Em “Uma amizade sincera”, conto da coletânea A Legião Estrangeira, publicada em 1964, Clarice Lispector descreve a relação entre dois rapazes que a muito custo tentam dar uma forma concreta ao sentimento de amizade que os liga. Das confissões adolescentes a uma questão burocrática com a prefeitura, passando pela aventura de dividirem um apartamento, nada contribui de fato para realizar um sentimento que dispensa vivências em comum, assuntos externos ou mesmo a troca de favores. Para Clarice, percebemos, há o sentimento em estado puro, mas a limitada natureza humana ainda quer “fazer” algo com ele.
A amizade é, de fato, uma relação misteriosa. Ao contrário dos laços familiares, do relacionamento amoroso, das relações de trabalho, ela aparentemente não tem utilidade, não é essencial à nossa sobrevivência e pode ser considerada mesmo nociva (como as “más companhias” tão caras ao discurso conservador). Talvez por isso mesmo que, há alguns anos, tenha me chamado a atenção, na prateleira de um sebo, um volume intitulado Da Amizade, da historiadora Anne Vincent-Buffault.
Autora também de A história das lágrimas, Vincent-Buffault parte do trabalho de Michel de Certeau, de A Invenção do Cotidiano, e se equilibra entre estudar a manifestação dos sentimentos, que não são simplesmente uma convenção social, e o contexto sócio-histórico que proporciona a emergência destes mesmos sentimentos. No período recortado pelo livro — séculos 18 e 19 — , a amizade passa a se distinguir das relações meramente políticas que dominavam as relações extrafamiliares até então: corporações, confrarias, guildas, comunidades religiosas e sociedades científicas, todas voltadas para o sistema de troca de favores e a manutenção de estamentos sociais. Ao contrário, o conceito de amizade que surge neste período está ligado antes a profundas afinidades pessoais e só encontra seu espaço na “descoberta do outro e de si mesmo no espaço particular”. Por esta razão, a amizade tratada por Vincent-Buffault é registrada em formas de escrita pessoal que também circulam muito mais nesta época: a correspondência e o diário íntimo, ao lado de tratados sobre o tema que se multiplicam no século 18 para desaparecer em seguida, sendo que estes gêneros são praticados igualmente por homens e mulheres das classes mais altas. Ou seja, o conceito de amizade aqui tratado não se restringe aos homens, mas até suscita um debate sobre as diferenças da amizade entre homens e entre mulheres e sobre a possibilidade da amizade entre os gêneros.
A maioria das relações tratadas no livro é, entretanto, de relações entre pessoas do mesmo gênero. Fora este aspecto, as amizades não parecem seguir fórmulas sociais preestabelecidas: rejeitando as fórmulas dos antigos modelos epistolares, as cartas entre amigos privilegiam o registro sentimental, a declaração constante de sentimentos efusivos de amizade, mas a autora demora para nomear o contexto que permite e exige essa expressão tão aberta. Em pleno Romantismo, a amizade se torna um meio de autorrealização, em que amigos resistem juntos a um mundo hostil e árido de sentimentos. Ainda que se afaste dos modelos tradicionais de relação, a amizade romântica traz consigo uma carga de superioridade, pela qual os amigos compõem juntos um espaço mútuo de confiança que também é um olhar de desconfiança para o mundo exterior.
“A amizade é comércio de pureza e delicadeza.” (Diderot, amigo de Rousseau)
Vincent-Buffault se restringe aos registros de amizade em língua francesa, mas acredito que cada leitor seja capaz de figurar mentalmente, ao pensar no período, na sua dupla favorita de amigos inseparáveis. Na Alemanha, por exemplo, encontramos Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller, amizade imortalizada em uma estátua em frente ao Teatro Nacional de Weimar, que eles construíram juntos, e registrada em inúmeras cartas que eles trocavam ao longo dos dias, muito embora vivessem a uns duzentos metros um do outro, num diálogo que necessitava ser igualmente constante e documentado. “Na apropriação dos códigos de estima, a relação epistolar é ao mesmo tempo privada e pública, performática e poética.”
A legitimidade destes sentimentos é corroborada pelos diários íntimos, que, confrontados com as cartas escritas pelos mesmos autores e autoras, mostram que trechos inteiros das anotações particulares são transferidas para a correspondência. Mais do que isso: como parte do pertencimento a um grupo e também como voto à confiança tão necessária à amizade, amigos incentivam uns aos outros que mantenham diários, e ocasionalmente disponibilizam seus diários à leitura mútua, trocando-os, o que parece contrariar a própria natureza do escrito mas que reforça a escrita íntima como um passo além da natureza já privilegiada da escrita. Não basta escrever, é preciso que esta escrita seja extremamente pessoal, voltada a um grupo altamente restrito e, em última instância, que ela não tenha nenhuma aplicação prática.
Dada a sua natureza privada, cada par ou grupo de amigos se vê livre para estabelecer suas próprias convenções. Até à autora parece uma contrassenso escrever um livro sobre a amizade, e no entanto já existia pelo menos um: De Amicitia, de Cícero, mencionado abundantemente na época e a partir do qual se escrevem diversos tratados sobre a amizade, de autoria tanto masculina quanto feminina.
