Христина e a guerra
O meu corpo foi amolecendo ao longo da semana com as notícias. Tenho uma dificuldade de lidar com o horror que extrapola a angústia emocional e se torna física. Então não leio nenhuma informação muito a fundo, quando muito passo os olhos pelas manchetes. Confesso que na maior parte do tempo chego a ficar dias sem ler notícia nenhuma, presa no mundo de ficção que meu trabalho proporciona. Mas hoje logo cedo a palavra “Bucha” me chamou atenção numa chamada da revista New Yorker.
“Collecting bodies in Bucha” dizia a manchete em inglês em cima de uma foto que, mesmo no formato diminuto da tela do celular, me pareceu monstruosa. Fiz um comentário sobre esse nome soar familiar, e meu marido disse que era a cidade alvo dos massacres de civis feitos pelos russos durante a semana; eu certamente havia lido em notícias. Eu sabia que não era isso. A palavra vinha de outro arquivo do meu cérebro, não do setor de fatos e informações. Apertei um pouco a memória e então a imagem veio como um flash. Percorri as minhas fotos no celular e lá estava: um print screen feito no sábado.
Naquele dia, Kristina — a ucraniana mais nova da família que se refugiu no apartamento ao lado do nosso, na Suécia — passou um bom tempo aqui em casa. Ela tem 5 anos e foi a primeira vez que entrou aqui desde que eles se mudaram, um mês atrás. Até então, a dinâmica tinha sido a minha filha Liv ir brincar lá na moradia deles, de onde voltava sempre com tranças rebuscadas no cabelo, feitas pela tia da menina. Esse convívio deve ter dado confiança à família refugiada e, no sábado, pela primeira vez, Kristina tocou a nossa campainha e entrou, pronta para explorar o nosso território.
Desde a primeira vez que brincaram juntas, Liv comentou que Kristina fala sem parar. “Deve estar com saudade dos amiguinhos”, explicamos. Assim como nossa filha, nós não entendemos nada do que Kristina diz. Ela tampouco entende a gente. Mas esse é um problema desimportante: elas brincam, nós gesticulamos, eu uso algumas palavras que pesquei nas interações com a família — spassiba, harashó, príviet, duma. São palavas que reconhece do curso de russo e sinto que talvez fosse possível se comunicar minimamente com elas nesse idioma, mas me paralisa o pudor de usar a língua do inimigo com uma família em fuga.
Em algum momento da tarde, eu sento com as meninas para brincar com adesivos, que colamos em pequenos livros feitos de papel. São cartelas com personagens colantes tirados de filmes da Disney, da Pixar— esses produtos exportados mundialmente que acabam tornando possível uma espécie de conexão cultural (bizarra, já que não se trata da cultura de origem de nenhuma de nós três). Kristina vai falando nomes apontando para as figuras, alguns coincidiam com português ou com sueco, e me agarro àqueles gravetos de contato para ficarmos uma boa hora fazendo nossas colagens.
Então Jonas e eu sentamos para um almoço tardio — Liv já tinha comido e entendemos que Kristina também. Minha filha quis ver um filme no iPad e a menina ucraniana optou por ficar conosco. Nós dois comendo e ela falando, falando. Não parecia querer nada, o tom era mais de quem conta algo. A mim pareceu que estava continuando a história dos adesivos. Jonas reconheceu os nomes dos seus dois irmãos, eu inferi que estivesse falando dos filmes, talvez eles não gostassem por serem mais velhos. Em algum momento pensei ter ouvido “mama”, essa palavra que, segundo meu pai, promove um tipo de mandinga em qualquer progenitora.
Será que ela queria alguma coisa? Achei melhor adotar o método que aprendi com a mãe dela: usar o google translate por voz. Coloquei o aparelho perto de Kristina e ela falou. Apertei o botão da tradução e o texto não fez nenhum sentido pra gente. Aparecia a palavra Bucha e lembro de ter comentado com Jonas que devia ser o nome de algum personagem em ucraniano. Fiz um print da tela para depois tirar sarro com o aplicativo de tradução.
Corta para hoje cedo, quando reli a mensagem da menina. Na hora deu um nó no meu estômago. Talvez por pensar que Kristina e sua família poderiam ser aqueles corpos mutilados da foto da revista norte-americana e de tantas outras que circularam na semana passada. Talvez por perceber com uma nitidez assustadora que a Bucha para onde aquela menina de cinco anos quer voltar não existe mais.
Ao longo do dia, o nó foi subindo do estômago para a garganta, até virar duas poças de água que não saem dos meus olhos. E me veio à mente uma outra lembrança de sábado. Um momento entre os adesivos e o almoço em que Kristina me pediu com sinais para colocá-la em cima do batente da escada. Levantei a menina e ela ficou ali sentada, muito alegre, não queria descer. Perdi o pudor e tirei uma foto das duas: Kristina sorridente com seu livro de adesivos na mão e as pernas no ar, Liv atrás dela de pé na escada com seu sorriso contagiante e os dedos em vê. Logo Jonas veio e disse que era perigoso sentar ali, colocou Kristina de volta no chão.
Escrevendo isso hoje penso que subir ali talvez fosse o jeito daquela menina evitar o chão de um mundo onde caminham homens que executam outros homens. E penso também na ironia da palavra perigoso ser usada a um metro do chão num apartamento de classe alta num país rico e estável. Se entendesse a nossa língua, a pequena Kristina provavelmente teria apontado essa ironia e dito: “perigoso mesmo é estar viva nesse mundo”.
Helen Beltrame-Linné é roteirista e consultora de dramaturgia. Colunista da Folha de S. Paulo, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta do caderno Ilustríssima, na Folha.
Imagem: Fotografia de James Nachtwey para a revista New Yorker.
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