Uma menina rica, que não encontra lugar dentro de sua própria família e sofre bullying na escola; um menino pobre, amado pela mãe e aluno promissor. Dois jovens muito inteligentes que encontram imperativos sociais pouco dispostos a acolher suas singularidades. Cenário básico e engessado de um clichê, certo? Não para essa adaptação do livro Pessoas normais (Normal people), da escritora irlandesa Sally Rooney, exibida no Brasil pela plataforma Starzplay. A autora também aparece creditada no roteiro.
Normal people, o título da série — homônimo ao livro — nos convoca a imaginar o terreno do comum, do banal, daquilo que se repete nas complexidades humanas e é justamente com isso que nos deparamos, com certa ambivalência drástica e incômoda. A potência narrativa da série está no retrato das personagens que escancaram aquilo que pode haver de mais ordinário nos sujeitos: a parte de cada um que não se ajusta nunca.
Marianne e Connell — o casal protagonista interpretado por Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal — se apaixonam não apesar de suas diferenças, mas por causa delas. Muito além da novela adolescente, o que podemos enxergar_ e quase agarrar com as mãos – é uma intensidade um tanto desconfortável que sai das telas e atravessa quem assiste. O amor está lá, assim como paixão, sexo, libido, angústia e silêncio. A conexão entre os dois é inegável e nos convoca a torcer por eles, a desejar que fiquem juntos e que vençam as barreiras da vida. Mas, ainda assim, há um desencaixe, denunciando que nem toda química do mundo é capaz de atingir a exatidão, alguma coisa está sempre fadada a escapar. Em alguns momentos, temos a impressão de que não falam a mesma língua, fica evidente a insuficiência da palavra, a distância entre aquilo que um pode dizer e aquilo que o outro pode escutar. Por isso, a angústia é chocante, afinal de contas, não deveria ser uma história de amor?
Em 1972, no seminário “Mais, ainda”, o psicanalista francês Jacques Lacan disse que “não há relação sexual”, indicando que não há complementariedade entre os sexos e nas relações amorosas. Embora o amor possa fazer uma suplência imprescindível à nossa condição de falta subjetiva, não existe completude, ou seja, dois não fazem um. É isso que Marianne e Connell nos ensinam. Ela, com sua história familiar triste e fria, alterna entre o profundo desejo de ser amada e a saída superegoica que a coloca na posição de objeto-dejeto, repetindo exatamente o lugar que ocupa em sua família. Ele, um rapaz calado que oscila entre amar profundamente uma mulher e, portanto, ficar vulnerável a ela, e manter intacto o ideal masculino que o discurso social o ajudou a construir. Apesar de um encontrar, no outro, pedaços de intangibilidade, eles esbarram também nos furos simbólicos, nas partes que não se completam, no calabouço de cada um onde é impossível entrar e fazer morada, mesmo quando há amor.
Enlaçar-se com o outro numa relação amorosa é abraçar as diferenças, inclusive as mais radicais. No universo de mal entendidos que se inscreve o tempo todo entre Marianne e Connell, embora sofram, eles se encontram com certa intimidade que consegue salvá-los de saídas muito mais sofridas. Connell finalmente adquire voz e pode pegar a trilha do seu desejo, separando-se das amarras sociais e dos imperativos masculinos. Marianne, no amor que recebe e sente por ele, consegue tocar o campo feminino não mais pela via mortífera da devastação, mas por sua via vivificante. Ela não precisa mais devastar-se no exercício sofrido de ser tudo para o outro e pode aceitar ser amada.
É uma série que fala daquilo que não conseguimos facilmente dizer. Uma obra sobre o traçado invisível do silêncio e do impossível, sobre as faltas da existência, sobre sexualidade e sobre a não onipotência do amor. Mas é também uma corajosa narrativa sobre a beleza da inconsistência e o infinito que se abre no amor quando os vazios podem ser sustentados. Belíssima, poética e dura. Difícil e sublime — do começo até seu impecável fim.
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Cauana Mestre é psicanalista, graduada em Psicologia e especialista em Psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Imagem: Connell (Paul Mescal) e Marianne (Daisy Edgar-Jones) em episódio da série ‘Normal people’ (2020).
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