Talvez uma das mais poderosas relações nesse mundo seja aquela entre mães e filhas. Muito escrita, assim mesmo me parece amplamente inexplorada em sua complexidade, ambivalência e escuridão. Todos nós temos mães, mas as regras da sociedade parecem dizer que o único afeto que podemos destinar a elas é a gratidão profunda e um tipo de amor elevado beirando à devoção divina. Um tipo de afeto longe do feroz.
Vivian Gornick não é a única autora a tratar da relação entre mães e filhas como um domínio da violência —Elena Ferrante, Sylvia Plath, Marguerite Duras o fizeram —, mas, ainda assim soa profundamente radical ler que “meu relacionamento com minha mãe não é bom, e à medida que nossas vidas se acumulam, muitas vezes dá a impressão de piorar. Estamos presas num estreito canal de familiaridade, intensa, que nos prende uma à outra. Às vezes se passam anos seguidos de exaustão, em que ocorre uma espécie de abrandamento entre nós. Depois a raiva vem de novo à tona, quente e nítida, erótica em seu poder de exigir atenção”.
Gornick não açucara seu relacionamento dizendo que ama a mãe apesar de tudo, embora confesse que às vezes “quase chega a amá-la”. A própria mãe chega a afirmar: “você me detesta. Você sabe que me detesta”. Ao mesmo tempo que não se desvia da raiva, a autora não simplifica esse ódio, não retira dele sua complexidade quase erótica. O ódio por uma mãe não é como nenhum outro ódio, é um ódio do corpo, um ódio que ao mesmo tempo implora por ar e impede que a filha se afaste. O ódio pela mãe é um afeto feroz.
A autobiografia de Gornick (publicada no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Heloisa Jahn) é uma narrativa de duas mãos: em uma, a história do amadurecimento de um relacionamento complexo, tenso, e obscuro com uma mãe exigente, dominadora, que parece maior que a própria vida, maior do que tudo. Em outra, um “retrato da artista quando jovem”, uma história de amadurecimento intelectual e criativo que soa radical por si só.
Nós estamos acostumados com escritores e intelectuais que nos aparecem prontos, formados, perfeitos em sua arte. O mito do gênio não permite destrinchar o percurso . Mais uma vez, Gornick não é a única — Philip Roth relata sua transformação em romancista em Os fatos; Fun home é, em vários sentidos, a história de como a autora, Alison Bechdel, aprendeu a pensar —, mas o caminho dela é mais cheio de meandros, de idas e vindas, de incertezas. Gornick se tornou uma das críticas literárias mais robustas dos últimos tempos, mas em momento nenhum esse parece como um caminho certo, uma vocação, um chamado. Ela o alcança muito mais pela exploração, pelo erro, por uma investigação radical de si mesma que ao mesmo tempo se reflete e acontece nesse livro.
Talvez o adjetivo mais usado para qualificar Afetos ferozes seja “honesto”. Gornick é de uma honestidade brutal em relação à mãe, ao Bronx, às outras mulheres judias do Bronx com quem cresceu, e a si própria. Ela de fato é, mas o livro me parece movido menos pela honestidade do que por uma curiosidade da qual essa abertura é consequência. Gornick, uma mente inquieta e voraz, quer desesperadamente entender a si mesma e o que a formou, e isso não pode ser feito com ressalvas, sem que os cantos escuros sejam iluminados. Esse livro soa o tempo todo como se nascido de um impulso pessoal. É uma história de construção do “eu”, o eu-filha, artista, mulher, judia. Um “eu” do qual o Bronx é o ponto zero.
Conheço intimamente essas mulheres das quais Gornick fala. Se elas não são a geração da minha mãe, são da minha avó. Mulheres dominadoras, exuberantes, que empunham o ídiche (uma língua ironicamente tão cheia de diminutivos carinhosos e ritmos sedutores) como uma lixa contra todos aqueles que consideram estrangeiros. Ditadoras dos próprios lares onde homens, talvez fortes na rua, se encolhem como ratinhos assustados, sempre fracos em casa. As mulheres do Bronx a fizeram a mulher que é, em guerra desde o primeiro dia com um mundo que respeita outra ordem. A feminista que ela se viria a se tornar nasce nas cozinhas do Bronx.
Não é à toa que o livro alterna da claustrofobia do prédio de apartamentos em que a escritora cresceu para as caminhadas longuíssimas que ela dá com a mãe por Nova York. Essa história de autoconstituição é também a história de um distanciamento, uma entrada de ar entre o presente da escritora e o seu passado, que é impossível de abandonar, como sua mãe, mas o processo de escrita e de amadurecimento demandam distância.
Como disse, conheço as mulheres de quem Gornick fala, e conheço as suas filhas, a geração da própria autora. Filhas de mulheres brilhantes enclausuradas pela domesticidade, elas são duras à sua própria maneira, encaram o mundo como uma guerra na qual um intelecto afiado é a maior arma. E criam suas próprias filhas com essa mesma fé.
Isadora Sinay é tradutora e doutoranda em Literatura Judaica na Universidade de São Paulo.
Imagem: Vivian Gornick por Erik Tanner.
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