As múltiplas possibilidades de I may destroy you
Ao assistir aos primeiros episódios de I may destroy you, série de Michaela Coel para a BBC/HBO, me peguei pensando várias vezes sobre o título e como ele se encaixava com o enredo.
O título, que em português significa algo como “É possível que eu te destrua”, gera o questionamento sobre quem ocuparia o lugar do “eu”, sujeito destruidor, e quem seria o “você”, objeto destruído. Demorei alguns episódios para perceber que, na abertura, a palavra “you” (você) é selecionada e deletada, alterando o título para “É possível que eu destrua”, sem objeto.
Ao longo da temporada, fica claro que tanto o “eu” quanto o “você” representam múltiplos sujeitos e objetos da narrativa, e que o título é apenas mais um dos brilhantes recursos de que se vale Coel para instigar e convidar o espectador a compartilhar do seu espaço de criação.
I may destroy you segue a trajetória de Arabella, uma jovem autora londrina, após uma noite em que ela é drogada e estuprada. Ainda que o roteiro acompanhe a investigação e os desdobramentos do evento brutal para Arabella e seu círculo social, é difícil dizer sobre o que exatamente é a série. (Me lembro aqui da própria autora dizendo em uma entrevista que a série é “sobre absolutamente tudo!”).
Coel direciona seu olhar para o consentimento em suas diferentes formas, assim como para o respeito aos limites individuais nas relações entre amigos, familiares, parceiros românticos e sexuais, mas o roteiro extrapola esse olhar e toca em praticamente todos os temas caros ao zeitgeist: representatividade, a dinâmica das redes sociais e os cancelamentos, o questionamento de um ambientalismo e um feminismo sem consciência social e racial, o “autocuidado”, as origens de quem faz arte, a dimensão dos conflitos internos comparados às grandes questões do mundo. Parece ambicioso, — e é —, mas Coel parece dar conta de tudo sem que o espectador se sinta em uma discussão nas redes sociais, onde quase tudo é inequívoco e desprovido de nuances.
A amplitude do roteiro, aliada a uma estrutura narrativa com constantes mudanças de foco, podem causar uma certa sensação de vertigem na audiência. Ora parecemos estar acompanhando a vida nada ordinária de uma jovem escritora em Londres, ora a investigação do estupro fica em primeiro plano, criando expectativas de um desfecho satisfatório para a personagem. Em outros momentos, Coel parece ir em um caminho totalmente imprevisto, puxando flashbacks de personagens secundárias ou explorando aspectos aparentemente menos relevantes do desenvolvimento do enredo. Ela nos convida a uma volta em uma montanha-russa alucinante de festas, drogas, sexo, atos violentos, pequenas e grandes gentilezas, gestos cotidianos, pessoas sendo incrivelmente felizes e desesperadamente tristes, desconstruindo ideias padronizadas sobre o que comumente consideramos ser a ideia de recuperação.
O escritor estadunidense George Saunders diz que a unidade mínima de uma história é um movimento de duas partes: no primeiro movimento, o autor cria uma expectativa, gerando algumas perguntas e suposições na cabeça do leitor. No segundo movimento, o autor responde às expectativas criadas.
Considerando que a história “ideal” caminha na corda bamba entre satisfazer totalmente as expectativas da audiência e abandonar completamente o primeiro movimento, eu diria que Michaela Coel é uma exímia equilibrista. O roteiro concilia magistralmente a condução do espectador a um caminho esperado e gratificante, enquanto o deixa constantemente com a sensação de não saber com certeza para onde está sendo levado, ainda que se sinta guiado por mãos capazes.
Coel cria essa sensação de segurança através de relações expressivas entre fato e ficção — a série é baseada em uma violência sexual sofrida pela autora — e entre os elementos dentro da própria série. Um dos entrelaçamentos mais interessantes é entre os dois processos de autoria: um ficcional, representado por Arabella escrevendo seu segundo livro, e um real, que é a escrita do roteiro da série em si. Esses processos se cruzam em vários momentos e sempre de formas muito singulares.
