Para fugir da pobreza, uma família migra da Irlanda e chega ao Brasil no início do século 19. A sorte encontrada, no entanto, é bem diferente da pretendida. É por meio da voz de Margareth, uma das filhas, que sabemos dos infortúnios daquele casal e de seus seis filhos, quatro meninas e dois meninos ― os últimos a nascer, e os únicos a proporcionar ao pai alegria por sua chegada. Uma voz que mantém o lirismo mesmo para dizer de tragédias, e que guarda, em sutis inversões e em ritmo compassado por belas metáforas, algo do desterro que atravessa cada personagem.
Sorte, de Nara Vidal, publicado pela editora Moinhos e agraciado com o prêmio Oceanos em 2019, parece condensar, em suas 99 páginas, a história do Brasil. E para isso, um só país não basta: são necessários dois, um que se pretende real, um que se pretende fantástico, Hy-Brasil, que só apareceria a cada sete anos, mas que atravessa cotidianamente a trajetória da família ao longo de suas gerações.
Talvez nem dois Brasis bastem para suportar uma história cerzida na injustiça, fundada no absurdo, e que o replica incessantemente até nossos dias. O pai de Sorte, tão autoritário, machista e violento quanto seus dois filhos homens, não nos parece uma figura antiga, muito menos superada; a diferença de cotidiano e de destino de uma criança branca e uma criança negra não diminuiu, de mil e oitocentos até os anos dois mil, nem perto do que deveria. Essa diferença, que coloca, na narrativa, o menino branco na escola e o preto puxando carroça, continua incrustada em nossos olhos. E é a continuidade entre passado e presente que permite ler verbo onde há substantivo: “Olhei para a quinta pela última vez e lá, agarrada na porteira, de pé e com os olhos em chuva, Mariava”. Como se as Marias, ao longo do tempo, fossem refrações daquela, em seu estar em pé e em seu chorar; como se Mariava fosse o passado de todas as mulheres que, na história dos Brasis, até esses em que pisamos no século 21, mariassem, continuassem mariando.
As semelhanças entre passado e presente não parecem ser coincidência, mas a própria razão de ser do romance, se é que qualquer literatura necessite razão de ser. A familiaridade diante do absurdo é um alerta: enquanto nos conta a história de como nos tornamos este país impossível, indica o tamanho do próprio absurdo, tão grande que, para aproximar-se dele, só mesmo a ficção. Se é enorme o impacto da sorte de uma mulher que tem um filho e não pode ser mãe, ele transborda do livro de Nara Vidal e ecoa, desde os idos séculos, no choro audível das mulheres presas que, ainda hoje, são obrigadas a entregar seus filhos. Sorte é tanto mais atual quanto mais é arcaico; é tanto mais real quanto mais é ficção.
O premiado livro de Nara não é apenas um romance sobre miscigenação e feitiço: é um romance escrito com essas palavras, feito delas, um livro mestiço e mágico, que tem um olho de cada cor. E que nos diz, página a página, que um país que não guarda suas lendas, que não acolhe a diversidade de suas narrativas, que não cuida de suas ficções, transforma tudo isso em mentira, uma mentira que tenta cimentar tijolo a tijolo da história.
Mas Nara Vidal consegue, com Sorte, se não marretar o que foi concretado em injustiça, ao menos tirar um dos tijolos que, sem cultura, sem literatura e sem história, perpetuariam o passado narrado por Margareth e o nosso presente em um futuro tenebroso.
Natalia Timerman é médica psiquiatra, psicoterapeuta e escritora. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada por essa mesma universidade.
Imagem: fotografia da escritora Nara Vidal.
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