Não sei exatamente por que assisto a todos os filmes de Noah Baumbach se o único realmente bom é A Lula e a Baleia (2005). Fora ele, tenho alguma afeição por Frances Ha (2012) e acho os outros medíocres, mas é de Deus.
Mistress America (2015) é uma espécie de continuação de Frances Ha. As personagens são outras, mas ele segue na proposta de mostrar problemas em uma relação entre duas garotas. Na verdade, o que menos importa é serem duas garotas. Ambos os filmes são sobre a dificuldade de estabelecer vínculos num mundo de relações fugidias. Só que em vez de se voltar para namoros, casamentos, aquilo que todo mundo já sabe que azeda, ele lança esse mesmo olhar da fragmentação para as relações que ainda vemos como sólidas. Em Frances Ha, a amizade. Em Mistress America, uma tentativa de família.
Frances (Greta Gerwig) é uma aspirante a dançarina que enxerga a melhor amiga e roommate, Sophie (Mickey Sumner), como uma espécie de reserva afetiva em uma Nova York fria e hipisterizada em que as relações são comodificadas até o talo. Aguentem uma análise FFLCH porque é o que a casa tem pra servir.
A comoditização surge em diversos pontos do filme. Frances e o namorado terminam durante uma negociação sobre aluguéis e gatos. Ele quer morar com ela, mas não como um projeto romântico: quer ter alguém para dividir o valor e o cuidado com os dois gatos que deseja comprar, e que trata como mercadoria o tempo todo. Já ela quer renovar o contrato de aluguel com a melhor amiga. Os dois rompem em um diálogo em que ela se oferece para pagar por um dos gatos e ressalta que o valor de mercado dele vai ficar prejudicado sendo um “solteiro com dois gatos”. Depois, numa conversa com a amiga, Frances avalia o ex em termos de performance, quantidade de sexo obtido, repetição.
O rompimento com o namorado não é nem um pouco traumático porque a relação real de Frances é com Sophie. É para ela que Frances pede “me conte a história da gente” (uma história em que as duas são bem sucedidas, têm amantes e não maridos e são invejadas por todos), é com ela que divide a vida.
Na maior parte das cenas entre as duas, Frances está de corpo presente enquanto Sophie está com a atenção dividida. Enquanto Frances lê alto para a amiga, Sophie fica no celular. Enquanto Frances faz basicamente qualquer coisa física e presente, Sophie abre uma janela para fora dali. Em dado momento, Frances reclama disso, com algum humor. A amiga responde: meu celular não deixa a louça na pia por semanas.
Num ambiente de trabalho competitivo e precarizado — aos 27 ela ainda está tentando numa profissão em que a validade dos corpos é baixa—, num contexto em que relações amorosas duram (e significam) cada vez menos, parece muito esperto da parte de Frances depositar sua lealdade na amizade, um laço aparentemente menos perecível que os demais.
Um pouco mais bem-sucedida do que a amiga — ela é editora-assistente numa grande editora— Sophie, tem outros planos e, pouco depois do fim do namoro de Frances, avisa que quer se mudar para outro apartamento, com outras pessoas, num lugar que a amiga não pode pagar. O aviso é feito no metrô e Sophie precisa dar resposta sobre o apartamento no mesmo dia. Ela nem se incomoda em fingir que as coisas são de outro modo: os argumentos fornecidos são “o apartamento é ótimo”, “é a rua onde eu sempre quis morar”. A própria Frances não consegue externar descontentamento afetivo com a situação. Os argumentos que ela usa não são “mas somos amigas, mas você está me trocando por um apartamento”. Ela apenas diz que a amiga precisa arcar com o aluguel das duas até o fim do contrato. Não há espaço para uma exigência afetiva, só para exigências contratuais. Como diz um amigo meu, hoje em dia é tudo os indivíduos, os contratos e vambora. O contrato das duas, no caso, não é renovado.
De um turno, Frances fica sem casa (ela não pode bancar o apartamento sozinha), sem namorado e sem amiga, já que Sophie não apenas muda de casa como desaparece de cena, deixando claro o aspecto circunstancial da relação. A amizade das duas era relativamente longa: tinham feito faculdade juntas, moravam juntas. Mas circunstâncias também podem ser longas.
No apartamento vazio, a falta de Sophie ganha uma dimensão material. O único protesto de Frances depois da separação também se dá materialmente: liga para reclamar que ela levou embora uma chaleira que as duas compraram juntas. “We bought it together, remember?”. É o vínculo que tem pra hoje.
A perda de Sophie é seguida de uma busca pelas coisas perdidas: os elos, o lar. Frances vai morar no quarto menor do apartamento de dois garotos ricos. Basta uma noite boa, um jantar em que ela própria faz todo o esforço afetivo, cozinha, dança e tenta agradar, pra Frances se encantar com a idea de uma amizade de sitcom. Quando Sophie finalmente reaparece para um breve encontro entre um compromisso e outro, acha a casa de Frances muito autoconsciente. Ela rebate dizendo que é tudo ótimo e que ela e os roommates possuem a tal amizade de sitcom.
Não tem uma tentativa de contato humano no filme que não seja mediada pelo dinheiro e pelo consumo de experiências. Num jantar com um dos amigos ricos, Frances quer pagar a conta, mas o restaurante só aceita cartão de crédito: “Não tenho cartão de crédito, não sou uma pessoa de verdade”.
No fim, Sophie troca sua carreira por um noivo rico, Frances ajusta suas expectativas e aceita um emprego de escritório na companhia de dança, que ela concilia com alguns trabalhos como coreógrafa. Vai morar sozinha num apartamento muito longe do Soho de Sophie e continua considerando a amiga como a “sua pessoa”.
