Dizem que Picasso certa vez (ou certas vezes) puxou um guardanapo da mesa, ao final de uma noite de bar, sacou do bolso da camisa uma caneta e compôs, com traços rápidos, uma obra, que entregou ao garçom como forma de pagamento. Imagino-o dizendo “toma, isso deve valer muito mais do que o que gastamos hoje”.
Essa história sempre me causou algum estranhamento. De um tempo para cá, tive a feliz oportunidade de estranhar esse estranhamento: por que esse tipo de cena é estranha? Por que gera inquietação?
Um dos motivos mais evidentes e superficiais, creio eu, é a perspectiva de uma arrogância pouco disfarçada – nesse caso não se trata tanto do estranhamento, mas de uma repulsa diante da cena, um incômodo com a postura do personagem.
Esse, no entanto, parece um elemento apenas superficial da questão. Creio que a cena perturba de modo mais profundo por conflitar frontalmente com nossa imagem ideal de artista: afinal, costuma-se imaginar “o artista” como um ser atribulado, inquieto em seu ateliê ou escritório, ponderando, hesitando; costuma-se imaginar essa agitação disputando espaço com uma contemplação, uma espera – a famosa espera pela visita da Musa inspiradora. Nesse contexto, a ideia de um artista que puxa um guardanapo e produz uma obra de arte ali, como quem assina um cheque, causa evidente desconforto, provavelmente pela dramaticidade com que destoa dessa outra imagem que normalmente fazemos.
O ponto parece ser articulado, até onde posso ver, ao redor da ideia de que o artista depende de tempo e espaço de isolamento para poder acessar o “material bruto” da arte, de onde sua produção emana. Daí emerge o estranhamento diante de uma cena como aquela de Picasso a que me referi: não se pode criar uma obra de arte como se assina um cheque, não se pode produzir obras de arte em escala industrial, como se produzem salsichas — porque a arte requer o tempo da hesitação, requer o recolhimento e a imersão no caldo bruto da inspiração, a arte requer o timing da descoberta. Se Picasso produziu sua obra de forma tão leviana e descomprometida, só se pode supor que ele não retirou sua inspiração de fontes profundas, ele deve ter recorrido a algum esquema ou subterfúgio, e então sua obra não é “verdadeiramente” artística. Um dos motivos para pensarmos assim é que o “material bruto” do artista não seria o granito que ele esculpe ou a tela em branco (ou guardanapo) que ele pinta: o “material bruto” seria o “fundamento” da inspiração, o conjunto disperso de ideias que se organizarão em arte potencial naquele momento em que a lâmpada imaginária acende, o famoso momento “Eureka!” ou momento “A-há!” — o acesso a esse “material bruto” se daria quando da resolução do conflito entre a inquietação e a contemplação, quando desse choque emerge uma ideia que toma o artista.
Nesse ponto, a imagem em que inseri Picasso pode ser contrastada a outra, dessa vez atribuída a Dalí: diz-se que Dalí se recolhia à sua poltrona e relaxava, segurando em sua mão suspensa uma pequena bola de ferro; quando ele entrava em um estado de relaxamento mais profundo a bola caía, e então ele, “ainda despertando”, tentaria resgatar rapidamente a “solução” artística que o relaxamento deveria lhe oferecer.
Dalí, nesse caso, estaria tentando conciliar o imperativo da produtividade com o elogio das fontes profundas e da hesitação: ele cria uma espécie de máquina de mergulhar nas profundezas, cria uma estratégia mecânica que o levaria ao “material bruto” e de volta, permitindo produzir arte profunda, digamos assim, em escala industrial.
O ponto difícil de apreender aqui, mas que em meu entendimento permite encaminhar a problemática de forma produtiva, é que o tipo de espacialidade e temporalidade que esperamos que o artista habite é de uma consistência diferente daquela que acolhe nossa circulação cotidiana. Entendo, então, que a imagem do artista como um ser atormentado em meio a uma ampla e confusa sala de trabalho, inquieto até que “dê com a cabeça” em uma solução que a partir dali lhe parecerá óbvia, bem, essa imagem é uma imagem justa, mas alegórica.