Logo na primeira cena do primeiro episódio, vemos o quebra-cabeças que é o segundo livro de Arabella através de uma sequência de notas adesivas coladas em sua parede. Nos últimos episódios, ela freneticamente reorganiza essas notas, mudando a ordem dos acontecimentos, decidindo mudar e apagar certas partes, e finalmente resolvendo mudar o foco do seu livro. No episódio em que Zain a ajuda a encontrar caminhos para a narrativa, ele diz: “Achei que você estivesse escrevendo sobre consentimento”. Arabella complementa: “Eu achei também”.
Em um vídeo para a revista GQ em que comenta aspectos do roteiro, Coel revela que o seu processo de escrita também sofreu constantes mudanças imprevistas, com cenas que ela decidiu “em cima da hora” — como a volta de Arabella à Ostia, um momento significativo no enredo.
Em outra mistura entre fato e ficção, Coel também conta que parte do conceito da série veio de uma viagem feita à Itália para escrever Chewing Gum e na qual ela não conseguiu “produzir” absolutamente nada. Na série, no momento em que Arabella se sente mais pressionada a escrever para cumprir seu contrato com a editora, ela passa dias apenas lendo e refletindo — e não escrevendo uma linha. Sua amiga Terry diz: “Como não escrever pode te ajudar a escrever?”, ao que Arabella responde: “Simplesmente ajuda”.
Ainda sobre conversas dentro do roteiro que poderiam ser conversas sobre o roteiro, também no primeiro episódio, o agente literário de Arabella parece fazer uma espécie de antecipação do que acontecerá no último episódio. Ao terminar de ler o livro de Arabella, ele pergunta: “Está finalizado? Para onde a história vai?”, que acredito serem perguntas parecidas com as que Coel busca suscitar no espectador no episódio final, no qual são apresentadas três possibilidades de confrontamento entre Arabella e seu estuprador, e Coel escolhe concluir com uma não-conclusão. Para onde a história vai, afinal?
Na vida e na ficção, nem todo evento traumático tem uma trajetória linear de superação (na verdade, acredito que quase nenhum o tenha). Uma frase famosa de Tchékhov diz que “a arte não precisa resolver problemas, e sim formulá-los corretamente”. Em um cenário sociocultural onde a arte muitas vezes parece ser extremamente didática e tentar promover uma agenda de sinalização de virtudes, Coel parece mais interessada em representar pessoas e eventos de forma honesta e consistentemente evita apresentar respostas ou soluções simples.
Quando mudamos o foco para a relação entre elementos dentro da própria série, Coel cria uma dança interessante para seus personagens principais, que se revezam constantemente em posições de poder e fragilidade, de atuarem como agentes ou alvos de destruição. O tema do respeito aos limites e barreiras individuais, por exemplo, aparece praticamente em todos os episódios de maneiras sutis — como no episódio em que Theo e Arabella estão conversando dentro do quarto de Ben, visivelmente desconfortável com a festa e com a presença não-solicitada de pessoas ali — e de outras formas não tão sutis, como no episódio iniciado por Arabella fazendo um discurso sobre limites pessoais em um grupo de apoio a mulheres que sofreram abuso e que termina com a personagem invadindo a casa do seu namorado italiano.
Ao passar por diferentes situações sexuais relacionadas a consentimento, os três personagens principais alternam-se ainda entre algozes e vítimas, protegendo uns aos outros e, inevitavelmente, falhando uns com os outros — ou ao menos com a ideia que cada um constrói do outro.
Coel é particularmente sensível ao tratar da principal “decepção” entre amigos da série, quando Arabella descobre que foi Terry quem disse a Simon que poderia deixá-la sozinha na noite em que foi estuprada. A audiência descobre o descuido de Terry antes da protagonista, e é criada uma antecipação de que, quando Arabella ficar ciente do fato, alguma espécie de ruptura entre as amigas será inevitável. Quando Arabella finalmente descobre a verdade, entretanto, ela apenas repete o mantra das duas amigas: “Seu sangue é o meu sangue, seu nascimento é o meu nascimento”. Amigos, afinal, nos falham, como todas as pessoas.
