Costuma ser inevitável: diante da prole, procuramos os traços e trejeitos dos genitores. Tem a boca da mãe, o queixo do pai, se irrita como ela, ri como ele, e por aí vai… Acontece algo parecido quando uma história sai do papel e ganha as telas. É tentador procurar o livro no filme. E, nessa tarefa, quase sempre acabamos colocando a direção e o roteiro numa espécie de tribunal de onde a maioria costuma sair punida. O crime: não ter conseguido proporcionar ao público a mesma experiência que a literatura. Quanta injustiça…
Assim como os filhos não são seus pais vivendo uma época adiante, o filme não é apenas a história original transposta para outra plataforma. Filme e livro são obras distintas e merecem ser lidas em sua inteireza e individualidade. Mas o que fazer quando a matriz é um nome tão onipresente como Elena Ferrante? Talvez esse seja o grande desafio para a legião de fãs da autora ao assistir às adaptações de seus livros para o audiovisual.
A mais recente delas foi lançada no último dia de 2021 na Netflix. The lost daughter, estreia da atriz americana Maggie Gyllenhaal como diretora e roteirista, é um filme baseado no terceiro romance da aclamada autora italiana. Publicada em 2006 na Itália sob o título original La figlia oscura, o livro chegou às livrarias brasileiras uma década mais tarde, traduzido por Marcello Lino como A filha perdida e publicado pela editora Intrínseca.
Com poucos meses de distância, foi lançado por aqui também o quarto volume da tetralogia napolitana, obra mais famosa de Ferrante, cujo título — A história da menina perdida — é muito parecido com o romance, o que chegou a causar certa confusão em leitores.
Uma das características da obra completa da escritora é justamente a maneira como, em diferentes histórias e até mesmo dentro de um mesmo enredo, as personagens parecem se misturar, num processo de fusão e confusão do qual ela mesma participa. Elena Ferrante, é importante lembrar, é um pseudônimo. A identidade da pessoa de carne e osso por trás do nome permanece uma grande incógnita. Ausente de premiações ou qualquer tipo de evento público, ela só se manifesta em cartas e entrevistas concedidas por e-mail. Boa parte dessas comunicações integra o único de seus livros classificado como de não-ficção, Frantumaglia, também traduzido por Lino e publicado pela Intrínseca. Além de revelações sobre processo de escrita, referências literárias e artísticas, entre outros temas, a obra traz dados biográficos que, não por acaso, são semelhantes aos de suas personagens.
Assim, podemos encarar Elena Ferrante como uma grande criação literária, parte do conjunto de uma obra ainda em processo (ela continua escrevendo e publicando) e do qual a ausência, o apagamento, o desconhecimento, a desconsciência, a dúvida e o abandono são traços marcantes. Então, mais do que aquelas que seguem o livro como receita, talvez boas adaptações de sua obra sejam as que contêm espectros de Ferrante e que continuam, não importa a plataforma (cinema, TV, teatro…) em que são concebidas, orbitando seu universo literário.
Maggie Gyllenhaal faz isso não apenas com maestria, mas com respeito de quem realmente é fã, como já revelou ser. Para além de uma adaptação, o que a diretora parece ter realizado nas telas é uma homenagem à obra e à autora, trazendo às cenas também referências a seus outros livros. Por isso, em vez de julgar o filme a partir do livro ou comparar as duas obras atribuindo valores, um caminho mais justo com as duas peças é justapor uma à outra e olhar tanto para o que têm em comum, como para aquilo em que diferem. E, de que maneira, uma contribui para a experiência da outra. É o que tento fazer a seguir.
O devaneio na tela
A filha perdida é uma história íntima, uma grande confissão de um “gesto sem sentido”, sobre o qual Leda (Olivia Colman e Jessie Buckley, no filme), a narradora, diz, logo no primeiro capítulo, ter decidido não contar a ninguém, mas agora nos revela. “As coisas mais difíceis de falar são aquelas que nós mesmos não conseguimos entender”, afirma já nas primeiras linhas. Trata-se de um relato de mal-estar, quase um fluxo de consciência, com ares de sonho ou “devaneio de pavor”.
