Neftalí Ricardo Reyes Basoalto [nomes de batismo de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, dois escritores engajados] onde Claudia passou sua infância de filha da resistência transformadas em fortalezas seguras que compartilham a “paranoia sobre a delinquência” que se estabeleceu no Chile contemporâneo. É por isso que, ao explicar por que saiu de casa tão cedo, o narrador diz que “buscava uma vida plena e perigosa ou talvez simplesmente quisesse o que alguns filhos querem desde sempre: uma vida sem pais”.
“Vivíamos com poucas palavras e era possível responder a todas as perguntas dizendo: não sei. Não achávamos que isso fosse ignorância. Chamávamos de honestidade. Depois aprendemos, pouco a pouco, os matizes. Os nomes das árvores, dos pássaros, dos rios. E decidimos que qualquer frase era melhor que o silêncio”.
Mas não são só os filhos que precisam se examinar na frente do espelho usando as roupas dos pais, constatando melancolicamente que lhes ficaram justas. A dificuldade dos pais em se reconectar ao ambiente doméstico, seu embate com a posição de pai e mãe dentro da estrutura familiar, sua incapacidade de se portar como adultos na sociedade, como agentes históricos, são questões colocadas desde a primeira página do romance. É comovente a cena em que a mãe do narrador diz ter se identificado com os personagens de um livro popular e o filho questiona como, se aqueles personagens eram de outra classe social, com outro tipo de problemas. A mãe diz que se identificou apesar disso, que as classes sociais mudaram muito e que ela sentia que aqueles eram os seus problemas. Depois desse diálogo, paira um clima de estranhamento em que a mãe deixa claro que não se identifica tanto é com o próprio filho, que parece sofisticado demais para ser seu, e com as namoradas que ele arranja, também moças meio sofisticadas, que aparentam vir de outra classe social. Esse é o momento em que percebemos que não são apenas os filhos que precisam se reconciliar com o fato de terem vindo daquelas pessoas estranhas, que tão frequentemente quebram nossas expectativas: que votam errado, que leem errado, que se divertem errado. A tarefa dos pais de reconhecer sua autoria em obras autônomas e que insistem em fugir ao roteiro original não me parece menos brutal. “Os pais abandonam os filhos. Os filhos abandonam os pais. Os pais protegem ou desprotegem, mas sempre desprotegem. Os filhos ficam ou partem, mas sempre partem”, conclui Zambra, buscando preencher com narrativas pessoais as lacunas de um Chile desmemoriado.
Juliana Cunha é professora da Fundação Getúlio Vargas, doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo e autora do blog Já Matei Por Menos.
Imagem: fotografia de Alejandro Zambra (Divulgação).
Observação: uma versão anterior deste texto havia sido publicada na revista Confeitaria, em 2015.
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