Embora desapareçam no século seguinte sem uma causa muito clara, os tratados de amizade no século 18 servem tanto para inserir autores e leitores nessa elite capaz de manter relações puramente sentimentais como são tratados morais, em que as características do bom amigo, não raramente, se confundem com as do bom burguês: “o amigo ideal é doce, amável, esclarecido, ao mesmo tempo alegre e capaz de gravidade, virtuoso, honesto e semelhante a ti (em pé de igualdade).”
Apesar de virtudes tão elevadas, não se deve confundir amizade com maturidade. Momento privilegiado da amizade, o Romantismo também é o momento privilegiado de outro sentimento caro aos nossos corações pós-modernos: a adolescência, justamente o ponto em que a aceitação social deste tipo de relacionamento entra em xeque. Se até então as relações adultas eram consideradas superiores às relações entre jovens — estas vistas como volúveis, sujeitas à oscilação das paixões —, para os românticos a amizade verdadeira se estabelece no período até então inédito entre a infância e a idade adulta. O lugar, portanto, em que estas relações se estabelecem é o espaço escolar, e, por uma influência rousseauniana, as famílias privilegiadas enviarão seus filhos para os colégios internos. No entanto, praticamente todas as instituições de ensino, e em particular aquelas que internavam seus alunos, eram separadas por gênero, além de muito tradicionais: militares para os meninos, religiosos para as meninas.
Ou seja, enquanto os adolescentes tentavam estabelecer as “afinidades eletivas” nas quais buscariam suas próprias identidades, as famílias desejavam os benefícios das relações estabelecidas no ambiente escolar para o futuro na sociedade e para o desenvolvimento da personalidade. No entanto, as instituições ainda reprimiam as relações de inclinação pessoal: nos conventos, por exemplo, a afeição por determinadas colegas é considerado afastamento da verdadeira caridade, e diários e memórias relatam casos de alunas que presentearam professoras pelas quais nutriam um carinho especial, sendo duramente repreendidas. Era papel da escola manter os educandos no coletivo e tolher o tempo da solidão, da descoberta de si mesmo. As escolas ainda atribuíam às amizades a pecha de influência nociva, que agravaria o pendor à homossexualidade e à masturbação. É no combate a estes “problemas” que surgem teorias médicas sobre o despertar da sexualidade, todas terrivelmente equivocadas, e a autora se diverte em mostrar que os mantenedores das instituições de ensino pareciam mais preocupados com a vida sexual de seus alunos do que com qualquer outra coisa.
Nesse contexto, não faltou quem defendesse o ensino misto, como forma de inibir os casos de homossexualidade circunstancial e sanear as mentes. É interessante que, apesar do papel secundário das mulheres, as amizades mistas eram estimuladas, em grande parte para viabilizar os “casamentos por afinidade” que se tornam o padrão da elite na época. Apesar disso, o padrão das relações entre amigos do mesmo gênero acaba se impondo: de um lado, as amizades femininas que marcam a ascensão a uma elite intelectual — a manutenção dos famosos salões —, de outro as amizades masculinas que permitem a sublimação a afetos de ordem puramente intelectual. A manutenção deste padrão se relaciona, para a autora, com o papel dos gêneros na Revolução Francesa: de início aceitas como iguais, durante o período revolucionário, as mulheres acabaram legadas novamente aos bastidores da política assim que a situação se acalmou. A exceção absoluta ao padrão de comportamento em que a mulher não se envolve com política e se fecha nos salões é, naturalmente, George Sand.
“A amizade é um sentimento tão sutil que escapa — tão logo a queremos definir, julgar, explicar — a todo julgamento, toda explicitação.” (Phillipe Soupault)
Desse modo, em meio a declarações de sentimentos delicados e afinidades difíceis de mensurar esclarecem-se muitas das determinações históricas e sociais do que chamamos de amizade. No capítulo final, em que trata das relações entre classes sociais mais baixas, a autora tem como material somente relatos das amizades no meio do movimento socialista francês, o que abre mais um aspecto da amizade que se reflete ainda em nossos dias: as relações determinadas pela afinidade ideológica, mesmo entre aqueles que não são afetados por quem está no poder. Lutamos para mudar a forma como nos relacionamos dentro das nossas famílias e com nossos parceiros e parceiras amorosos, mas acreditamos que a amizade sempre foi a mesma e a consideramos indelével, ainda que continuemos limitando nossos amigos por gênero, classe e ideologia e acreditamos que amizades antigas tem mais valor do que amigos novos.
O narrador de “Uma amizade sincera” nunca mais verá seu amigo. Ainda que o sentimento não o abandone, é penoso aos dois rapazes manter uma relação sem função no mundo burguês onde ainda vivem. Clarice Lispector tem muitos finais dolorosos, mas este conto é pungente por motivos bem diferentes.
Sylvia Tamie é professora e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.
Ilustração de Celeza Ramalho
0 Comments