No livro, o enredo começa com Leda contando sobre o acidente que sofreu na estrada depois de passar mal enquanto dirigia. A perda da consciência ao volante é acompanhada pela rememoração de cenas de infância, quando a mãe a alertava para tomar cuidado com o mar. Diz: “No hospital, quando abri os olhos, me vi novamente, por uma fração de segundo, incerta diante do mar calmo. Talvez por isso, mais tarde, tenha me convencido de que não se tratava de um sonho, mas de um devaneio de pavor, que durou até que eu acordasse na enfermaria”.
No livro e no filme, Leda é uma professora universitária, mãe de duas jovens adultas que, agora, vivem com o pai. De férias, ela viaja para o litoral (italiano, no romance; grego, na tela) sozinha. Enquanto estuda na areia da praia, sua atenção acaba sendo subtraída por um trio formado por uma jovem mãe (Nina, vivida por Dakota Johnson, no filme), sua filha pequena (Elena, interpretada por Athena Martin), e a boneca da garotinha. Observá-las traz à tona as memórias de Leda jovem com as filhas pequenas. Mas não são os encantos da maternidade, a graça de ver a prole desabrochar, o orgulho de ser testemunha dos próprios traços e trejeitos repetidos nos seus descendentes que emergem. A protagonista é tomada pelo que há de mais complexo e conflituoso na experiência mãe-filhas. Rememora a dificuldade de dar conta das crises de choro, das necessidades de duas crianças pequenas que disputam o calor do corpo e a atenção da mãe e, sobretudo, a perda de si nesse emaranhado. A consequente busca do próprio eu a faz deixar filhas e marido para trás e se entregar a uma paixão por um professor.
No livro, Leda revive o passado enquanto narra também sobre sua interação com a família que conhece na praia. Em um dado momento, a menina desaparece, causando um rebuliço para encontrá-la. É a protagonista que tem sucesso na empreitada. Só que, no meio da confusão, a menina abandona a própria boneca na areia. Leda leva o brinquedo consigo e não o devolve, apesar de todo o sofrimento a que assiste no desenrolar da história.
Ferrante é uma autora que facilita a vida dos cineastas. Forja imagens com sua escrita e compõe cenas em cadência, em um desenrolar que lembra em muito a fórmula dos folhetins. Transpor os fatos para o roteiro de cinema parece simples, portanto. E Gyllenhaal, de maneira geral, seguiu a ordem do livro.
Tanto no romance como no filme, por exemplo, é o roubo da boneca e a maneira como Leda a mantém em cativeiro, como se fosse sua propriedade, que conferem boa parte da tensão na história. Há, no entanto, um desafio: levar a aura onírica, de devaneio e rememoração, para a tela de maneira a expressar a angústia e o mal estar que expressam no texto. Em outra adaptação de Ferrante, a série da HBO A amiga genial, o recurso escolhido para transpor trechos assim é a narração em off (voice-over). “Em nenhum momento Gyllenhaal usou essa que seria uma saída fácil. E o resultado ficou muito bom!”, diz o tradutor Marcello Lino.
Em vez disso, a adaptação do romance simplesmente alterna cenas de tempos diferentes (o presente da narrativa e a memória de Leda). E o faz com tanta sutileza que não causa ruído ou dúvida de que, embora a atriz seja outra, trata-se da mesma personagem enquanto jovem.
La frantumaglia e os corpos picotados
Talvez a estratégia mais interessante usada pela direção seja a dos cortes de câmera fechados em partes de corpos e pequenos gestos, o que nos leva para a intimidade dos momentos. São como pequenos picotes de imagem, compondo uma narrativa que muito se assemelha à maneira como as lembranças e os sonhos surgem à nossa mente.
