Nesta edição, estamos inaugurando um novo formato, uma espécie de entrevista-conversa, onde as posições são intercambiáveis. Esse fluxo de mão-dupla nos pareceu a forma ideal para articular uma pensata sobre a intimidade a partir da perspectiva da psicanálise.
Para tanto, convidamos os psicanalistas Pedro Ambra e Renata Rampim, que se corresponderam e gentilmente compartilharam conosco parte do conteúdo dos e-mails trocados.
Renata Rampim: Pedro, que tema instigante! “Intimidade” que é o tema dessa edição da revista e estou aqui pensando em como articular a máxima de Lacan de que “a relação sexual não existe” com o tema.
Antes de continuar, quero agradecer o convite. Fico feliz de poder trocar com você. Agradeço também a revista Deriva e a Fabiane Secches pela confiança e oportunidade.
Bom, voltando. Primeiro vou à palavra intimidade, pois não há como não fazer um deslizamento deste termo, então temos: intimidade, intimidar, íntimo, tímida(o), intimar… E enquanto pensava nesta palavra lembrei de um episódio dos Barbixas em que o assunto é exatamente este da intimidade, já assistiu? É muito interessante. Neste episódio, temos que as brigas e discussões do casal se resolvem na cama. Só que não se resolve completamente porque quando o homem toca na questão de política com sua companheira, perguntando em quem ela votou, eles se desentendem de novo, e se desentendem justamente porque ela entende que falar de política é algo muito íntimo, tão íntimo que não se pode tocar no assunto. Íntimo a ponto de intimidá-la e sair da mesa. As brigas ou a não complementariedade entre os dois se desenrolam em torno da questão política. Subentende-se que o não íntimo, o sem pudor aí em questão é o sexo, a transa… já que nesse quesito a “coisa” rola como uma tentativa de fazerem as pazes (sim, é paradoxal). E o íntimo, ou seja, aquilo que não pode ser nem mesmo pronunciado é curiosamente um assunto que seria, se posso dizer, banal, um assunto qualquer… Nossa, que confusão! Mas, achei esse episódio paradigmático no que concerne a não relação sexual entre os falantes.
Conversando com uma amiga certa vez, perguntei: mas… se de saída já está dado que não é possível fazer Um, que não existe a “metade da laranja” e que em uma relação sempre haverá desentendimentos e conflitos, pois o campo da sexualidade é um campo de conflitos, então por que existem as separações? Em outras palavras: por que não ficar com a mesma pessoa “até que a morte os separe”?.
Ou ao contrário: não é porque não existe a complementariedade dos sexos que não vamos tentar, pois é na tentativa, mesmo que fracassada, que se constroem laços eróticos, sexuais, os encontros…
Bem, Pedro, seu doutorado foi sobre a sexuação em Lacan e acho que ninguém melhor que você para falar um pouco disso. Sexual, sexuação, sexo, existência, não existência, todo, não todo/toda… Como estamos no assunto relação/ralação, pergunto: É possível ficar numa relação não-toda? Ou melhor, antes, fala um pouco sobre “a relação sexual não existe”.
Pedro Ambra: Lacan é um pensador intrigante, com desenvolvimentos complexos, muitos dos quais quebramos a cabeça até hoje para tentar compreender, ainda que ele mesmo nos advirta para que desistamos disso! Mas, por outro lado, acho que a famosa inexistência da relação sexual é só mais um capítulo de uma tecla que vinha sido batida por ele desde os anos de 1950, a saber, a da impossibilidade de encontro entre a verdade inconsciente e a experiência vivida. Em outras palavras, não há relação sexual porque, no fundo, não há relação alguma! Há ilusões de relação, há formas pelas quais nós entramos nesse baile de máscaras e torcemos por uma dança com aquele objeto que causa nosso desejo, mas sem jamais saber se é mesmo ele que está atrás desta ou daquela máscara. O dançar, em si, não é uma relação, pois não há uma troca a partir de um equivalente geral. Ele é, antes, um fazer, ou um saber-fazer, como dizem. Mais ainda: só sabemos, no fundo, se será foxtrote, funk, tango ou gafieira no encontro com esse misterioso outro que, no fundo, não é nem propriamente a máscara, nem o objeto que a anima, mas a distância entre essas duas, esse sujeito suposto querer que tanto sustenta quanto é sustentado pela dança do amor. A coisa complica ainda mais porque, ao dançar uma boa dança, a gente também fica tonto e começar a se perder nos braços desse outro. Percebemos, ao olhar no fundo dos olhos do parceiro da vez que reflete nossa máscara, que também não sabemos bem quem somos quando amamos. Ao vislumbrar um fragmento de verdade nesse outro, nos perdemos.
