Eu sou de uma geração, e até mesmo filha de uma geração, que cresceu acreditando que o antissemitismo não existia para nós. Ele existia, é claro, mas “lá”, lá na Europa, lá de onde nossos avós fugiram para poder ter uma vida mais livre aqui. Aqui nós éramos apenas brasileiros, argentinos, uruguaios, americanos. Aqui estávamos seguros.
É claro que todos nós também crescemos com os comentários de que judeus gostam de dinheiro demais, ou são pouco confiáveis, “mas não você, é claro”, aquela pessoa tinha que ser judeu, mas é claro que não você. Não aqui. Aqui esses comentários eram apenas isso, comentários, preconceitos inofensivos, aqui ninguém foi perseguido na rua ou agredido apenas por ser judeu. É claro.
O antissemitismo possui uma crueldade muito particular que é ser invisível e torcer-se em si mesmo de forma que chamar a atenção para ele o alimenta ao te tornar o judeu paranóico, sempre inseguro, sempre pensando que ainda estamos em um vilarejo do interior da Polônia quando é claro que não estamos. Em sua pior face, ele é uma teoria da conspiração. Cotidianamente, ele desliza pelas frestas, porque como pode ser uma opressão dizer que tem muito poder pessoas que olha lá, você está vendo, têm muito poder. Você é paranóico. Não vai acontecer aqui.
Até acontecer.
Em 2004, quando Philip Roth publicou Complô contra a América (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto), não aconteceu de um homem armado entrar atirando em uma sinagoga. Duas vezes. Em menos de seis meses. 2004 não foi o ano com mais incidentes antissemitas da história dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra. Mas 2016, foi. Em 2004, George Bush comandava um ataque no mínimo suspeito contra o Iraque, mas o mundo não parecia estar caminhando de forma generalizada para o fascismo. Em 2020, parece. A decisão, portanto, de adaptar essa história para a televisão nesse ano, nesse mundo, é, ao mesmo tempo, mais grave, mais profunda e mais necessária.
Complô contra a América é um exercício de ficção alternativa: no universo do livro, no lugar de Franklin Roosevelt ser eleito para um terceiro mandato, em 1942, Charles Lindbergh se torna o presidente dos Estados Unidos. Lindbergh é um herói americano, o primeiro aviador a cruzar sozinho o Atlântico em um voo sem paradas entre Nova York e Paris, um antissemita assumido e um simpatizante nazista. Seu governo é marcado por medidas sutis, talvez inofensivas para olhos inocentes, que buscam desorganizar a sociedade judaica americana e levar seus membros a uma assimilação radical que os tornará “americanos de verdade”. É claro que sua principal plataforma não é destruir os judeus, mas manter os Estados Unidos fora da guerra, uma guerra que claramente só interessa aos judeus. Sua bandeira é a “América Primeiro”.
Qualquer semelhança com “Make America Great Again” não é mera coincidência.
Mas o protagonista do livro não é Lindbergh, ainda que sua imagem se projete em cada frase, mas sim uma família comum de judeus de classe média de New Jersey — os Roth no livro, os Levin na série —: Hermann, o pai que trabalha em uma companhia de seguros e abre mão de uma promoção porque quer que sua família viva entre judeus; Bess, a mãe e dona de casa; Sandy e Philip, meninos de quinze e dez anos. Essa não é a história de um fascista, mas da vida sob o fascismo, dos laços familiares e de uma infância que passam a acontecer envoltos pelo tecido do medo.
É uma escolha notável da série que Lindbergh nunca seja visto. Nós ouvimos sua voz; nós acompanhamos o filho mais velho dos Levin, Sandy, abrindo caminho pela multidão para vê-lo pousar no aeroporto da cidade; nós vemos a primeira dama, mas, como no Tubarão de Spielberg ou em Bebê de Rosemary, nós nunca olhamos diretamente para Charles Lindbergh.
E isso acontece porque ele é, em muitos sentidos, insignificante. Em 2004, perguntaram várias vezes a Roth se o livro era uma alegoria do momento atual e ele respondia sempre que não, que não era um livro sobre a era Bush, mas um livro sobre 1942. Como em absolutamente tudo que fazia, Roth estava ao mesmo tempo falando a verdade e mentindo. Sim, era um livro sobre 1942, mas também era um livro sobre 2004, da mesma forma que é um livro sobre 2016, porque é um livro sobre os Estados Unidos. Claro que todo fascismo precisa de um líder carismático, de um herói que incentive e movimente a nação, mas essa não é a história desse líder. É a história do país que votou nele.
