Na primeira vez que li Elena Ferrante, a tetralogia napolitana como quase todo mundo, entre a prosa precisa e as reviravoltas de uma trama novelesca, me peguei impressionada pelo quão ordinárias eram aquelas mulheres, aquelas vidas. Eu já havia lido sobre muitos homens ordinários, os sulistas imóveis de William Faulkner, a previsibilidade de Nick Carraway, narrador de O grande Gatsby, a multidão de escritores contemporâneos e seus romances sobre suas vidas perfeitamente comuns, bloqueios de escrita perfeitamente comuns, noites boêmias pouco emocionantes em que saem atrás de mulheres comuns. Eu já havia lido pelo menos dois volumes da luta de Karl Ove Knausgard, fascinante e lindamente escrita, mas, ainda assim, registro microscópico e, ao mesmo tempo, gigantesco de uma existência sem nada demais.
Para as autoras e protagonistas mulheres, esse privilégio não era dado. Mesmo Jane Austen, escritora máxima da domesticidade, tem protagonistas que o são justamente porque se destacam da ordem das coisas: Elizabeth Bennet é qualquer coisa menos ordinária dentro do recatado interior inglês do século 18. Virginia Woolf, outra autora a olhar para o cotidiano das minucias, nos distrai desse fato com sua forma vertiginosa e o ordinário de Esther Greenwood, em a Redoma de vidro, é eclipsado pelo fim trágico de sua criadora.
Mas ali eu tinha nas mãos o primeiro volume de uma série, 300 páginas de mais de mil, que me contavam de duas mulheres comuns, brilhantes como pessoas comuns são brilhantes, criadas por uma escritora que não parece esconder nenhuma grandiosidade por trás de seu anonimato. Em seu escritório comum de intelectual e escritora, Elena Ferrante tecia vidas femininas normais, violentas em seu cotidiano, revolucionárias no espelho que me ofereciam.
Em A vida mentirosa dos adultos, Ferrante dobra essa aposta. Porque na tetralogia tanto o tamanho quanto o temperamento das personagens servem para nos enganar de que o que lemos é a história de mulheres comuns. Lila, aos olhos de Lenu, é uma força da natureza e Lenu, aos olhos de Lila, um gênio da raça. O que Elena faz, sair do bairro, formar-se, transcender sua classe econômica, não é nada que centenas de pessoas não façam todos os dias, mas a acompanhamos tão de perto e por tanto tempo que sua jornada assume contornos épicos, iludindo o leitor e permitindo-o se reconfortar com a ideia de que está lendo sobre as únicas mulheres que parecem importar para a literatura, aquelas que escapam a sua condição de mulheres.
Mas Giovanna, protagonista e narradora do novo romance, não empreende nenhuma jornada tão difícil, na verdade, ela mal sai do lugar. Ela também não encontra no trabalho da mente o escape do corpo, pelo contrário, seu trabalho mental é escravo de sua carne e no final parece ser essa a vencedora. Giovanna não é só uma mulher comum, mas uma protagonista que se torna essa mulher diante dos nossos olhos.
O livro começa no limiar da adolescência: aos 13 anos, prestes a deixar o mundo indefinido da infância para adentrar no universo do gênero, Giovanna ouve do pai que é feia, feia como tia Vittoria. Ser feia é a derrota completa de qualquer ambição que uma menina de 13 anos possa ter. A beleza é o valor maior das existências femininas para sempre, mas, nesse momento, antes que qualquer linguagem permita nos libertar, ele é o sol em torno do qual giram identidades. Giovanna é feia, mas não só isso, ela é feia como uma mulher decaída, como uma mulher amaldiçoada antes mesmo de saber o que é isso.
Se fosse realmente feia dessa maneira, Giovanna poderia ser extraordinária. Monstruosa, é verdade, mas extraordinária. Afinal, é justamente a transformação em barata que liberta Gregor Samsa do esquecimento completo. A feiura a separa de todo seu mundo: o mundo de riqueza e bons valores da classe média alta intelectual na qual foi criada e o mundo das mulheres elegantes e atraentes que a rodeiam. Feia, Giovanna é única. E então ela mergulha de cabeça em sua feiura.
A jornada que Giovana empreende no livro é de certa forma análoga a de Dante na Divina comédia: ela desce às profundezas de um inferno, para alcançar o paraíso. Perdida e poluída, é salva por uma paixão ideal e platônica que funciona como estrela-guia. Roberto, como Beatriz, pega sua mão e lhe mostra os prazeres particulares da vida mais elevada. Mas Ferrante, ainda que sempre banhada na tradição clássica, é uma escritora contemporânea e realista: não existe possibilidade de paraíso no processo que é tornar-se adulto.
Em sua edição brasileira (editora Intrínseca, tradução de Marcello Lino), A vida mentirosa dos adultos tem mais de 400 páginas, mas é difícil dizer o que tanto acontece ali. Em termos de trama, muito pouco. Giovana, no início da adolescência se descobre feia; tomada por essa angústia, mergulha de cabeça em seu inferno pessoal, seguindo tia Vittoria, um Virgílio à sua maneira, que lhe mostra a extensão das mazelas humanas. Afundada nesse mundo e tentando igualar sua suposta feiura física com uma feiura moral, Giovanna encontra Roberto, aparentemente porta-voz de que tudo que é Bom, Belo e Verdadeiro. Mas Roberto, no fundo, não é mais que um homem, e com essa descoberta Giovanna se sente libertada de um mundo de valores absolutos, reata seu corpo e espírito e torna-se mulher, caindo de volta exatamente onde começou: uma garota de classe média alta, inteligente dentro do normal, prestes a ingressar no mundo universitário para o qual foi preparada desde sempre.
Isso não quer dizer que a jornada interior de Giovanna não lhe pareça extraordinária e épica, é claro que sim. Mas assim parece a passagem pela adolescência para qualquer pessoa e é nessa precisão do retrato que está a força maior do romance. Giovanna é uma adolescente comum, passando pelo tormento da adolescência que é, ao mesmo tempo, totalmente ordinário e vivido por um inferno dantesco por aqueles que se encontram na passagem. Apesar de tudo que vive, sua transformação para os que veem de fora é mínima, mas é gigantesca para a protagonista, porque em meio a tudo isso ela aprende sobre a matéria do mundo e como circular dentre ela.
Giovanna vive a adolescência como uma separação radical e torturante entre seu corpo e mente, uma sensação que qualquer adolescente poderia formular em termos menos poéticos. Após viver inferno e paraíso, ela cai na terra, acompanhada de uma amiga de infância, com seu eu reconstituído. Ferrante dá a sua protagonista a chance de viver sua formação com a mesma seriedade e intensidade que protagonistas homens vem tendo há séculos, ainda que o mais revolucionário talvez nem seja isso, mas sim que depois de tentar se definir por tantos homens, ela acabe dona de si e seu eu autônomo busca companhia em outra mulher. Em uma literatura de mulheres definidas por homens, Ferrante é revolucionária por nos deixar definir por nós mesmas.
No final das contas, A vida mentirosa dos adultos é um romance tão particular porque permite que Giovanna, uma menina, o menor ser da literatura mundial, certa manhã acorde de sonhos intranquilos e se veja metamorfoseada em uma pessoa.
Isadora Sinay é tradutora, professora e doutoranda em Literatura Judaica na Universidade de São Paulo.
Imagem: Pintura de Aleksandra Waliszewska.
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