Merece destaque uma das cenas iniciais, em que Leda está no mar. Ali, mergulha e boia. Em vez de um corpo por completo, vemos fragmentos: o torso, os seios, o rosto de perfil, pedaços dos braços e das pernas se mexendo submersos e, então, a silhueta deformada pelo efeito da água. Conscientemente ou não, a diretora faz ali um aceno à ideia de despedaçamento presente na obra de Ferrante e expressa no termo frantumaglia, em italiano.
No livro A filha perdida, Leda faz menção a ele em um diálogo que trava com Nina. Ao tentar traduzir a sensação que a moça descreve como um certo “desnorteamento”, a protagonista diz: “Minha mãe usava outra palavra, chamava de despedaçamento”. Embora tenha sido traduzida assim para o português, no original em italiano, Ferrante usa mesmo frantumaglia neste trecho.
No livro que leva a palavra no título, em uma carta enviada a seus editores antes da publicação de A filha perdida, a autora discorre com mais detalhes sobre o termo. Conta que a mãe o “usava para dizer como se sentia quando era puxada para um lado e para o outro por impressões contraditórias que a dilaceravam”. E ainda que a frantumaglia “é o depósito de tempo sem a ordem de uma história, de uma narrativa”, ou “o efeito da noção de perda”. Parece bastante com o que Leda demonstra sentir no filme.
Ferrante e o erotismo
“Pouco se fala, mas o sexo é um grande tema na obra de Ferrante e achei que as cenas em que ele está presente ficaram muito bem resolvidas”, observa Marcello Lino, tradutor também de outros dois romances de Ferrante no Brasil e do infantil Uma noite na praia (Intrínseca). Ferrante não trata só de sexo, mas permeia sua obra de erotismo, trazendo o tema para situações polêmicas, como na relação mãe e prole ou entre duas amigas.
Se no livro esse aspecto pode passar despercebido a alguns leitores, em meio à fricção de acontecimentos, no filme, ele aparece de maneira explícita. E o recurso de cenas picotadas e cortes fechados colabora para isso.
Vale a pena prestar atenção nos detalhes de outra cena inicial em que Leda observa a garotinha Elena brincando com a boneca e o corpo da mãe à beira do mar. Fechadíssima no olhar de Nina, a câmera percorre incerta o corpo da atriz, passa por pernas, panturrilha, um pé tatuado e, então, foca rapidamente no olhar apaixonado da garotinha para a mãe.
Na sequência, vemos Leda observando a dupla e, depois, a câmera abre mostrando a cena completa: a mãe estirada sobre a cadeira de sol, usando um biquíni diminuto e sensual, sobre um corpo bonito e bronzeado banhado com regador de brinquedo pela menina, que brinca colocando mãe e boneca em pé de igualdade. Do encanto, Leda passa à tristeza e a um mal-estar que a faz levantar e buscar um refresco na barraca de praia.
A fórmula se repete em outras interações, como quando Nina e Leda se encontram na vila e a moça olha para a professora com algo mais do que pura admiração. Ou ainda quando a protagonista jovem canta e vibra com a andarilha interpretada pela italiana Alba Rohrwacher que a família abriga durante as férias. É, aliás, ali que, tanto no filme como no livro, Leda desperta uma sexualidade que, até então, parecia sepultada pela vida doméstica. Cenas antes, a protagonista e o marido surgem fazendo sexo. Ela parece muito excitada até que percebe que ele está apenas performando. “Você não está duro”, acusa e, desapontada, levanta em direção ao banheiro.
Aqui, atenção para um detalhe divertido: em inglês, duro é “hard”. O nome do professor por quem Leda se apaixona na sequência é Hardy, um sujeito que a mobiliza sexual e intelectualmente. No livro, Leda menciona a falta de graça do sexo com o marido, mas a cena em que ele não está devidamente excitado não existe. Foi uma criação de Gyllenhaal, ao que parece, para explicitar o que está por trás do nome do personagem.
