Apesar do segundo romance publicado por Elena Ferrante, Dias de abandono, ter saído na Itália em 2002, o livro chegou ao Brasil somente em 2016, após o sucesso da tetralogia napolitana. Ferrante anuncia, logo no primeiro parágrafo, o que será desenvolvido ao longo da trama: “Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças brigavam como sempre no outro cômodo, o cachorro sonhava resmungando ao lado do aquecedor. […] Depois assumiu a culpa de tudo que estava acontecendo e fechou com cuidado a porta atrás de si, deixando-me como uma pedra ao lado da pia”. Após quinze anos de casamento, com dois filhos pequenos, Olga é comunicada sobre o término do relacionamento. Não é algo que ela esperasse, uma vez que não houve uma conversa prévia, nem mesmo uma discussão.
Olga vivencia o “comunicado” como uma experiência traumática. Algo que acontece, um evento externo que tem consequências emocionais. A palavra trauma, de origem grega, significa “ferimento”, “ruptura”. Nessa ruptura, ela acaba lançada numa posição de passividade diante do acontecimento irrepresentável. Sem a possibilidade de se expressar, fica paralisada “como uma pedra ao lado da pia”. Oscila entre aceitar a nova realidade e esperar o retorno do marido. Não lhe parecia que ele quisesse ir embora, pois não havia levado suas coisas, nem mesmo havia se despedido dos filhos. Mas, cinco dias depois, por telefone, Mario justifica a decisão dizendo que está passando por um “repentino vazio de sentido”, expressão que, por muito tempo, ela remoeu em seus pensamentos.
“Senti frio, ele tinha ido embora, eu fiquei apoiada ao parapeito de pedra em Sant’Elmo olhando para a cidade sem cor, para o mar”. Quem entra num vazio de sentido é Olga. Vê-se abandonada, sem trabalho, com os dois filhos pequenos, o cachorro e os afazeres domésticos.
À medida que a ausência de Mario vai se concretizando, Olga entra em um vórtice de lembranças da infância, quando, aos oito anos, ouvia o choro ruidoso de uma vizinha. A mulher fora abandonada pelo marido, trocada por outra mais jovem (assim como ela). Assistiu à degradação da vizinha, que foi enlouquecendo, tornando-se raivosa com os filhos e acabou se afogando num rio de Nápoles. “A mulher perdeu tudo, até o nome (talvez se chamasse Emilia), se tornou para todos a pobre coitada”.
Aos poucos, a lembrança dessa mulher abandonada vai se transformando num tormento, numa voragem que a sugava. Como, por exemplo, lemos neste seu solilóquio: “Se ele ama outra mulher, nada que você faça vai adiantar, vai tudo desabar sem deixar rastros. Aceite que ele mudou os pensamentos, trocou de quarto, e foi correndo se fechar em outra carne. Não faça como a pobre coitada, não se desfaça em lágrimas”.
Surgem também na sua lembrança livros que leu na adolescência: A mulher desiludida, antologia de contos de Simone de Beauvoir, e Anna Karenina, romance de Liev Tolstói. Livros lidos há vinte anos, quando já queria ser escritora. Na época, não gostou das histórias dessas mulheres frágeis que se desfaziam por amor. Olga sonhava ser escritora, queria contar histórias de mulheres fortes, usando palavras indestrutíveis.
Como leitores, vamos acompanhando seu desabamento psíquico. As palavras ditas para si mesma são insuficientes, e ela vai perdendo seus contornos. Passa a falar obscenidades e explode em raiva através do dialeto. Seu linguajar, antes tão culto, contido, agora retorna no dialeto napolitano de sua infância. Através da mudança na sua linguagem, testemunhamos sua perda de identidade: não sabia mais quem era, no que estava se transformando, não se reconhecia naquelas expressões.
Essas palavras verbalizadas (para si ou para os outros) não conseguem dar conta de seu mal-estar. E assim, para se acalmar, passa a atravessar as noites escrevendo. As palavras precisam ser escritas para não evanescerem, talvez numa tentativa de resgatar seu desejo de ser escritora, abandonado após o casamento e a chegada dos filhos. Escreve cartas para Mario, cartas longas, mesmo sem saber para onde enviá-las, pois ele havia desaparecido. Nessas missivas, tenta analisar a vida conjugal, repassando todos os momentos que poderiam ser o indício de uma crise. A escrita surge, inicialmente, como uma maneira de entrar em contato com o ex-marido. Mas, aos poucos, vamos percebendo uma necessidade de entender o que havia acontecido ou quando o amor dele havia terminado.
Em Frantumaglia (2017), Ferrante nos fala o quanto as mulheres recorrem à escrita como uma necessidade, sobretudo nos momentos de crise, como um ponto de apoio, para entender e esclarecer a si mesmas. “Muitas coisas sobre nós não foram ditas até o fundo, muitas vezes nunca foram ditas, e descobrimos isso quando a vida cotidiana se emaranha e precisamos ordená-la.” A escrita, para ela, está referida ao não saber, ou seja, está situada na falta. E é a partir dessa falta que pode surgir o escrever, como uma apropriação do desconhecido.