A generosa honestidade com que Coel trata o roteiro e as personagens principais estende-se também a vários personagens secundários: com maestria, ela repetidamente nos apresenta uma faceta de um personagem e, logo na sequência, nos mostra um aspecto diferente ou oposto. Alguns exemplos notáveis são: Susy Henny, que aparece como uma mulher poderosa que estende a mão para Arabella, mas que posteriormente escolhe continuar publicando, sob um pseudônimo, o livro do homem que abusou dela; Theo, que é apresentada como uma mulher forte que coordena um grupo de apoio para mulheres que sofreram abuso sexual e que tem, em seu passado, uma falsa denúncia de estupro contra um jovem negro (além de não ter sido exatamente sincera sobre o recrutamento de Arabella para a empresa Happy Animals); Biagio, que é retratado nos episódios iniciais com uma personalidade protetora, acompanhando Arabella até sua casa quando ela está completamente fora de si na saída da boate, mas que diz que ela foi estuprada porque foi descuidada alguns episódios depois. Nossa reação como espectadores pode não ser de conforto, mas certamente é de reconhecimento. Pessoas são complexas, contraditórias, difíceis, e a ficção deve ser também.
Ainda que Coel tenha estendido sua honestidade a todas as personagens, dificilmente alguma salta mais aos olhos do espectador como sua protagonista, Arabella. Ela é inteligente, engraçada, interessante, cuidadosa, linda e é difícil tirar os olhos dela na tela. Ao mesmo tempo, Arabella se recusa a ser uma heroína indefectível em defesa de uma causa e, frequentemente, se comporta de maneira frustrante ou contraditória.
Em um ensaio chamado “Não vim para fazer amigos”, a escritora Roxane Gay analisa personagens femininas consideradas “desagradáveis” (unlikeable) na ficção e como isso acaba sendo muitas vezes um critério usado injustamente para se falar sobre uma obra — como quando as pessoas dizem “Detestei esse livro! A personagem é difícil de engolir!”. Um dos exemplos claros que ela cita é a personagem Amy, de Garota Exemplar. Gay critica o fato de que muitas pessoas parecem querer interagir com a ficção não em busca exatamente de um espelho, mas um espelho melhorado, que nos mostre uma versão idealizada de nós mesmos. Em sua defesa de personagens desagradáveis, Gay completa: “Eu quero personagens que tenham pensamentos ruins e que tomem decisões ruins. Eu quero personagens que cometam erros e que se coloquem em primeiro lugar sem pedir desculpas por isso. (…) Eu quero personagens que sejam a mais honesta de todas as coisas — humanos”.
Gay cita ainda uma resposta da autora Claire Messud a uma entrevistadora que lhe pergunta sobre a dificuldade de simpatizar com sua protagonista. Messud diz: “Nós lemos para encontrar vida, em todas as suas possibilidades. A pergunta relevante não é ‘Este é um amigo em potencial para mim?’, mas ‘Esta é uma personagem viva?'”
Seria, claro, exagerado dizer que Arabella é uma personagem desagradável, porque a considero realmente uma presença magnética na tela e altamente “gostável” (e aqui cabe destacar também a maravilhosa interpretação de Coel), mas ela certamente foge à trajetória da heroína infalível, sendo muitas vezes intolerante, agressiva, insensível, autocentrada e incoerente. Arabella não tem uma história de superação porque ela tem, acima de tudo, uma história crível. E aqui acredito estar um dos maiores méritos de I may destroy you, na construção de uma protagonista que é assustadora e deliciosamente viva. O compromisso com a verdade de Coel liberta os personagens de sempre se comportarem de uma maneira esperada ou ideal. Livres da pressão de serem uma versão melhorada da audiência, as personagens podem agir de maneiras terríveis, estabelecendo uma relação mais interessante com o espectador.
Em outra entrevista sobre o roteiro, Coel diz: “Ao longo da série, eu nunca tentei dizer ao espectador o que sentir, o que pensar ou quem julgar. Eu estou apenas apresentando uma história, apresentando movimento, apresentando pessoas fazendo coisas”. I may destroy you não pretende, portanto, mostrar saídas ou respostas para as vítimas de abuso sexual. Coel generosamente oferece uma história com todas as sutilezas, nuances, honestidade e complexidade que o assunto merece.
Cintia Nogueira é professora e editora.
Imagem: Michaela Coel em I may destroy you.
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