A metáfora do chapéu
O filme é repleto de detalhes mais ou menos sutis como esse e prestar atenção neles torna a experiência mais rica. Tanto nas páginas como na tela, Nina ganha um chapéu do marido quando ele chega na praia com o grupo de homens que o acompanha. O presente é parte do combo macho controlador, que puxa a mulher pelo pescoço, mistura gestos de carinho com violência discreta e determina como ela se comporta, se veste, com quem anda, para onde olha.
O aparecimento repetido do objeto (estratégia narrativa chamada leitmotiv e usada para reforçar, sem tornar muito explícito, um aspecto da história ou dos personagens) pode ser lido como metáfora para a postura esperada de uma mulher em uma sociedade patriarcal. Ao presentear a esposa com o chapéu, é como se o marido de Nina a estivesse colocando dentro de um papel delimitado: o de esposa e mãe. É o adereço que a garotinha Elena está usando quando, depois de se perder, é encontrada por Leda. É ele também que Nina tenta, em vão, segurar sobre a cabeça enquanto conversa com Leda na feira de antiguidades, cena em que confessa estar tendo um caso fora do casamento. Para fixar o objeto, Leda a presenteia com um alfinete, como sua avó costumava usar, fazendo uma referência clara aos “bons modos” das mulheres do passado. “Não vai cair mais”, diz. O alfinete, por sua vez, é o que Nina usa para ferir Leda nas cenas finais da história, depois de descobrir que foi ela quem roubou a boneca de sua filha.
Grécia, Itália, mitologia e Leonard Cohen
Quando começaram a pipocar as notícias de que A filha perdida ganharia vida nas telas em uma produção americana, surgiu a dúvida: em que língua o filme seria falado e onde se passaria? Não é mera curiosidade de fã. A Itália — Nápoles e o napolitano, em especial — ocupam papel importante na obra de Ferrante. O modo de vida e toda a dinâmica social napolitana são onipresentes no trabalho da autora. Estão no DNA das personagens e das histórias. “Isso, no entanto, se perde no filme, que é falado em inglês e se passa no litoral da Grécia. Mas precisamos lembrar de que se trata de uma adaptação com limites de produção e orçamento e o resultado, como filme, é bom”, lembra Lino.
Embora não seja a língua principal, o italiano não é completamente descartado. Ele aparece nas cenas em que Leda canta e conversa com a andarilha italiana que hospeda e em outra, romântica, em que desafia Hardy a recitar o poema Leda e o Cisne, de William Butler Yeats, de quem a protagonista é tradutora. A menção ao poema não é firula de roteiro. O texto do poeta irlandês, de alto poder erótico, faz referência à mitologia grega em que Leda é esposa de Zeus.
No mito, o deus do Olimpo se transforma em Cisne e faz amor com a mulher. Nada disso, no entanto, está no romance. Ao trazer tais elementos de intertextualidade para o filme, Gyllenhaal reverencia também a origem do nome das personagens que, segundo a própria Ferrante, vem do mito grego. Diz a autora, em Frantumaglia: “Houve uma fase em que planejei escrever sobre a futura belíssima Helena de Tróia como uma menina feiosa, cheia de terrores animais e esmagada pelo fulgor da mãe, Leda, amada por Zeus sob a forma de cisne. Mas o mito é muito complexo, com uma variante mais complicada do que a outra, e não fiz nada nesse sentido. Em A filha perdida, ficaram os nomes: Elena e Leda vêm daí.”
É bonito ainda observar que, ao contrário do que acontece em boa parte das produções audiovisuais que têm a Grécia como locação, no filme de Gyllenhaal, a paisagem do lugar não ganha grande destaque, nem se sobrepõe às personagens e ao enredo.
Mas é divertida a discreta homenagem a Leonard Cohen e sua passagem pelo local. Quando Leda recebe Lyle (Ed Harris) no apartamento, ele conta sobre o passado, a ausência como pai, a vida boa no litoral grego e se vangloria de ter escrito canções com o poeta e cantor, que, diz o zelador, viajava de Hydra, outra ilha grega, até Sapetes, onde a história se passa.