Podemos dizer que — face a esse encontro com o real — aqueles que imaginam que deveriam ter feito mais aulas de danças, que tentam compreender o que rolou naquele encontro e voltar a si para continuar sua busca pelo objeto e por esse outro ideal estão do lado todo da sexuação. Já aqueles que, por um instante, suspendem a lei da busca pelo objeto, transcendem o princípio de identidade, esquecendo de si mesmos e cogitam que seu parceiro, talvez, não seja nenhum daqueles mascarados mas a dança em si, estariam do lado não-todo. Uns são fiéis a lei e ao desejo, já outros permitem se entregar ao gozo e a possibilidade de não submissão completa ao seu objeto mais caro. A relação sexual não existe porque, nesse baile, nunca dançamos com quem dança conosco e a desproporcionalidade dos mascarados é a própria música que anima essa festa do impossível, que é o amor. E, repare, isso não tem nada a ver com “gênero”, com “homem” e “mulher” ou com “quem conduz” e quem “é conduzido” na dança. A diferença entre todo e não-todo não é uma diferença sexual, é uma diferença do sexual. É a diferença produzida pelo encontro com essa coisa chamada sexual, e a desproporção dele decorrente.
Agora, é claro que algumas danças duram anos, outras, dias. Mas não acho que essa deva ser a medida de uma boa lida com a (não) relação. Você me pergunta se é possível ficar numa relação não-toda. Eu diria que a questão é pode a nossa relação em relação às nossas relações ser não-toda? Ou seja, estamos prontos para que nossos ideais sobre relações sejam postos em xeque dada a primazia de um encontro, ou de um desencontro? E, mais ainda, se o não-todo passa a ser um objetivo, um destino, uma direção, ele não perde justamente seu âmago de verdade? Não seria tentar encaixar uma abertura do gozo na régua de um desejo fálico de completude?
Agora, para embaralhar as coisas ainda mais, uma pequena polêmica. Lacan assume, anos depois de enunciar que a relação sexual não existia, que ele tinha exagerado! Pois, para ele, se algo é colocado em termos de “sim” ou “não”, já seria muito suspeito. Mais do que isso, ele revira totalmente o tal princípio da não relação sexual e vai dizer que a relação sexual, sim, existe, quando não há equivalência sexual. E, por outro lado, quando há essa tal equivalência sexual, a relação sexual não existe. Esse adendo, que exploro mais na minha tese, vira de ponta cabeça os mantras que nós lacanianos adoramos repetir sobre as inexistências, da mulher, da relação sexual, do Outro… Resumindo, podemos dizer que a partir do momento que meu encontro com o outro é marcado por uma não equivalência, por uma diferença radical que nos leva além da especularidade identitária, algo acontece ali, uma relação com o real se estabelece. E por que não chamá-la de relação sexual?
Voltemos agora à questão do íntimo. Arriscaria dizer que quando a relação sexual toca algo do íntimo, ocorre uma espécie de transformação que, num mesmo movimento, suspende a dualidade da relação e faz do íntimo um êxtimo, algo que na radicalidade de sua intimidade torna-se exterior e, ao mesmo tempo, por ser tão exterior, me dissolve e borra as fronteiras entre o eu e o outro. Tais momentos — sempre evanescentes — sejam de briga, de sexo, de início ou de término, são, talvez, aparições do não-todo no interior de uma relação, pois há aí um horizonte no qual o amante pode, digamos, deixar de ser assombrado por seu fantasma.