Baumbach poderia contar essa história como uma história de amor, de casal, mas as pessoas facilmente achariam que o problema está na fragilidade do desejo, em como “hoje em dia temos opções demais e fica difícil escolher”, em como o ser humano “não foi feito” para estabelecer um vínculo amoroso de longo prazo. Optando pela amizade, ele retira esses fatores e respostas prontas, embora ainda seja possível jogar tudo na conta da dinâmica da metrópole ou em sei lá que justificativa as pessoas dão para a falência das relações hoje em dia. Me parece claro que dinheiro e trabalho exerçam uma função central no filme, assim como nos nossos problemas contemporâneos para manter e estabelecer vínculos. A amizade não é nem pode ser um tipo de relação isento dos problemas de todas as outras relações que estabelecemos. Se somos descartáveis e descartados no amor e no trabalho, por que não seríamos na amizade?
A resposta de Frances Ha é: podemos sim, e somos.
Algumas pessoas (meus amigos) enxergam o fim do filme como um ajuste saudável de expectativas por parte de Frances. Eu acho que profissionalmente pode ser: ela aceitou o emprego de escritório na companhia de dança, entreviu que podia ser uma boa coreógrafa, ainda que dificilmente seja a coreógrafa do table-book que todos invejam, não caiu numa narrativa de que quanto você descobrir o que *realmente nasceu para fazer*, o céu será o limite. Mas do ponto de vista das relações pessoais, o ajuste parece violento: ela permanece sozinha, os amigos continuam sendo aqueles péssimos amigos de sempre, Sophie parece ser a Sophie de sempre.
A cena final em que ela mede o próprio tamanho no batente do novo apartamento e tenta encaixar o próprio nome no interfone (não funciona, daí a abreviação para Frances Ha) me parece uma cena em que ela se redimensiona e abraça a solidão. A cara de contentamento, no entanto, aponta para uma mitologia contemporânea da pessoa que se basta, uma lógica que não me agrada muito. Não tenho nenhuma solução melhor para oferecer a Frances, mas queria que ela demonstrasse algum tipo de saudável insatisfação com o que lhe é oferecido.
Já em Mistress America temos essa caloura de faculdade aspirante a escritora típica Pessoa Boa de filme que se veste, age e fala como A Menina Legal Que Na Primeira Cena Você Sabe Que É Legal. E temos Greta Gerwig num papel de Pessoa de Sucesso. Mas é a Greta Gerwig, então não dá para cair no papel. Só quem cai é a escritora, que na verdade é a espécie de vilã do filme.
Tracy, a escritora (Lola Kirke), e Brooke, a Mistress America, se conhecem por sugestão dos pais delas, que por sua vez mal se conhecem, mas vão se casar. Ambas parecem maravilhadas com a ideia de um vínculo familiar, de ter uma irmã. Mas Brooke é obcecada por sua autoimagem. E Tracy é a escritora que transita pelo mundo usando as outras pessoas como material.
Brooke não fez faculdade e vive de uma sobreposição de subempregos: como professora de spinning numa academia, decoradora, dando aulas de matemática para uma criança, fazendo o que aparecer enquanto tenta embalar essa precariedade triste numa aura descolada. O restaurante que ela quer abrir reflete esse modo errático. Ela quer que pareça o lugar onde você gostaria de ter ido na sua infância, quer que seja acolhedor, familiar (um familiar armado, já que não é o restaurante onde você foi na sua infância, e sim onde queria ter ido numa outra infância, muito melhor). Mas também quer que seja uma série de coisas: que sirva comida, que agregue, que as pessoas possam ir trabalhar, e conversar, e apenas estar, e quem sabe pode ter um espaço pra isso, praquilo e praquilo outro. Brooke passou a vida colecionando pratos “sem saber por que” e espera que o restaurante possa ser a coisa que vai sintetizar e dar sentido a tudo que ela passou a vida juntando sem saber por quê.
O restaurante, claro, não vai pra frente (ter um restaurante é como ter um filho viciado em drogas, diz seu ex-namorado rico). Brooke depende do dinheiro do namorado rico (outro) para montar o negócio, e ele termina com ela. O casamento de seu pai com a mãe de Tracy também desanda e, do nada, ela e a meia-irmã não são nada uma da outra. Aquela relação na qual ela depositava uma expectativa de ser uma coisa menos circunstancial e volúvel que as demais vai ter que se estabelecer no mesmo grau de precariedade de todas as outras porque dependia da relação entre os pais delas, que era por sua vez volúvel. Nada na vida de Brooke tem um lastro. Tudo depende de relações (inclusive a vida financeira dela, que depende de namorados) fragilizadas.
Tracy escreve sobre Brooke no dia seguinte ao primeiro encontro das duas. Pinta a meia-irmã como uma espécie de super-heroína novaiorquina um pouco utilitarista e que não reconhece seu lugar no mundo. Brooke lê o texto e, claro, não gosta. Acha injusto ser resumida àquilo. Acha injusto que a irmã tenha escrito sobre ela e que o tenha feito depois de 01 noite juntas. Tracy tenta explicar que a personagem não é exatamente ela, é ficção. Argumenta que escreveu sobre coisas que as duas viveram. Brooke solta duas frases maravilhosas: “é, mas essa ficção está cheia de coisas que não aconteceram bem assim”. E: “você é uma pessoa muito pior do que parece à primeira vista”.
As duas acusações são verdadeiras e o texto de Tracy, a propósito, é um amontoado de clichês.
Juliana Cunha é jornalista, mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo e autora do blog Já Matei Por Menos.
Ilustração de Celeza Ramalho
* Uma versão anterior deste texto foi publicada na Confeitaria em 2016.
0 Comments