“A nitidez de minhas lembranças a partir daquele momento me assombra. Adquiria uma consciência mais atenta dos outros, de mim mesma”, revela a jovem Cécile, narradora da novela Bom dia, tristeza, de Françoise Sagan (no Brasil, saiu pelo selo Coleção Folha Mulheres na Literatura, com tradução de Sieni Maria Campos). Publicada pela francesa em 1954, aos 18 anos de idade, causando furor entre a crítica da época, a obra revela uma mentalidade pueril que se desfaz.
O espanto com o livro residia, em boa parte, na precocidade da personagem, de apenas 17 anos, ao acompanhar o modo de vida libertino do pai. Viúvo, o sedutor Raymond envolve a filha em sua desregrada rotina e nos confusos arranjos de sua vida amorosa. Ao abrir a história, Cécile passa a restituir os episódios recentes do verão que passou ao lado dele, na Riviera Francesa.
A sagacidade revelada pela narradora ─ ao adotar um tom franco, despojado e direto ─ remete ao mesmo plano de outro personagem daquela década: Holden Caulfield, de J. D. Salinger. Assim como o autor americano faz em O apanhador no campo de centeio (1951), ao tornar a linguagem de seu protagonista condizente com a de um garoto de 17 anos, Sagan, ela própria uma jovem adulta, mantém o tom do relato de Cécile fiel ao de uma garota em processo de amadurecimento. Isto é, não se trata de uma consciência adulta a tomar a voz de um jovem.
Essa expressão mais genuína relaciona-se com a análise feita por Franco Moretti na obra O romance de formação (publicado no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Natasha Belfort Palmeira, em 2020). Segundo o teórico italiano, a tradição que nomeia seu livro ganha força a partir do fim do século 18, quando os jovens puderam passar a aproveitar as novas possibilidades da modernidade — uma “exploração individual do espaço social”, que implica uma “interioridade não somente mais ampla do que já fora no passado, mas sobretudo […] perenemente insatisfeita e irrequieta”. Ou seja, a aquisição dessa autonomia se transpõe para o discurso literário.
Desbocada, impulsiva e indisciplinada, Cécile busca maneiras de se impor, sobretudo quando o pai envolve-se com Anne, mulher sofisticada e articulada, que tenta domar os impulsos dos dois. Obrigada a mergulhar nos estudos e abdicar da diversão das férias ─ sendo impedida de manter a rotina de encontros com Cyril, com quem dava início à sua vida amorosa ─, a jovem sente-se profundamente reprimida.
Essa experiência de Cécile nos leva novamente às reflexões de Moretti, que mostram também como os personagens modernos buscam livrar-se das imposições sociais correntes. “Multilateral, prismática, a personalidade permanece um ídolo sempre insatisfeito: gostaria de não se submeter a nada, de não ser jamais um meio para um fim, qualquer que este seja”. A futura madrasta surge, assim, como obstáculo para que a protagonista concretize esse ideal:
“Era absolutamente indispensável sacudir-me, reencontrar meu pai e a vida de outrora. […] A liberdade de pensar, de pensar mal e de pensar pouco, a liberdade de escolher minha própria vida, de me escolher eu mesma. […] Pensei nisso a tarde toda, atravessando uma série de estados desagradáveis, mas todos provenientes desta descoberta: estávamos à mercê de Anne. Eu não estava acostumada a refletir e isso me deixava irritada.”
A introspecção vivenciada diante das restrições impostas a ela marca, então, o ponto de virada da trama. Trata-se do que podemos identificar como o começo do amadurecimento da protagonista, mas que não envolve, necessariamente, uma mudança de comportamento em sentido único. Cécile descobre a cisão de sua consciência, em uma passagem que, não por acaso, abre a segunda e última parte da novela:
“Pela primeira vez em minha vida, esse ‘eu’ parecia se dividir, e a descoberta de tal dualidade me assombrava prodigiosamente. Encontrava boas desculpas, murmurava-as para mim mesma, julgando-me sincera, e bruscamente surgia outro ‘eu’ que se delineava em falso contra os meus próprios argumentos, gritando-me que eu me autoenganava, mesmo que tivessem toda a aparência da verdade.”
É curioso notar como, diferentemente do personagem de Salinger, a protagonista de Sagan é dotada de uma capacidade autorreflexiva apurada, com a qual é capaz de examinar, embora de forma ainda inconsistente, os meandros de seu comportamento. Uma diferença que pode estar associada ao fato de ela estar inserida em uma cultura de vocação mais existencialista do que a americana. Ciente, contudo, de que aquela cisão não atinge apenas a sua mente, atreve-se a manipular as intenções, os sentimentos e as reações daqueles que a rodeiam. “O papel de diretora não deixava de me apaixonar”, chega a afirmar a certa altura.
Essa inconstância das ações e das vontades humanas é abordada por Montaigne em um de seus Ensaios. Para o pensador francês, “somos todos feitos de peças separadas, e num arranjo tão disforme e diverso que cada peça, a todo instante, faz seu próprio jogo”. É nesse sentido que Cécile não demora a reconhecer que, por trás de uma aparência rígida e confiante, os outros partilham de suas fragilidades; que por vezes agem e se expressam em contradição com seus mais profundos sentimentos.
A personagem parece, no entanto, ignorar a complexidade desses movimentos interiores. Só mais tarde, após arquitetar ações que terão graves consequências, compreenderá que “investira contra um ser vivo e sensível, e não contra uma entidade”. Descobrirá, como escreveu Tchekhov, que “o coração alheio é floresta espessa”. Diante disso, a narradora também se revela um exemplo jovem de uma posição característica do romance moderno, ligada não apenas à cisão da subjetividade, mas também à impossibilidade de apreensão do caráter dos indivíduos em sua totalidade.
No caso de Cécile, com a passagem do tempo, essa lucidez transmuta-se na tristeza presente no título. Sem moralismos, Sagan mostra que a consciência de si no mundo, como sua personagem perceberá mais tarde, implica responsabilidades. Mas, assim como para muitos de nós, falíveis e incapazes de corrigir ações passadas, pode implicar também arrependimento e melancolia.
Júlia Corrêa é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.
Imagem: desenho de Thiago Thomé Marques para Deriva.
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