Nossa, acho que falei demais! Bom, invertendo a lógica da coisa, termino essa primeira rodada pelas preliminares: muito obrigado pela conversa, que já me abriu mil questões, como você pode ver! Agradeço também o convite da Fabiane Secches e espero que essa conversa possa entrar na frequência da revista e derivar com liberdade.
Renata Rampim: O artista antecede o psicanalista, e você articula de forma poética arte (dança) e psicanálise. Aliás, viajei em sua resposta e fui para “Noite dos mascarados” e “Ela é dançarina”, do Chico Buarque. Ambas dialogam com o desencontro na e da relação sexual. Dois campos de saber que dão voz ao sujeito, que possibilitam uma abertura aos sentidos fixados de uma herança mal-dita em que, muitas vezes, o sujeito esteve colado durante uma vida. Arte e psicanálise, duas formas de cura, se assim posso dizer, através do amor. Amor de saber, por saber, de transferência…
Arte e psicanálise dão sentido e deixam, ao mesmo tempo, escoar sentido por meio da palavra e do corpo. Aliás, a palavra e o corpo são indissociáveis, a clínica psicanalítica nos lembra isso a todo tempo.
Acontece que, em detrimento do bem dizer que a psicanálise e a arte — em suas diversas expressões — operam nos sujeitos, temos as questões sociais e sabemos que nem todos ou melhor, a maioria não tem acesso a essas duas formas de amor capazes de possibilitar uma vida um pouco mais digna.
Você enxerga outros modos, outras ferramentas de tratamento pelo não-todo além dessas duas de modo que não seja apenas para uma minoria?
Pedro Ambra: Comecemos por essa sua formulação complexa e muito instigante: “Arte e psicanálise dão sentido e deixam, ao mesmo tempo, escoar sentido por meio da palavra e do corpo.” A comparação entre psicanálise e arte é tentadora e não vejo por que não seria possível. Por outro lado, como você mesma retomou, o artista antecede o psicanalista e, mais ainda, a arte antecede — e muito — a psicanálise. Se ambas fossem um casal, eu diria que seriam menos o funcionário e a dançarina do Chico e mais uma criança apaixonada por sua professora do primário. Mas, mesmo sendo a psicanálise uma criança maravilhada por uma arte que lhe ensina e a surpreende, mesmo que a psicanálise lhe imite maneiras, replicando suas lições, não é por isso que ela, como boa criança, não faça também suas artes por aí. Essa psicanálise é também aquela que escapa da cartilha de abstinência protocolar e permite-se tentar uma impossível tarefa de — ao mesmo tempo — derrubar o sentido e restituí-lo à vida do ou da analisante. Fazer semblante de objeto a para o sujeito que escutamos talvez seja nos travestirmos, a cada análise, de uma espécie de João Bobo particular, que some a cada soco/palavra que se crê final e reaparece, sorridente, de outro lugar. É claro que, às vezes, dada a potência de cada dizer, resta ao analista retornar com força e, não raro, acertar nossos analisantes. Daí que a análise é um processo também onde o retorno invertido do sentido nos deixa sentidos. Aliás, sempre que penso no sentido o escuto também como o particípio do verbo sentir. Daí, acho que as operações de destituição, escoamento e restituição do sentido em psicanálise sempre têm um resto corporal que nos deixa sentidos. Ficar sentido é ser tocado por algo que ultrapassa as aparências, é forte, mas ao mesmo tempo não precisa ser destruidor. Um possível fim de análise — ou uma melhor lida com o não-todo, se quiser — pode ser pensado como um momento em que os sentidos que me atravessam sejam sentidos enquanto tais, sem a tirania da angústia, e esquivando da alfândega fálica do todo. Sentir o sentido num corpo que é fala é, ao mesmo tempo, dar a ele um lugar e deixar com que passe por mim sem a ele me fixar.
