Uma conversa com Giovana Madalosso
Nossos livros é que nos apresentaram: antes de que eu a visse pessoalmente, trocamos um A teta racional (Grua, 2016), coletânea de contos dela, por um Desterros (Elefante, 2017) meu, muito antes da pandemia, quando conhecer as pessoas apenas virtualmente não era assim tão habitual. A sensação de ler Giovana Madalosso pela primeira vez continua fresca em minha memória, revigorada pelos romances Tudo pode ser roubado (Todavia, 2018) e o recém-lançado Suíte Tóquio (Todavia, 2019). Costumo dizer que é uma escrita amanteigada, que tem um gosto especificamente bom e simplesmente desliza, causando risos sonoros e a comoção de uma frase perfeita que leva longe, porque tão perto ― muitas vezes simultaneamente.
Não tardamos em dar corpo às nossas palavras: meu filho mais novo estava com poucos meses quando ela veio me visitar, trazendo uma naninha de presente (objeto que, agora percebo sorrindo, figura em seu livro mais recente). No sofá azul, meu canto preferido, o lugar onde costumo me deitar para ler, engatamos uma conversa, e já não parecia a primeira vez que conversávamos, que ela vinha à minha casa, muito menos que nos víamos pessoalmente. Nascia, aí, uma parceria rara: uma amizade de dentro e de fora da literatura. É difícil soltarmos algum texto no mundo sem que a outra o tenha lido; sabemos nos criticar amorosamente e vibramos com as conquistas de cada uma. Mas o que mais me impressionou no início foi a vontade que eu sentia de escrever depois de toda vez que a encontrava.
É um privilégio acompanhar de perto o amadurecimento da escrita de Giovana Madalosso. Em Suíte Tóquio, temas que já apareciam nos livros anteriores, como a maternidade e o apaixonamento, são aprofundados com maestria, e seu estilo, que conjuga humor e profundidade, parece ficar mais límpido e reconhecível. O romance tem duas narradoras, uma babá, que está sequestrando a criança de quem cuida, e a mãe, profissional bem sucedida que vive um casamento morno e uma paixão arrebatadora. Impressiona a habilidade com que Giovana elabora duas vozes tão distintas e que consiga, com cada uma, nos tocar.
É um prazer conversar com essa grande amiga sobre livros, sobre seu novo romance e sobre mulheres que escrevem, pelo que agradeço muito o convite da Fabiane Secches, outra preciosidade que a literatura me trouxe.
Natalia Timerman — Há toda uma tradição de mulheres que escrevem. Maria Rita Kehl, em seu Deslocamentos do feminino, diz que a “onda de mulheres escritoras, sobretudo na segunda metade do século XIX, vem dar conta dos anseios e das fantasias que o silêncio das ‘rainhas do lar’ até então encobria”. Ao longo do século 20, no entanto, os homens parecem ter se apoderado novamente do espaço da autoria, configurando quase sempre a maioria quando olhamos seus nomes nas capas dos livros. Uma pesquisa realizada por um grupo da Universidade de Brasília, coordenado por Regina Dalcastagnè, por exemplo, constatou em 2017 que, nos últimos 30 anos, a autoria feminina não chegava a 30% do total em grandes editoras, ainda que esse número venha aumentando. A situação é ainda pior se olharmos para a autoria negra, que corresponde a apenas 2% do total. Como você vê a sua escrita nesse contexto? Escrever como mulher, hoje, é diferente de escrever como homem? E escrever como mulher branca? Qual poderia ser o significado disso tudo? Você considera que essa questão se traduz no texto?
Giovana Madalosso — Escrever como mulher é diferente de escrever como homem. O fato de representarmos apenas 30% dos escritores coloca um megafone na nossa mão. Não gostaria que fosse assim, preferia que reinasse a equidade e todos estivéssemos descompromissados para escrever como artista e ponto, mas, uma vez que essa diferença existe, acho bacana que uma autora pense no que está levando até o leitor. Isso não pressupõe que uma mulher deva escrever do ponto de vista de uma mulher. Essa ideia, além de ser castradora, atenta contra a natureza do fazer literário. Podemos, obviamente, escrever na voz de um homem, de um cachorro ou mesmo de uma cidade, como fez Elena Garro, e sobre qualquer assunto. O que não cabe é perpetrar narrativas que endossem o sistema de opressão do qual somos vítimas. Não só o número de escritoras é menor, como a sua projeção. Dos cento e dezesseis vencedores do Nobel de literatura, apenas quinze são mulheres. Diante desses cenários, espero uma escrita consciente não só por parte das mulheres, mas de todos. Se a cultura é a alma do sujeito coletivo, quem produz cultura não pode se esquivar da grandeza do seu papel.
Com relação à minha própria produção, sou fascinada por histórias que não foram contadas. E o universo feminino está repleto delas. Em Suíte Tóquio, conto a história de uma babá. Praticamente toda a família de classe média e de classe alta no Brasil conta com o apoio de uma babá. Como falo no livro, um “exército branco” que carrega nosso país no colo e nas costas. Apesar dessa relevância, quase não vemos representações de babás e seus dramas e conflitos de classe na literatura brasileira. Trazer histórias como essas à luz é o que mais me estimula.