Cohen morou, mesmo, na Grécia durante um período importante em sua biografia. Tanto pelo trabalho — escreveu, compôs e fez seu primeiro show no lugar —, como para o amor. Foi em Hydra que viveu o romance com a norueguesa Marianne Ihlen, para quem compôs o clássico “So long, Marianne”. É interessante notar ainda como Lyle do filme é caracterizado de maneira muito semelhante a Cohen maduro: um sujeito magro, de cabelos brancos e curtos, que usa camisa e boina.
Há ainda um outro detalhe que talvez seja mera coincidência ou referência espontânea, dessas que o inconsciente traz à tona. Em uma das cenas finais, Leda, já passando mal em decorrência da alfinetada que levou de Nina, dirige na estrada à noite. É quando se sente mal e acaba sofrendo o acidente. E também o momento em que o tal “devaneio de pavor” poderia ter acontecido. Por alguns segundos, vemos apenas o asfalto iluminado pelos faróis do carro e a escuridão no entorno. A imagem lembra bastante o filme Estrada perdida (The lost highway, 1997), de David Lynch. O cineasta americano é conhecido por produções filmadas como se fossem um sonho, que parte da crítica e dos espectadores julga ser sem sentido. A coincidência está nos títulos também, já que ambos tratam sobre algo que se perdeu. E Gyllenhaal já revelou que Lynch é uma de suas referências de direção.
“Nada além de uma filha que brinca”
A boneca é mais do que um objeto importante para a história. Ela é uma personagem que tem papel no motor da narrativa e interage de fato com as outras personagens. É o que acontece na cena em que parece regurgitar, exatamente como um bebê, na roupa da protagonista. A interação é semelhante quando Leda tira da boneca o que parece ser um verme. É a boneca também quem, de certa forma, estabelece a conexão entre todas as personagens femininas da história, promovendo um jogo de papéis. Brincando na areia da praia, a menina faz a mãe de boneca e também a boneca de filha ou ainda de vítima de seus golpes, depois de assistir aos pais brigando violentamente. A garotinha ainda diz que o brinquedo, assim como sua tia, está grávida. Mas é, sem dúvida, Leda quem vai mais além nessa dinâmica. No romance, na cena em que a boneca regurgita, ela diz: “Eu mesma estava brincando naquele momento, uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”.
A psicanálise nos lembra que uma brincadeira não é só uma brincadeira. Donald Winnicott criou o conceito de objeto transicional. Ele pode ser um brinquedo ou qualquer outro elemento que funcione como a chave de um portal para o universo simbólico. É o que acontece naturalmente com as crianças, mas adultos também passam pelo processo. Antes de Winnicott, Freud já havia discorrido sobre a brincadeira entre os crescidos. Em Uma longa experiência de ausência (Claraboia, 2020), a psicanalista e crítica literária Fabiane Secches explica: “Para Freud, toda criança, ao brincar, se comporta um pouco como um escritor literário. Através da brincadeira, como os escritores fazem com o texto, as crianças criam o próprio universo”.
No filme, essa ideia fica por conta da excelente direção de arte. Boa parte das cenas em que Leda interage com a boneca acontece no banheiro. Por excelência, o cômodo é o lugar da casa em que a privacidade é resguardada e onde, portanto, podemos ter momentos de intimidade com nós mesmos, sem censura. Sendo adulto ou criança, a brincadeira está liberada. A produção teve o cuidado ainda de criar um ambiente lúdico, em que boneca, paredes e peças são todas da mesma cor, azul, em tons variados. O cenário fica, assim, muito parecido com uma brincadeira de criança mesmo, quando meninos ou meninas elegem uma cor predileta e pintam ou escolhem tudo sempre igual. Até mesmo Leda surge de azul em uma das cenas em que está ali.