Agora, acho que aqui encontramos uma encruzilhada. Pois a formação analítica, nossas experiências no e do divã, e a própria lógica da teoria analítica apontam para o não-todo como um devir preferível, digamos assim. Nesse campo, temos uma ética baseada em uma intimidade com as extimidades singulares: segura na mão do teu sinthoma e vai! Contudo, a passagem dessa posição para questões sociais é muito, mas muito problemática e arrisco dizer que não seria nem desejável. Me explico.
Em primeiro lugar, essa noção psicanalítica de sujeito— além de não se confundir com a de sujeito político — depende de um certo dispositivo. Alguns dizem até que não há sujeito fora da análise, por exemplo. Mesmo sem ir tão longe, me parece que importar uma direção de tratamento (específica, aliás, para certas neuroses) para uma ação política é ignorar que o não-todo depende de uma consolidação e de um atravessamento do todo. Em termos políticos, como propor uma relação não-toda com a lei, em um país que padece, entre outros males, da ausência de direitos fundamentais para a maior parte da população? Pode o genocídio e o encarceramento em massa da população negra e pobre no Brasil ser vencido sem uma pressão política dos movimentos negros que, muitas vezes, tem na identidade sua força motriz? Poderia a população trans ter conquistado o direito à alteração de nome no STF a partir do gozo do Outro? Creio que não. E aí me parece que os psicanalistas erram ao imaginar que o Brasil são seus neuróticos de consultório, que comem e dormem bem, que têm a liberdade de se questionar sobre a profissão e, para quem, uma aposta no não-todo é indicada. Isso não implica dizer que haja sujeitos estruturalmente distintos, mas que nossas ferramentas teóricas e clínicas têm limites e aplicações específicas. Uma humildade social, mas também epistêmica por parte da comunidade analítica me parece bem-vinda aqui. Afinal, será mesmo que até hoje as feministas, por exemplo, não leram Lacan corretamente? Será que os movimentos sociais vão se embasar em autores de outras tradições porque lhes falta análise e experiência com o gozo? Parece mais plausível pensar que é a nossa teoria, da maneira que a apresentamos, que encontra dificuldades para informar propósitos emancipatórios.
Isso não significa, porém, que não possamos pensar em outras formas políticas de emergência do não-todo. Agora, para isso é necessário que a psicanálise, como em seus tempos áureos, se deixe afetar pelo mundo e pelo real que, como dizia Lacan, emerge em um dado momento no tempo, ou seja, é historicamente determinado. Me pergunto até quando deixaremos nossa interpretação do não-todo ser colonizada por figuras imaginárias sugeridas por Lacan, como os místicos ou mesmo a Mulher inexistente. Será que não conviria pensar o não-todo, por exemplo, nas epistemologias feministas interseccionais? Não são elas que puxam, em nosso tempo, o coro contra o universalismo que não é apenas fálico, mas branco e heterossexual? Nessa toada, confesso que vejo muito mais não-todo em Angela Davis do que na estátua do Êxtase de Santa Teresa! Não é Achille Mbembe um interlocutor das questões de universalidade e particularidade muito mais rico e menos fetichizado do que os matemáticos de que Lacan dispunha à época de seu ensino? Pensar, num contexto pós-colonial, a raça como alteridade radical como fez Frantz Fanon não levaria a epistemologia psicanalítica muito mais longe? Acho que é hora de deixarmos a suposição metafísica de que a lógica matemática sustenta a verdade da psicanálise e irmos de encontro a uma lógica Outra, de uma alteridade verdadeiramente radical. Ao invés de levantarmos nossas tábuas da sexuação contra as políticas contemporâneas e as acusarmos de quererem fazer a relação sexual existir, talvez possamos escutá-las como a vanguarda de um não-todo muito mais radical do que nos foi possível pensar até agora. Talvez isso não seja nada mais nada menos do que ocupar uma posição psicanalítica: ao invés de impor nossos sentidos dados de antemão, convém escutar as emergências de verdade e deixar com que sejam elas as protagonistas e não nosso suposto saber.