Essa é a linha da principal da adaptação, na qual a Ku Klux Klan, os ataques promovidos pela polícia e os pogroms populares ganham espaço. O nunca visto Lindbergh desaparece de vez no início do último episódio, o que não impede que ele seja também o mais violento e assustador: agora a violência está em todas as partes e a câmera se demora em uma pilha de sapatos, símbolos de uma história que conhecemos muito bem.
A adaptação é uma série curta, de seis episódios, cujo ritmo comunica perfeitamente a dinâmica do antissemitismo: lento e então explosivo. Por cinco episódios, nós vemos o medo e a tensão dos Levin, que se sentem acuados, indesejados em seu próprio país. O espectador acompanha também a ingenuidade irritante de Evelyn, a irmã de Bess, e seu novo namorado, o rabino Bengelsdorg, que se considera um grande aliado do governo Lindbergh, mas nada parece ir muito além do fogo baixo do antissemitismo corriqueiro.
Um programa do governo chamado “Gente Como a Gente” leva adolescentes judeus para idílicas férias de verão no interior do país, com o óbvio propósito de que eles, que não são gente como a gente, se americanizem. Sandy volta de semanas no Kentucky ainda mais encantado com Lindbergh e irritado com seus pais, que ele vê como judeus paranóicos e amedontrados. Em seguida, outro programa do chamado Comitê de Absorção Americana realoca judeus para lugares isolados, quebrando as redes comunitárias que sustentam boa parte da identidade judaica. Ao recusar a transferência para, mais uma vez —e não por coincidência—, o Kentucky, Hermann deixa de ser um vendedor de seguros engravatado para se tornar um trabalhador braçal.
Ainda assim, o espectador pensa que tudo pode ficar bem. Talvez não passe disso. Como gerações de judeus, ele diz “talvez eles ouçam coisas desagradáveis por um tempo, talvez alguns hotéis não fiquem felizes de recebê-los, mas tudo que está sendo pedido é que eles se assimilem um pouco, se eles forem mais americanos tudo vai ficar bem”. Mas nada fica.
O golpe mais acertado dessa adaptação é fazer da retórica antissemita sua matéria: ao ouvirmos Herman e Bess falarem de como a Klan está no Kentucky, nós nos perguntamos se eles estão exagerando. E então a vizinha transferida para a mesma cidade é assassinada pela Klan. Nós nos perguntamos se há motivo para tanto medo e então lojas são saqueadas e pintadas com suásticas, judeus executados por policiais. Ninguém nunca esteve paranóico.
Quando Roth escreveu essa história o mundo era um lugar diferente.“Isso pode acontecer aqui”, ele parecia advertir a judeus que se sentiam exageradamente seguros não apenas nos Estados Unidos, mas aqui também. Esse sentimento acabou. Nos últimos dois anos, eu me peguei provando ser “o tipo certo de judeu” mais de uma vez. Quando o Ministro da Educação citou literalmente um discurso nazista, vozes na internet chegaram a milímetros de dizer: “a culpa é dos judeus”. Se Roth queria nos lembrar de que a tolerância é sempre frágil, agora estamos juntando os cacos.
No final do livro, Lindbergh desaparece misteriosamente e a história segue seu curso, com a eleição de Roosevelt e a entrada dos Estados Unidos na guerra, mas essa é uma história que já não podemos contar. No final, embora Lindbergh de fato desapareça, os fascistas têm uma vitória importante: eles quebraram a fé que esses personagens tinham em seu país e a fé que tinham em si mesmos. Ao longo de toda a série, Herman afirma repetidas vezes que é um americano, que não vai fugir para o Canadá, que esse é seu país e que é um país melhor do que isso. Ao final, ele já não está tão certo. Em 2020, as forças que conspiram contra a América venceram.
É por isso que a imagem final da série não é a celebração eufórica da vitória de Roosevelt, mas a de fraudes nas urnas e de um Herman tenso ao lado do rádio e de um futuro incerto. O livro começa com as seguintes palavras: “O medo domina estas lembranças, um medo perpétuo”. Talvez, em 2004, os judeus tivessem esquecido disso (embora outros setores da população, é claro, nunca esqueceram), mas não mais. Em uma das cenas mais dolorosas da adaptação, Bess Levin diz: “eles nos ensinaram o que é ser judeu”. É com esse conhecimento que essa história é contada de novo.
Isadora Sinay é tradutora, professora e doutoranda em Literatura Judaica na Universidade de São Paulo.
Imagem: Divulgação HBO.
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