A ausência da dúvida
A história de Ferrante é sobre as contradições e complexidades da maternidade. É também sobre as agruras de ser mulher em um mundo comandado pelos homens. Mas, para além de tudo isso, a autora trata daquilo que é o berço da literatura: a tentativa de dar sentido, por meio das histórias, àquilo que não conseguimos explicar. As personagens de Ferrante escrevem para narrar suas próprias experiências de vida. Experiências contraditórias e para as quais não há respostas fáceis. Por vezes, aliás, simplesmente não há respostas. Apesar da narrativa fluida e, aparentemente, simples, seus romances são construídos sobre fendas por onde passa alguma luz, mas nunca é possível enxergar com clareza o que há do outro lado. Como leitores, somos tragados por uma espiral de curiosidades que nunca conseguimos sanar por completo.
Afinal, quem é a filha perdida? Por que Leda sequestrou a boneca? Por que uma mulher madura e instruída não conseguiu se livrar da culpa por ter abandonado as filhas? Seria o romance um grande devaneio, uma história inventada pela protagonista para tentar explicar as coisas que “nós mesmos não conseguimos entender”, como diz nas primeiras linhas do romance? E mais: Leda termina a história viva ou morta?
É verdade que algumas dessas perguntas também ficam sem resposta nos espectadores do filme. Mas seria muito esperar que uma produção comercial realizada por uma plataforma de streaming do porte da Netflix pudesse criar uma obra nesse nível de complexidade. Apesar da fala de Hardy, durante a aula em que ele cita o trabalho de Leda — “Sempre que alguém tenta suprimir a dúvida existe tirania” — o roteiro resolve algumas das dúvidas abertas pelo romance.
É o caso do que acontece com dois dos poucos diálogos da história que, transpostos para a tela, foram simplificados em um só. No original, em um deles, a protagonista conta a Nina e à cunhada que deixou as filhas com o pai e foi embora, causando choque. Ao que Leda responde: “Às vezes, precisamos fugir para não morrer”. É uma frase impactante, que certamente funcionaria também na tela. Em um outro momento, quando se encontram na feirinha do vilarejo, Nina pergunta mais sobre o que aconteceu com ela nessa época, sempre em busca de uma resposta clara e conclusiva para o que Leda fez. A conversa é longa (ocupa sete páginas do romance), enigmática e repleta de contradições — assim como é a experiência de maternidade, tema central da obra.
O cinema é uma plataforma e tanto para bons diálogos. Alguns filmes valem justamente por causa deles. A produção da Netflix, no entanto, não investiu no recurso. A conversa entre Leda e Nina se resume a três ou quatro falas mais conclusivas do que complexas.
Outro reducionismo que poderia ter sido evitado é o desfecho da história. As cenas são belas. Primeiro porque retomam o início da história: Leda deitada à beira do mar, depois de ter passado mal dirigindo. Segundo porque faz uma referência ao romance de estreia de Ferrante, Um amor incômodo, história que a narradora inaugura contando sobre a morte da mãe, que se afogou. O texto de A filha perdida, porém, tem um final aberto, que suscita variadas interpretações e coloca em dúvida, inclusive, passagens das páginas anteriores. À pergunta das filhas, que ligam para saber se a mãe está bem, Leda, já ferida pela alfinetada de Nina, responde: “Estou morta, mas bem”. Leda estaria mesmo morta e este seria um relato póstumo? Ou ainda: o que em Leda morreu depois de tudo o que aconteceu? Tudo o que lemos até aqui é verdade ou não passou de um devaneio da narradora? Na tela, Leda responde: “Não, na verdade estou viva”. E quanto a isso, para mim, não restam dúvidas.
Giuliana Bergamo é jornalista e Mestre em Literatura e Crítica literária pela PUC-SP, com pesquisa sobre as protagonistas narradoras de duas obras A filha perdida, de Elena Ferrante, e Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado.
Imagem: cena do filme The lost daughter (2021), de Maggie Gyllenhaal.
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