Natalia Timerman — Diversos homens, na história da literatura, compuseram personagens mulheres magníficas, deslindaram suas almas, seus anseios, sua complexidade. Cito Flaubert e sua Emma Bovary, Tolstói e sua Anna Kariênina, Nabokov e sua Dolores Haze. Como você vê esse movimento em direção ao outro – à outra, neste caso – que a escrita promove? O que você acha da ideia de deixar de ler homens que escrevem narradoras ou personagens mulheres?
Giovana Madalosso — A ideia de deixar de ler homens que escrevem na voz de mulheres ou sobre mulheres é absurda. Além de ser um atentado contra o poder de alteridade da literatura, é uma manobra equivocada, à medida que anula pontos de vista e possibilidades de discussão. Acho que não devemos diminuir, mas sim aumentar o número de vozes. É na falta de diversidade que mora o problema.
Natalia Timerman — A maternidade é um tema feminino por excelência – por séculos, foi inclusive o que definiu e distinguiu uma mulher. Nas últimas décadas, a escrita sobre essa experiência parece ter se proliferado, coincidindo, talvez, com o aumento da autoria feminina e da entrada das mulheres no mercado de trabalho, o que intensificou os conflitos inerentes a ser mãe. Esses conflitos são o cerne de A teta racional e aparecem também em Suíte Tóquio. Eu costumo dizer que a escrita sobre maternidade é uma escrita culpada, pois uma mulher, enquanto escreve, não está cuidando de seus filhos. Como você enxerga tudo isso? Como foi transpor a complexidade dessas questões para Suíte Tóquio, trabalhá-las e compreendê-las no enredo, na linguagem?
Giovana Madalosso — Gosto muito quando você coloca que a escrita sobre maternidade é uma escrita culpada, posto que a mãe que escreve não está cuidando dos filhos. Não era para meus livros existirem. Foram textos escritos na teimosia, como tantas outras obras geradas por mães. A teta racional nem foi apenas escrito. Na impossibilidade de digitar, eu gravava frases, diálogos e até parágrafos inteiros enquanto amamentava, para transcrevê-los mais tarde. Suíte Tóquio só existe porque existiu uma babá cuidando da minha filha. Quantas obras deixaram de ser escritas porque outras mulheres não contam com esse tipo de apoio? Transpor questões desse universo para a ficção não foi difícil. Estava tudo fervilhando ao meu redor. Meu desafio era dar ao tema a devida contundência.
Natalia Timerman —“Lá, olhando para a mesa dela, onde havia um mata-borrão de malaquita e uma carta inacabada, seus pensamentos de repente mudaram de rumo. Pôs-se a pensar nela, no que Anna pensava e sentia. Pela primeira vez, concebeu com clareza a vida pessoal da sua esposa, seus pensamentos, seus desejos, e a ideia de que ela podia e devia ter uma vida própria lhe pareceu tão assustadora que tratou de rechaçá-la às pressas. Era aquela voragem, para a qual tinha pavor de dirigir seu olhar.” O trecho é de Anna Kariênina, e se refere ao marido da personagem-título. Além do próprio fato de que Aleksiei Aleksándrovitch não concebia que sua esposa tivesse uma vida própria, chama a atenção que ele se dê conta disso quando reconhece seu interesse por outro homem, como se todas as possibilidades de vida de uma mulher passassem necessariamente por alguém do sexo masculino. Estamos falando de um livro concluído em 1877. Você acha que ainda reverbera, nos dias de hoje, a obrigatoriedade de as mulheres se configurarem por meio de um relacionamento, por meio do amor? A profusão de livros e narrartivas acerca do amor romântico heterossexual poderia se dever a isso, ao fato de que o amor foi, por muito tempo, a única possibilidade de ascensão, redenção e transcendência das mulheres?
Giovana Madalosso — Não sei se a profusão de livros sobre o amor romântico deve-se a isso mas, ainda que se deva, essa ascensão nem é completa. A mulher, quando ascende e passa a existir através do olhar do amante, não chega a equiparar-se a ele. É imediatamente colocada no subposto de musa. Mais um lugar de dominação, e bastante claustrofóbico, porque a mulher alçada tem que atender a um modelo, mostrar-se merecedora desse amor. Acho que estamos começando a nos libertar de tudo isso, a entender que uma mulher pode viver muito bem sem ter um parceiro, filhos ou uma relação monogâmica. Ou seja, sem ter uma outra existência que justifique a sua própria.
Natalia Timerman — Em Suíte Tóquio, Fernanda se apaixona por uma mulher e passa a rever o casamento heterossexual há tempos falido. Em Tudo pode ser roubado, Rabudinha se relaciona com mulheres e homens sem que isso chegue a ser uma questão. Como foi para você, que poderia ser “classificada” como mulher cis heterossexual, escrever sobre o sexo entre mulheres? Há algum motivo específico para a construção dessas personagens – dessas narradoras – como afetiva ou fisicamente afeitas a mulheres?