O que quero dizer com isso é que as coisas não precisam se passar concretamente assim. Se pensarmos na anedota envolvendo Pablo Picasso, por exemplo, veremos que nessa grade compreensiva alegórica as imagens se encaixam: Picasso podia fazer suas obras num gesto casual porque tinha se apropriado, ao cabo de uma luta cujos contornos só podemos vislumbrar, de um meio de comunicação com sua “fonte”. Fica em aberto a possibilidade, claro, de que ele, além de ser um artista louvável, fosse astuto e talvez pilantra o suficiente para abusar de sua imagem pública de artista para deixar de pagar contas — mas essa possibilidade não é nada mais que isso: uma possibilidade. Até porque para seguir sendo um artista de destaque ele precisará, obviamente, manter-se atento ao pendor comunicativo e ao potencial renovador de sua arte – porque qualquer inovação artística pode ser explorada e esgotada, pode perder seu pendor artístico e tornar-se mera repetição esvaziada. De qualquer forma, pode-se imaginar Picasso fazendo uma obra de arte num gesto aparentemente casual, contanto que se lembre que esse gesto casual em Picasso é casual em Picasso porque ele trabalhou sabe deus quanto tempo para se apropriar de um modo comunicativo inovador e poderoso.
Inversamente, o que temos em jogo na anedota envolvendo Salvador Dalí é uma técnica, e não uma forma privilegiada de acesso à Musa; assim como Picasso há de ter uma forma de se conectar ao seu pendor criativo, Dalí tem o seu — e isso, por si só, não diz nada sobre quão criativo ou artístico um sujeito é. Se colocarmos mil pessoas dormindo em poltronas com bolas em suas mãos, todas elas tentando pensar em produções artísticas, não teremos como resultado mil obras do porte das de Dalí (provavelmente não teremos nenhuma); as peculiaridades da relação do artista com seu processo artístico são importantes para ele, mas não nos dizem quase nada acerca de quão artístico seu trabalho é.
2. Desertos
O escritor Amós Oz conta sobre seu processo criativo: ele caminha pelos desertos próximos à sua residência em Tel Aviv, retorna à sua biblioteca, desliga o telefone da tomada e aguarda, pacientemente, até que seus pensamentos sobre a obra em curso na ocasião comecem a lhe ocorrer pelas vozes dos personagens que a povoam – só nesse momento ele começa a escrever. O psicanalista e escritor Thomas Ogden conta do seu: todos os dias, bem cedo pela manhã, ele se encaminha ao seu consultório, onde fica trabalhando em seus textos, e cada texto leva algumas centenas de horas até que ele os considere prontos.
Digamos que eu me aproveite de uma viagem de férias de Oz, invada sua casa e seu ritual, caminhando no mesmo deserto, sentando na mesma poltrona, ignorando as mesmas ligações: qual a chance de eu produzir as coisas que Oz produziria? Respondo: nenhuma. O mesmo em relação a Ogden, e a Dalí. O fato de eu correr antes ou depois de escrever, de escrever pela manhã ou à noite, de escrever ao computador ou à mão ou à máquina de escrever: nada disso importa. Melhor dizendo: importa, mas só para mim, e só porque é através de mim que minha arte será produzida. E isso significa que o meio através do qual minha arte se gera é nada mais nada menos que eu — e toda a questão será como eu consigo estar disponível para que minha arte se crie.
Ogden, o psicanalista que citei acima, é um dos pensadores que acredita que a boa escrita é aquela de que o autor está ausente. Nisso ele se apoia em Borges, que afirmou na abertura de um livro seu: “nas páginas a seguir existe um verso ou outro bem-sucedido, o leitor que me perdoe pela audácia de tê-lo escrito antes dele”. O mesmo Borges dirá — e o mesmo Ogden citará Borges ao dizê-lo — que Shakespeare foi um autor revolucionário porque ele foi o primeiro autor a conseguir não estar presente em suas obras: nelas os personagens teriam voz própria, imaculada pela verve, trejeitos e suscetibilidades de seu autor.