Renata Rampim: Gosto da ideia do não todo como uma aposta política. Acredito na força do coletivo e dos movimentos sociais como potência transformadora que efetivamente provocam efeitos no mundo.
Sua provocação sobre as figuras ilustradas por Lacan para falar do não-todo em contraponto às epistemologias feministas e ao coletivo é urgente e necessária, lembrando o próprio Lacan quando defende que o psicanalista deve acompanhar a subjetividade de sua época (estamos efetivamente acompanhando?).
Certa vez, Charcot disse aos seus alunos: “teoria é bom, mas não impede que as coisas existam”. Nesse sentido, também concordo com você na urgência de pensar em novas epistemologias que incluam e acompanhem as mudanças subjetivas de nossa época. Entretanto, acho que não dá para “descartar” o trabalho de Lacan por outros e novos modos de fazer, quero dizer, um não exclui o outro, mesmo porque, se hoje conseguimos conversar sobre a possibilidade de um não-todo Outro é porque ele nos deixou as bases… Que acha?
Para terminar, me permita algumas divagações: vira e mexe me pego pensando: que pena a psicanálise ser para tão poucos, para uma minoria… mas, logo em seguida (na maioria das vezes), sou surpreendida por outro tipo de pensamento: Você acha, mesmo, que a psicanálise pode salvar o mundo? Acha que ter voz, ser amparada discursivamente, se dar conta de um desejo e sustentá-lo, “dar voz a quem é silenciado” (como disseram Ramos e Dias em um projeto sobre a voz) pode incluir (quase) todos? Não. Não inclui, não é possível. Aliás quem pode fazer uma análise hoje? Desculpe a ironia, mas, quem é o ‘usuário’ do divã nos consultórios de psicanálise? Que público é esse? Certamente não é o mesmo usuário que frequenta o sistema público de saúde. No entanto, penso que os poucos que se deitam num divã e são afetados pelo desejo de analista, conseguem no um-a-um (se quiserem) sair de trás das paredes dos consultórios, “do conforto do seu consultório” — como lembrou Miriam Debieux — e ir de encontro com o real da estrutura social”. Bem, se acho, genuinamente, “uma pena” que uma pequeníssima parcela da população ou ‘não-(quase)-todos’ possam se beneficiar de uma análise (e da arte também) é porque acredito e sinto n(a) potencialidade de seus efeitos na vida.
Pedro Ambra: As duas questões que você coloca estão intimamente ligadas. É impossível conceber uma outra escuta e prática psicanalítica sem um questionamento sobre as bases de nossa teoria. E, claro, não se trata em absoluto de descartar contribuições importantes de Lacan e outros psicanalistas. Mas temos a responsabilidade de lê-los sempre tentando extrair o verdadeiro cerne de sua teoria, para além das capturas imaginárias que seus exemplos ou momentos históricos carregam. Foi, aliás, o que Lacan fez com Freud: seu “retorno a Freud” é, sobretudo, uma escolha de que traços da obra freudiana responderiam melhor às questões clínicas que se colocavam para Lacan naquele momento. Precisamos nos autorizar a nomear os limites de nossos autores canônicos para ousarmos ser radicais lá onde eles não foram. Assim, acho que a proposta do não-todo vai muito além da inexistência da Mulher (como mostram as questões de gênero) e da experiência dos místicos medievais (como os trabalhos recentes que o pensam a posição do analista e o fim de análise a partir do não todo e do gozo do Outro).
