A casa do pai é um romance de Karmele Jaio — autora de outros dois romances, três livros de contos e um de poesia — publicado no Brasil pela Editora Instante, com tradução de Fabiane Secches. Em 2020, recebeu o prêmio Euskadi de Literatura, a maior premiação da literatura basca. Impossível não notar a dedicatória logo no início: “a todos os homens novos”, escreve Jaio, um endereçamento que ganha muito valor ao final da narrativa, pois estamos diante de uma reflexão bem-sucedida a respeito da masculinidade e do sufocamento pela consistência dos modelos de gênero que atravessam as gerações.
O livro nos fala a partir de três vozes diferentes, dos personagens Ismael, Jasone e Libe. Enquanto elas nos conduzem, podemos ouvir outras vozes, incluindo, quem sabe, as nossas, as de nossos pais e nossos avós. Por isso, uma das forças do texto de Jaio está na habilidade de ir do singular ao coletivo, do micro ao macro, do familiar ao universal.
Ismael é um escritor em crise, cujo bloqueio da escrita é sintomático, faz eco no corpo e nas relações desgastadas. Ele quer escrever sobre uma mulher, mas como escrever sobre algo tão desconhecido, enigmático, inalcançável? Sua esposa, Jasone, está sufocada por uma frase antiga e abundante na cultura, aquela terrível sentença “por trás de um grande homem, há uma grande mulher”. É ela quem corrige os textos, quem aprimora o trabalho do escritor da casa; uma mulher que inicia, aos poucos, uma revolução do próprio desejo, um percurso de redescoberta que começa a partir do vazio deixado pelas filhas que saem de casa. A melhor amiga de Jasone é sua cunhada, Libe, a irmã mais velha de Ismael, que entra na história como a personagem que é capaz de dizer não à herança determinista e seguir adiante na tentativa de reformular o destino imposto às mulheres. Durante a narrativa, porém, percebemos que não é simples assim, afinal, será que algum de nós pode escapar completamente dos imperativos sociais que engessam os papéis familiares?
Através de uma escrita fluida e transparente, entre uma voz narrativa e outra, Jaio indica que a costura do romance começa a ser tecida pelo título. A casa do pai não é apenas a casa em que crescem os dois irmãos, berço das relações abafadas com um pai imperioso. Não é apenas a casa em que Ismael vê sua mãe chorar, cena que marca para sempre o silêncio das coisas não ditas: “os silêncios das famílias são como cimento, ou se retifica a tempo, ou vai endurecendo até se converter em algo sólido e imutável, o que antes podia ter sido retirado com facilidade”. Tampouco é a apenas a caverna abaixo dos montes, imagem desse lugar escuro onde ficam soterradas as palavras familiares. A casa do pai é, além disso, a morada do patriarcado, constructo do machismo estrutural que fere a cada um de forma particular, sem exceção.
Entre 1912 e 1913, Sigmund Freud escreveu “Totem e tabu”, um texto que conversa com o livro de Jaio por também trazer à luz a ambivalência dos sentimentos e as forças obscuras daquilo que silenciamos. Freud constrói a ideia de um pai com plenitude de poderes e que tem, sobre seus filhos, a potência de uma identificação consistente, que condensa medo e admiração — esse seria o sistema fundante da civilização e, por isso, estaríamos, todos nós, submetidos a ele. Essa organização seria a base dos nossos paradoxos internos, pois somos constituídos por forças opostas que tornam, como escreve Freud, “o temor mais forte que o desejo”, e o resultado disso não é outra coisa senão esse sentimento opaco, pesado e tão presente em A casa do pai: o sentimento de culpa.
Aqui está o tesouro deste livro, a mina de ouro de sua habilidade reflexiva: a forma como Jaio amarra o machismo estrutural ao sentimento de culpa, o primeiro sendo totalmente responsável pela abundância do segundo na cultura, nas relações familiares, no direito censurado de sermos aquilo que somos. A culpa é a engrenagem do sofrimento de Ismael, Jasone e Libe, essa culpa carregada pelo desejo de desorientar-se em relação à herança patriarcal, de dar basta a tantas imposições silenciosas.
Culpa e medo são elementos primordiais da subjetividade das personagens. Através deles e, depois, além deles, a autora constrói uma história de árduas transformações que são capazes de impulsionar a guerra sobre a qual a personagem Jasone tanto fala; não uma guerra aos homens, mas uma guerra a um modelo de homem que ainda sustenta e reforça diversos tipos de violência. É uma guerra promovida pela esperança, uma batalha pela derrubada dessa masculinidade danosa que penetra toda existência.
Carlos Zanón, em sua coluna para o El País, afirma que A casa do pai acerta sobretudo no jogo de espelhos que promove: “uma mulher escrevendo um romance a partir do olhar de um homem que tenta escrever um romance a partir do olhar de uma mulher” (minha tradução). Esse é o exercício de Ismael, olhar não só para as mulheres, mas para o que elas veem; desse lugar, o que se pode enxergar é aquela engrenagem que já conhecemos, cujos braços nos amarram desde sempre. E então, é hora de “voltar ao início e começar a dar passos sobre um caminho conhecido, mas ciente de algo de que não sabia antes”, como escreve Jaio.
Nesse caminho que nos aponta a autora, nos damos conta de que é possível transformar as histórias quando se pode entender que a força feminina não está à margem e muito menos nas cavernas; ela está, essencialmente, no centro.
Cauana Mestre é psicanalista, graduada em Psicologia e especialista em Psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente, é mestranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná.
Imagem: detalhe da pintura “A ceia em Emaús”, de Caravaggio (National Gallery, Londres)
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