Dizendo-o sucintamente: não consigo acreditar nisso. Confira-se a Shakespeare mil qualidades, não me parece plausível supor que ele, ou quem quer que seja, é absolutamente desprovido de marca autoral. Não tenho em mente, é claro, uma marca autoral que seria como uma marca-d’água, um traço discernível e nomeável, porque nada sei ou tenho a dizer quanto a isso. Penso, não nisso, mas no fato de que a obra de arte conhece a luz do mundo pela mão do artista que a pariu, sendo inevitável que alguém (ou alguéns) a tenha(m) parido em alguma medida. Borges pode ter redigido poemas que podem ter sido sonhados por alguém, quanto a isso nada objeto — mas o fato é que foi Borges quem pôde escrever os versos depois de tê-los sonhado (e quem já tentou escrever alguma coisa sabe que o espaço entre sonhar e escrever é um espaço duro de se transpor). É possível que Borges repita as ideias do psicanalista Wilfred Bion, que indica que há “pensamentos à espera de quem os pense” — e nesse caso meu ponto é simplesmente que ao encontrar aquele que os pôde pensar o pensamento virá ao mundo veiculado por aquele que o pensou, por ocasião do contexto em que o comunicou, e esses serão elementos decisivos na chegada desse pensamento ao mundo.
3. Ossos
Acredito que um bom modo de compreender essa proposta passe pela noção comunicada por Winnicott, um psicanalista que afirma que o profissional clínico deve ter a teoria “em seus próprios ossos” quando exerce sua prática. A ideia aqui é que a teoria tem que estar lá, mas ela não pode estar “na mente” do clínico, porque dessa forma ela estaria obstruindo a escuta do clínico — quando o clínico escuta, ele tem que estar ocupado em escutar, e não em promover articulações sofisticadas com a teoria. No entanto, essa escuta se diferencia de uma escuta ordinária (como a de um ouvinte simpático em um ponto de ônibus, por exemplo) porque o psicanalista tem a teoria consigo, ele a tem “em seus ossos” — ela opera na escuta através dele, e ele opera como o agente através de quem a comunicação do paciente encontra um espaço e um tempo de instalação e transformação. Isso não quer dizer, em absoluto, que o analista não está lá: ele está lá, todo seu preparo diz respeito à sua possibilidade de estar lá, mas quando ele está lá ele tem que poder estar lá, e para estar lá ele tem que poder pôr-se à disposição para ser atravessado pela circunstância que é o encontro analítico.
Entendo, então, que a produção criativa efetiva (tanto a artística como a clínica) se deflagra a partir de um espaço de pensamento, espaço que foi constituído pelo artista a partir de seu trabalho e a que ele recorre como fonte a partir de onde suas produções emergirão. Nos termos de Cortázar, trata-se de “uma zona imprecisa, do lado do despertar, mas sem que se esteja exatamente acordado”. É claro que o psicanalista e o artista estão acordados, mas o fruto de seu trabalho emerge dessa tal zona imprecisa que existe neles. O trabalho do artista, como o do psicanalista, pressupõe uma formação técnica, mas também uma apropriação que ocorre a partir de um certo recolhimento do profissional em relação à replicação técnica em sentido estrito; é a partir desse movimento que se incorpora a teoria, no caso da psicanálise, e se constitui o impulso artístico, permitindo que o profissional se expresse criativamente se fazendo atravessar por seus impulsos, por meio desse espaço constituído e em direção à situação que se apresenta a ele.
Não podemos entender a presença do autor como a “mais estúpida das tentações da arte: a de ser um gênio”, como diz Borges. Ser um autor é poder estar presente, carne e ossos, enquanto suporte de tempo e espaço para que a arte, através de si, possa ocorrer. Querer ser um gênio é obturar isso com uma presença opaca e maçante. Ser um artista é poder estar suficientemente presente para que seja possível ser atravessado, para que a arte se passe através de si.
Wilson Franco é psicanalista, escritor e doutorando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Ilustração de Celeza Ramalho
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