Pode soar clichê, talvez seja mesmo, mas penso que cheguei ao livro de Liliane Prata armada, e saí amando. Cheguei armada de pré-conceitos quanto à escritora que trabalhou em revista adolescente; cheia de defesas e armaduras contra os riscos da identificação, dos sonhos e das angústias que um livro repleto de humanidade pode suscitar. Saí encantada com a riqueza das narrativas, com o trabalho de escritura que é evidente sem ser arrogante, com a construção sutil e aprofundada das personagens.
Com a capa de cactos que mescla flores coloridas a espinhos pontiagudos, Ela queria amar, mas estava armada (editora Instante) já nos provoca desde o título. Após reler os 20 contos que compõem uma espécie de colcha de retalhos de relações, concordo com Fabiane Secches e sua afirmação, feita no prefácio, de que “poderíamos inverter a ordem do título do livro e do primeiro conto que o nomeia, subvertendo, assim, também o sentido: ela estava armada, mas queria amar — o que sobressai, afinal, é a persistência das personagens, mesmo contra as defesas mais imponentes”. No mesmo prefácio, Fabiane cita Guimarães Rosa, e eu retomo o nosso conterrâneo em outra fala dele: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Amor, ódio, vida, encontro, loucura e descanso são todos elementos que perpassam as páginas do livro de contos.
A colcha não parece ter a pretensão de formar uma imagem homogênea, sem rasuras, mas a despeito dos tecidos por vezes ásperos que compõem certos trechos, o resultado do todo é capaz de aconchegar. A perspectiva feminina é linha que perpassa toda a trama, sem cair na ingenuidade de uniformizar o que seria esse “olhar feminino” ou esse “ser mulher”. Cada personagem é um indivíduo complexo, único, mais do que qualquer tipo de representação vaga de um gênero, classe ou raça. Não que essas características não sejam importantes — elas são constitutivas dessas personagens, mas não são capazes, de forma isolada, de definir quem essas personagens são.
A escrita de Liliane tem o que a escritora María Teresa Andruetto chama de um caráter “Particular, portanto, privado e íntimo e, ao mesmo tempo, profundamente social”. De forma sutil, a autora opera pequenas rupturas de estereótipos já consolidados. No entanto, a obra não nega que opressões existem e massacram.
Ela queria amar, mas estava armada é um livro sobre relações — amorosas e sexuais, mas também fraternas, filiais, parentais, de amizade, de vizinhança e, talvez, sobretudo, sobre a relação de cada pessoa consigo. Sobre afetos reais, não no sentido do fato verificável, mas de uma literatura que se compromete com a realidade de modo profundo. É possível que muitas pessoas se reconheçam em cenas, diálogos, pensamentos das personagens de Liliane, mas nenhuma delas é idêntica a nenhum de nós — mesmo aqueles ou aquelas nas quais a escritora possa ter se inspirado como material para sua escrita.
Cada conto, e sobretudo o conjunto que forma a obra, dialoga, nesse aspecto, ao meu ver, com o que a escritora Herta Müller afirmou a respeito das relações entre literatura e realidade: “Precisa-se demolir a presunção do vivido para se escrever sobre ele, desviar-se de cada rua verdadeira para uma inventada, pois só esta pode se parecer com ela novamente”.
Em sua literatura de caráter íntimo e social, com personagens que não são iguais a nós, mas nos lembram de quem conhecemos, somos, fomos ou poderíamos ser, Liliane nos brinda com uma variedade de temas e narradores dentro de seu tecido. Há muitas narradoras em primeira pessoa, mas também algumas em terceira. Em “O contrato”, a narração em prosa dá lugar a uma imitação do gênero dramático, e somos postos diante da cena quase diretamente. Temos ainda o monólogo da sessão de análise em “Eu te pergunto, José”, e os áudios enviados por Luiza no conto homônimo ao livro. Casamentos de uma vida inteira, flertes em aplicativos de encontros, traições, amores imaginados, famílias recompostas, abusos de várias formas, divórcios, reencontros e autodescobertas são algumas das muitas configurações afetivas e temas que atravessam a obra.
Declarações de amor de todos os tipos — amor pelo outro ou amor próprio — somam-se ao desespero, às dores, à vulnerabilidade. Lemos afirmações como, no conto homônimo ao livro, “No fundo, amor, eu preciso que você seja infeliz”. E, em “Lavínia”: “Sou uma péssima mãe. Não amo meu filho”. Quando a narradora de “Faça uma massagem nos pés da pessoa” pergunta à avó se há casamentos harmônicos, a dura resposta: “não estamos falando de harmonia, estamos falando de casamento”. Mais do que respostas, o livro reúne perguntas insistentes: “você chama isso de amar?” e “Amor não é isso?”.
Em meio a rompantes de certezas, a obra traz um emaranhado de dúvidas e inquietações sobre a vida e os significados das coisas que importam. Ela queria amar, mas estava armada remexe em feridas e traz alento. É, a um só tempo, um soco no estômago e um abraço acolhedor, sem nos permitir separar sensações de forma maniqueísta, trazendo a realidade com as suas muitas camadas superpostas, em uma prosa que consegue ser, simultaneamente, leve e avassaladora.
Ana Luiza Rocha do Valle é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo e pesquisa relações entre museologia e estudos literários.
Ilustração de Anna Babich (Shutterstock).
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