Se, durante o dia, Olga tentava se apegar aos afazeres domésticos, às noites passava escrevendo. Era um ato de escrever até a exaustão, com seus dedos inchados e doloridos, seus olhos que lhe cegavam de tanto chorar. Um árduo trabalho de luto, de mergulhar no sofrimento: “Naquelas longas horas fui a sentinela da dor, velei junto à multidão de palavras mortas”. Noites inteiras escrevendo a dor das palavras mortas, do amor que terminou. Estava totalmente à deriva, entregue à sua escrita. Estava viva ou estava morta? Quem ela era? Seria a pobre coitada?
Olga tenta narrar sua experiência, buscando palavras para elaborar o trauma. Através das letras inscritas no papel, cria um espaço de posicionamento frente a si mesma. É uma escrita que tem como objeto o si próprio, um espaço de construção subjetiva. Mas sua narrativa também permite se perguntar sobre as histórias das mulheres abandonadas que tanto a aterrorizavam. Ao escrever sobre seus temores, sobre essas mulheres, coloca-se numa posição de organizar seu mal-estar, para entender a si mesma, experiencia-se como autora de sua existência. Uma existência que não tem uma significação única, é complexa, multifacetada; e que, no seu caso, ficou estilhaçada.
O próprio texto não é linear; nós, leitores, sentimos vertigem ao constatar o precipício em que estava. Olga nos leva junto com seu desmoronamento: “Precisava reter alguma coisa, mas não lembrava mais o quê. Nada estava detido, tudo escorregava”. A fantasia e a realidade se misturam. Ela encontra seus livros e cadernos espalhados na desordem de sua escrivaninha. No caderno em que estava fazendo anotações para seu livro, lê trechos transcritos de Anna Karenina. A memória estava se desfazendo, não lembrava de ter sublinhado de vermelho as perguntas que Anna fazia a si mesma: “Onde estou? O que faço? Por quê?”. Palavras em vermelho, que serviam como uma ancoragem para não cair: “Eu estava perdida no onde estou, no que faço. Estava muda ao lado do porquê”. Viu a si mesmo naquelas letras, naquelas perguntas. Passado e presente se confundem, a pobre coitada aparece escrevendo em seu caderno. Estava invadida por esse fantasma infantil.
No entanto, Olga não quer sucumbir, ela luta para não se desestruturar. Quer juntar os fragmentos do presente e devolver o fantasma ao passado, sendo apenas uma personagem de uma história. Estava caindo no abismo, na perda de sentido, e nós, leitores, somos forçados a olhar para a profundidade de seu sofrimento.
Durante sua caída no vazio de sentido, encontra um ponto de apoio quando se pergunta: “Que fim tinha levado a mulher que tinha imaginado ser quando era adolescente?”. Onde estava a jovem que queria ser escritora, que se identificava com mulheres fortes, com palavras indestrutíveis. Ela, que gostava da escrita de autores que a faziam olhar para baixo de cada linha entrando no obscuro, sentindo a profundidade do desconhecido. Pois Olga consegue fazer isso com seu texto-testemunho. Avançando na sua elaboração: como pode se abandonar daquele jeito? Então, para além de ter sido abandonada, ela já havia se abandonado há muito tempo. Escreve que quer aprender de novo como é estar viva, fazendo escolhas e decidindo para onde está indo. Não se identifica mais com a pobre coitada: “Queria ser eu, se essa fórmula ainda tivesse algum sentido. Ou pelo menos queria ver o que permanecia em mim, uma vez que o tivesse retirado”. Embora as cartas estivessem endereçadas a Mario, era para ela mesma que escrevia: para se encorajar, para não sucumbir, para ter no que se agarrar. Escrevia: ele foi, você fica. Não se perca, não se deixe morrer com a partida dele. Você não foi levada, apenas uma parte sua, não toda você.
Olga nos mostra uma escrita de invenção de si, em que o eu não tem uma consistência, uma forma definida. É como se, ao escrever, fosse se (re)inventando, pois, ao fazer a pergunta, abre espaço para produzir um lugar desde onde ser, para produzir uma ficção de si mesmo. Ela, aos poucos, retorna de seu estado confusional, ao conseguir amarrar a trama de sentido de sua vida. Assim, reorganiza os fios do tempo: passado, presente e futuro não estão mais enodados, embaralhados. Reconstrói sua vida como uma narrativa própria que lhe dá sustentação enquanto sujeito. Mostra-nos que é possível atravessar o sofrimento e ressignificar a existência: “Existir é isso, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que pulsam sob a pele, não há mais nada de verdadeiro para contar”. E assim, coloca um ponto final e escreve um novo capítulo de sua história.
Giovana Serafini tem mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é psicóloga e psicanalista.
Imagem: pintura A girl writing, de Henriette Browne (1829–1901).
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