A questão do alcance social da prática analítica é antiga e extremamente complexa. Se tomarmos como exemplo a policlínica de Berlim nos anos de 1920, vemos que — curiosamente — o oferecimento de tratamento analítico à população pobre se articulava intimamente com a formação psicanalítica. Não me parece coincidência que essa tenha sido uma época de grande florescimento teórico e clínico da psicanálise: todo sofrimento psíquico se entretece com um quantum de sofrimento social e poder realizar uma escuta que evidencie essa relação enriquece muito o saber analítico. Aliás, cabe a pergunta: seria esse enriquecimento lícito? Ainda hoje, muitos psicanalistas tiveram suas primeiras experiências de escuta em clínicas escolas, cujos usuários não pagavam ou pagavam muito pouco pelos atendimentos. Ou seja, se a psicanálise se desenvolve a partir da construção de um edifício teórico cujos pilares são, também, a escuta de sujeitos sem condições financeiras de pagar uma análise, não se desenharia aí uma espécie de dívida simbólica?
De toda forma, há no Brasil importantes tentativas de fazer a psicanálise sair dos muros. A clínica do cuidado em Belo Monte, as clínicas públicas em São Paulo, as clínicas do testemunho, para citar só alguns exemplos. Além de oferecer atendimento a pessoas que de outra forma não poderiam usufruir de uma análise, essas iniciativas produzem questionamentos importantíssimos não só socialmente quanto epistemologicamente.
No entanto, acho que tais modelos começam a encontrar seus limites quando se vislumbra algum tipo de ampliação do público ou sistematização da oferta. Eles funcionam muito bem dado o seu caráter pontual e circunscrito, mas sua ampla implantação encontraria um entrave de natureza material, o dinheiro. Conversava sobre isso outro dia com o [psicanalista] Wilson Franco: para que um atendimento dessa natureza possa se efetivar de fato é preciso que haja pessoas que se engajem em tempo integral nessa tarefa, contratadas. Caso contrário ela ficará restrita a quem possui horas sobressalentes em sua semana, pagas por outras fontes de renda. Corre-se o risco aí de embarcarmos, sem perceber, numa espécie de filantropia analítica. E esse me parece um jeito meio capenga de lidar com a dívida simbólica.
Uma outra forma de encaminhar esse problema seria o fortalecimento da rede que já existe nos CAPS ou uma luta pela implantação de uma política pública permanente, inevitavelmente ligada ao SUS, que incluísse a psicanálise. Mas, dado o estado avançado do projeto de sucateamento do nosso sistema de saúde, seria esse o momento ou a forma de lutar por essa especificidade da saúde mental no Brasil? Enfim, é uma baita discussão e confesso que não é um tema com o qual eu tenha muita intimidade.
Falando nela, talvez seja hora de retomar a intimidade a partir dos caminhos e descaminhos dessa nossa conversa. A inexistência da relação sexual, a princípio, pode fazer a intimidade parecer impossível. Se não há equivalência entre eu o outro, no fundo talvez nunca tenhamos esse campo partilhado de algo só nosso, afinal. Por outro lado, ao elevar o desencontro a esse estatuto fundamental, talvez a gente possa falar de uma outra intimidade, uma intimidade do desassossego. Estar com alguém (amante, amigo, analista, analisante, e toda essa turma do a, do desejo) pra valer é saber que esse contato sempre vai deixar alguma área com uma coceira não coçável. Assim, bancar uma relação íntima não é ver o outro nu, mas topar sustentar esse desencontro, que se mostra das mais diversas formas. Sustentar uma cicatriz do passado, um desejo que não pode se efetivar, uma posição transferencial difícil e, até mesmo, construir um término que, retroativamente, condense o que foi uma dada (não) relação, são formas de fazer a intimidade. Fazer, sustentar, bancar: talvez a intimidade não exista em si, para além do que se o encontro permite. Intimidade é o que surge ao se ver no olhar do outro e saber que o outro se vê no nosso olhar: a risada — ou o tesão — que evitamos nesse eterno jogo do siso que é a vida.
Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e pela Sorbonne Paris Cité, é professor, pesquisador e autor de diversos trabalhos sobre psicanálise, gênero, sexualidade e teoria social.
Renata Rampim é psicanalista. Mestra em Psicologia Social pela PUC-SP, atua tanto em consultório quanto no Centro de Atenção Psicossocial-CAPS III.
Ilustração de Celeza Ramalho
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