Giovana Madalosso — Trato escolhas sexuais na minha literatura como trato na minha vida: sem fazer distinções entre gêneros, sem dar peso a isso na escolha do parceiro. E opto por tratar dessa forma na literatura de propósito, porque à medida que construo um mundo onde essa não é uma questão, reforço a ideia de que essa não é uma questão. Meus personagens não vão entrar em crise por se apaixonarem por alguém do mesmo gênero porque, nesse universo que idealizo, isso não é relevante. Relevante é a dificuldade de se relacionar, de manter uma relação monogâmica, de se satisfazer numa sociedade pautada por status e dinheiro.
Natalia Timerman — Personagens leitoras: Jo March, de Louisa May Alcott; Elizabeth Bennet, de Jane Austen; Jane Eyre, de Charlotte Brontë; Esther Greenwood, de Sylvia Plath; Elena Greco e Rafaella Cerullo, de Elena Ferrante. Para cada uma dessas protagonistas, os livros tinham um significado diferente, e talvez sua própria constituição como mulheres passasse por aí. Qual é o significado de ler, para você? Quais são suas referências literárias? Como elas influenciam sua escrita? O que você acha de movimentos como o Leia mulheres? E, contrapondo o ambiente de intimidade daquela leitora setecentista, como você vê, hoje, o Slam?
Giovana Madalosso — Para mim, a leitura é, antes de mais nada, um prazer e uma forma de manter a sanidade. Da mesma forma que algumas pessoas meditam e outras rezam, me prendo às letras de um livro como alguém se prenderia às contas de um terço. É no fio das linhas que acalmo minha mente, silencio meus pensamentos e vivo a dádiva de deixar de ser quem eu sou por alguns momentos ― uma experiência próxima à transcendência. Outra coisa que me seduz na leitura é o silêncio. Ler é a única forma que existe de vivermos uma história em completo silêncio, e eu adoro esse apaziguamento sonoro. Também é na leitura que me expando e encontro respostas. Ou melhor, não encontro, já que a literatura mais elabora do que crava, e também por isso é para ela que corro quando preciso. Quando um familiar teve um problema de saúde grave, fui ler os ensaios sobre enfermidade do Bolaño. Ao sofrer no papel de mãe, fui ler Contra os filhos, da Lina Meruane. Ao cogitar um casamento aberto, fui ler A convidada, da Simone de Beauvoir. A leitura para mim é origem e destino, não saberia viver sem ela.
Minhas referências literárias mudam com frequência. De alguns anos para cá, ampliei minha lista de referências femininas que, por questões culturais, era pequena. E por eu mesma ter crescido em um mundo tão pouco polvilhado de escritoras mulheres, sou uma entusiasta de iniciativas como o Leia Mulheres. E também sou uma entusiasta do Slam, que não só diversifica vozes, como reinventa a forma poética.
Natalia Timerman — Agora uma pergunta literário-pessoal: temos, eu e você, um “casamento” literário (não monogâmico), uma troca de textos enquanto ainda esboços, uma intimidade de rascunhos. Por sermos amigas, conheço muito da sua vida e sei de onde surge sua ficção, mas gostaria que você contasse aqui um pouco do trânsito entre o privado e o público instaurado pela escrita. O que você acha da afirmação de que tudo o que se escreve tem algo de autobiográfico? E, para finalizar, você pode comentar o papel dessas leituras prévias, das amigas e dos amigos, para o texto?
Giovana Madalosso — Vou começar pela última pergunta, contando que sou muito feliz no meu casamento com você. Escrever é um trabalho solitário, e ainda que na maioria do tempo eu adore essa reclusão, há momentos em que a falta de troca é dilacerante. Ter um parceiro é necessário, mas encontrá-lo é difícil. Não existe Tinder das letras. E, mesmo que existisse, a lista de predicados exigidos não é pequena. Além de ter empatia com esse parceiro literário, é preciso admirar sua escrita, suas ideias, sua forma de se colocar no mundo. Um defeito muito comum, que costuma comprometer esse tipo de relação, é quando o parceiro, na qualidade de leitor, quer moldar, corrigir ou reconceber o texto do outro sob a força do seu próprio estilo. Ou seja, parceiro literário bom é aquele que entende e respeita o terreno alheio da autoria. Por fim, essa pessoa tem que ter paciência para estar disponível para as dezenas de crises que surgem durante os processos de escrita do outro. Posto isso, posso dizer que tirei a sorte grande ao encontrar essa entrevistadora e com ela engatar uma relação que, espero, dure para sempre.
Sobre o trânsito entre o público e o privado na escrita: para mim é intenso. Concordo que tudo o que se escreve tem algo de autobiográfico. Philip Roth fez uma colocação a respeito disso que acho perfeita. Ele diz que o escritor sempre parte do trampolim da experiência pessoal. Às vezes cai perto, às vezes longe, mas sempre saltando dessa mesma e intransferível origem.
Obrigada pela entrevista, companheira.
Natalia Timerman é médica psiquiatra e escritora. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada por essa mesma universidade.
Imagem: fotografia de Giovana Madalosso por Renato Parada.
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