Muito se fala sobre os excepcionalmente sombrios Índios do Cáucaso. O fascínio que causam vem cercado de questões: terão efetivamente existido? Como compreender sua insólita trajetória? O mais provável é que o assunto perdure tanto quanto supostamente durou o império desse “povo” — ou seja: tempo demais.
Seja como for, e mesmo que as fontes sejam duvidosas e que as alegações sejam improváveis, o assunto parece merecer alguma tinta. De forma que, confessando de antemão meu despreparo e amadorismo, arrojo-me aqui em uma breve narrativa acerca desse povo, seus desígnios, conquistas, seu desaparecimento. Se não servir como documento, quiçá ao menos sirva como alegoria ou passatempo.
Conta-se que os Índios do Cáucaso são um povo originário de uma região encravada na Europa (uma das tantas terras que se propôs ao longo da história como centro e coração da espécie humana), região denominada Cáucaso (daí, evidentemente, o nome atribuído a esse povo); conta-se, ao mesmo tempo, outras histórias, remetendo a outras origens – algumas únicas e pontuais e precisas, outras frágeis e multifárias. Representantes desse próprio povo, em geral, contam-se a um só e mesmo tempo como herdeiros e descendentes da grandiosidade dos povos das montanhas de gelo ao Norte do continente, da arrogante genialidade dos povos vivendo às margens do mar Mediterrâneo e da ascética divindade de um grupamento profético formado na região do Levante, como se fossem filhos de três terras, filhos de três tempos e filhos de três pais.
As origens do povo, em resumo e a bem da verdade, não parecem assinaláveis com clareza. Isso não parece casual ou fruto de imprecisão documental: trata-se, ao que tudo indica, de um povo que não é propriamente um povo, e sim um conglomerado — um clã disperso e heterogêneo, organizado por um propósito e tendo sua origem comum surgido apenas a posteriori. Essa é a hipótese mais provável, ao menos sob as lentes dos antropólogos e arqueólogos com cujos trabalhos mais simpatizo.
Segundo essa interpretação, os Índios do Cáucaso — ou “caucasianos”, como eram referidos à época — são um povo organizado na já referida Europa, por força do contraste que os habitantes desta região viam entre si mesmos e os demais humanos da Terra. Essa diferença organizava um fascínio ambíguo, fonte de desejo e repulsa pelos demais povos. Essa diferença, já tomada como “superioridade”, no período que eles intitulavam “Era Moderna”, organizou as campanhas de disseminação desse povo e esteve na base da sustentação da grupalidade peculiar a todo período posterior a isso.
Apesar de todos esses temas e de seu interesse, creio que o mais decisivo e digno de nota em relação a esse povo é sua religiosidade. Assaz peculiar, a religiosidade caucasiana previa devoção absoluta e ininterrupta à divindade de referência deste povo; a era Caucasiana, no fim das contas, pode ser resumida à dominação dessa estranha forma de religiosidade: o culto ao deus Dinheiro.
Dinheiro é um Deus sem forma, sem atributos, sem história e sem valor. Os homens mais poderosos dentre os Caucasianos ostentam devoção absoluta a Dinheiro, sacrificando homens e terras e família e todas suas vidas em nome do acúmulo do que chamam, pouco criativamente, de “dinheiros”.
Os “Dinheiros” são quantidades abstratas, virtualidades, submetidas a formas tão rigorosas quanto esotéricas de cálculo e ponderação. Conforme os Índios do Cáucaso expandiam seus domínios, impunham o culto ao deus Dinheiro, e se multiplicavam enormemente as quantidades de “dinheiros” sendo produzidas e circulando em meio aos adeptos, aos pregadores e aos escravos.
Dinheiro, assim, passou a ser o motor por trás do avanço ininterrupto e infinito dos caucasianos. Conforme os caucasianos estendiam seus domínios, Dinheiro era cultuado com somas cada vez maiores de “dinheiros”, que eram coletados, acumulados e produzidos por cada vez mais “caucasianos”. Os “dinheiros”, no entanto, foram se avolumando a ponto de esgotar os recursos materiais disponíveis para a manutenção do império deste estranho povo — como se a materialidade e a atualidade fossem consumidas pela virtualidade pura (virtualidade, diga-se de passagem, que é o provável único atributo claramente discernível de Dinheiro).
A propósito, é relativamente seguro supor que os Índios do Cáucaso foram extintos pelo peso da virtualidade que tomaram como centro organizador de seu modo de vida. A trajetória dos caucasianos pode ser explicada de forma simplificada como um acúmulo de virtualidade, de modo que em seu momento crítico os caucasianos pouco interagiam com os demais exemplares de seu povo, com seus ofícios e fontes de sustento, com a fauna e a flora e as águas — salvo virtualmente: nos períodos tardios do império eles parecem ter adotado modos de vida quase exclusivamente pautados por sua devoção ao Dinheiro, vivendo vidas crescentemente embebidas na virtualidade que ele representava e (com o perdão do paradoxo) encarnava.
É objeto de debate se os caucasianos foram materialmente extintos, ou se entregaram à virtualidade e passaram a ser docilmente conduzidos por povos que os seguiram na história, ou ainda abandonaram a face da Terra em direção a algum paradeiro distante onde exercem até hoje a virtualidade mais pura possível.
Há quem diga que os caucasianos nada são senão um mito, uma metáfora acerca dos riscos do individualismo e da preocupação com o impalpável. Há quem diga que sua existência só pode ter sido muito mais local e restrita do que usualmente se supõe, dado o caráter evidentemente insustentável de seus modos de convivência e manutenção no tempo.
Quanto a mim, tendo a supor que em algum momento — ou ao longo de séculos — eles construíram sua partida definitiva da materialidade, entregando seus próprios corpos e existências à virtualidade, esperançosos de encontrar com Dinheiro em sua impalpável morada. Teria sido assim que, em sua gloriosa derrocada, eles teriam enfim se tornado justa e simplesmente isso: cédulas e cifras e perfis e avatares em um vastíssimo cálculo de sacrifício a seu etéreo, voraz e indiferente deus.
Wilson Franco é doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, psicanalista, professor e escritor.
Imagem: Alec Monopoly
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