A Lua é mais perto de São Paulo do que a Holanda. Foi o que um amigo disse uma vez. A gente estava meio bêbado, voltando de ônibus de um bar, e ele apontou o céu: taí a Lua. Cadê a Holanda? Esses dias, olhava a superlua e me senti tão longe da Holanda, da Itália, da Inglaterra, dos meus pais. Estamos todos a chorar ouvindo Eleanor Rigby, tentando acompanhar Michael Stipe em seu acelerado end of the world as we know it ou live de cantora sertaneja.
Virei de lado o celular enquanto assistia ao video da Gabriela Prioli. Tentava ler as lombadas dos livros dela e o único que realmente deu para ler foi STALIN em letras grandes e brancas sobre um fundo preto. Dali fui para a minha própria estante e virei o pescoço. Em geral — e não sei o porquê—, tombamos o pescoço para o lado direito para livros em inglês e para a esquerda para os em português. Coloquei o dedo sobre o Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, como se fosse uma peça de xadrez. Aí me veio então a memória um livro que eu não tenho e nunca tinha lido: Viagem em volta do meu quarto.
Nem todos somos Montaignes, Shakespeares ou Newtons preparando ensaios, escrevendo Rei Lear ou tratados de física, mas todos, ricos ou pobres, podemos empreender a viagem que Xavier de Maistre propõe em seu pequeno livro. A primeira coisa a se fazer é buscar uma edição em PDF ou comprar na Amazon por alguns reais. Aí já tem em mãos um belo guia de viagens, um roteiro para a única aventura possível em tempos de pandemia. Escrito em 1794, Viagem em volta do meu quarto é a mais famosa paródia dos diários muito comuns no século 18 — em especial Viagem ao redor do mundo, de seu contemporâneo Louis de Bougainville.
Enquanto escreve, de Maistre está confinado em casa. Ficaria ali por quarenta e dois dias para servir pena depois de um duelo. Se fosse hoje, estaria de tornozeleira eletrônica. Em certo capítulo, o autor jura que não faz a viagem só porque calhou de ficar preso em casa. Diz que por muito tempo tinha a intenção de percorrer o quarto com olhos de viajante, mas que os dias de confinamento apressaram a inspiração. Quantos diários imprestáveis de Covid-19 estão sendo produzidos? A maioria interrompidos por idas a geladeira ou escroladas no Twitter e — ufa! — jamais sairão do isolamento de um arquivo sem nome. A menos que seja um enfermeiro do SUS, fica proibido publicar qualquer diário deste período.
Xavier de Maistre descreve sua cama como se tivesse em lugar digno de cartão postal: é onde nascemos, fazemos sexo, morremos. É dela que ele tem a melhor vista dos elmos do lado de fora, do céu de verão europeu. Nossas quarentenas pessoais têm as janelas da televisão, do computador, do celular e têm os memes. Cruzar o confinamento com humor é outra coisa que nos une ao autor, que nas caminhadas usa o seu casaco de inverno, vai em direção ao quadro de uma camponesa em cenário alpino, depois se encontra com a própria imagem em um espelho e afirma: qualquer reflexo é melhor que um Rafael. O espelho é a selfie — deve haver algum filtro renascentista no Instagram para que possamos repetir a epifania.
Percorrendo a América do Sul, Alexander von Humboldt, este sim um viajante no sentido clássico da palavra, queria fugir da vida tediosa e encontrar as maravilhas do mundo. Difícil fugir da vida e do tédio nesta fase, mas é um alento conseguir encontrar maravilhas em sua própria casa, olhar os lugares mais visitados com olhos de inocentes de viajante. Por outro lado, organizar um roteiro rigoroso para cada dia da viagem é algo que irrita o nosso autor. Para ele, não é desejável dizer que vai visitar três ou quatro lugares, que vai almoçar aqui ou ali ou sentar-se exatamente naquela poltrona às três da tarde. Ele parece seguir o seu trajeto sem muito planejamento. É o que temos para hoje: viver o dia, fazer o almoço, ver os gráficos com as contagens dos mortos.
Lá fora, o mundo parece estar se arrumando para quando pudermos voltar. Tenho ouvido passarinhos estranhos de manhã, que se juntam ao habituais sabiás e bem-te-vis. Parece que há mais estrelas visíveis no céu noturno. Não sou daqueles que acham que os humanos somos o vírus. Se usamos a cabeça, poderemos voltar a usar para resgatar o mundo da selvageria de uma economia destruidora. Depois de quarenta e dois dias, Xavier de Maistre fala do sentimento ambíguo da liberdade que o aguarda. O “peso do mundano sobre suas costas mais uma vez”. O limbo que vivemos tem o seu valor. Estamos todos nos preparando para o momento pós-pandemia e é mais ou menos como aquele sentimento de planejar a viagem: pode ser a melhor parte.
James Scavone é formado em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado e sócio do estúdio e consultoria Sincronicida.de.
Imagem: “O quarto em Arles”, de Vincent Van Gogh.
0 Comments