“um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento.” — Valter Hugo Mãe, A máquina de fazer espanhóis
Deve ter sido no ano de 1999 que li O amor nos tempos do cólera pela primeira vez. Creio que tinha entre 16 e 20 anos, mas já não me lembro ao certo. O que me lembro bem é desta frase, do primeiro parágrafo do texto: “O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação de cianureto de ouro.”
Em trinta e cinco palavras, com uma estrutura quase de obituário, García Márquez nos conta sobre o status de refugiado de Jeremiah, de onde ele vem, qual era a sua ocupação, um pouco de sua personalidade, como era visto por seus amigos e como morreu. Na época, o esquecimento forçado como metáfora para o suicídio me agradou imensamente. Deve ter sido a primeira vez que a literatura me confrontou com a ideia da memória como algoz. Já que ainda não é possível livrar-se deliberadamente de certas memórias, livra-se da vida. Nos Cadernos de Lanzarote, Saramago diz “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”, repetindo a associação entre ser, existir e recordar.
Na graphic novel do espanhol Paco Roca, Rugas, lançada no Brasil ao fim de 2017 pela editora Devir, essa associação ganha recortes densos enquanto acompanhamos a gradativa deterioração física e mental de Emílio, um portador da doença de Alzheimer. Ao apresentar os primeiros sinais de demência, a família de Emílio o hospeda em um lar de idosos. Somos então apresentados a um rico conjunto de personagens em diferentes fases da terceira idade, assim como em diferentes estágios de domínio (e perda) de suas faculdades mentais.
Que o envelhecimento seja retratado em uma história em quadrinhos, um meio normalmente associado ao público jovem, é surpreendente. A velhice é um lugar em que a ficção não se aventura com frequência, seja porque parte dos autores ainda não a vivenciou, seja porque não é um tema com o qual muitos de nós gostamos de nos confrontar. Envelhecer é assustador sob muitos aspectos.
Em uma edição comemorativa de A metamorfose publicada em 2014, o diretor canadense David Cronenberg foi convidado a escrever uma introdução (há de se lembrar que ele dirigiu o clássico moderno A mosca, em que um homem e um inseto são mesclados de forma não intencional em decorrência de um experimento científico). No texto, Cronenberg faz um paralelo entre a transformação experimentada por Gregor Samsa na obra de Kafka e a transformação operada pela velhice no seu próprio corpo:
“Acordei em uma manhã recente e descobri que eu era um homem de setenta anos. Há diferença entre isso e o que acontece com Gregor Samsa n’A metamorfose? (…)
A origem das transformações é a mesma, creio eu: ambos fomos acordados e forçados a nos confrontar com o que somos de fato, e essa consciência é profunda e irreversível: em cada um dos casos, a desilusão logo se torna uma realidade nova e obrigatória, e a vida não pode mais prosseguir como era. (…)
Seria a transformação de Gregor uma sentença de morte ou, de alguma forma, um diagnóstico fatal? E eu? Seria meu aniversário de setenta anos uma sentença de morte? Sim, claro que sim, e de certa forma isso me cerra dentro de mim mesmo como se eu houvesse sofrido uma paralisia total.”
O paralelo entre a velhice e a metamorfose de Gregor em um corpo que ele sente que não lhe pertence é revelador em termos de como percebemos a nossa própria identidade. Junto com o temor do desaparecimento das nossas referências, o envelhecimento traz outros medos que se traduzem em uma série de perdas, como a perda do controle sobre o próprio corpo, a perda da identidade social, a perda da independência, a perda da dignidade, a perda da intimidade, a perda dos relacionamentos e da vida social.
Alguns desses temores parecem ser amplificados quando os idosos são forçados a passar a fase final de suas vidas em uma casa de repouso, uma realidade muito bem retratada na obra de Roca. Em uma das primeiras cenas da história, quando Emílio é deixado em seu novo lar, o traço do espanhol captura muito bem a sensação de solidão e abandono sentidos pelo personagem. Na mente de Emílio, ele é transportado de volta ao seu primeiro dia de aula na escola, refletindo sua sensação de inadequação e desproteção.
Em a máquina de fazer espanhóis, Valter Hugo Mãe retrata uma trajetória parecida. Seu protagonista, António Silva, é deixado em um lar de idosos após a morte de sua esposa Laura. A avaliação de António acerca da nova fase de sua vida parece reiterar a de Emílio:
“estar para ali metido, naqueles primeiros tempos, era literalmente como se me quisessem matar e não tivessem coragem para optar por um método mais rápido, um método mais rápido que seria seguramente uma maior honestidade, pensava eu. punham-me aqui e deixavam que me finasse segundo a segundo longe dos seus olhos.”
Dentre as muitas questões que a terceirização do cuidado com os idosos suscita, uma das que é melhor abordada em Rugas é o doloroso agrupamento de pessoas em estágios de vida tão díspares. A terceira idade compreende um escopo que vai desde os 60 anos até o fim da vida, podendo compreender uma diferença etária de até 40 anos entre pessoas consideradas pertencentes a um mesmo grupo. Uma das grandes angústias de Emílio é justamente se ver igualado a pessoas cuja deterioração física e mental é infinitamente superior à sua. Essas pessoas são também uma lembrança constante de um futuro próximo, tornando a convivência quase insuportável. Isso se evidencia em uma das cenas mais tristes da história, em que Emílio se dá conta de que ele toma a mesma medicação que Modesto, um idoso em estágio avançado de Alzheimer que não fala, não sabe quem é e precisa da ajuda constante de sua esposa.
Após essa cena, Emílio comparece ao médico residente e recebe a notícia de que é portador de Alzheimer. A doença começa se manifestando através do esquecimento de pequenos detalhes — deslizes na forma de se vestir, horários, datas. Um estudo de 2011 indica que a perda da memória episódica — isto é, a memória que construímos a partir de experiências pessoais — não acarreta em perda do senso de identidade, contanto que haja preservação da memória semântica, ou seja, a memória factual, ligada a recordações de coisas que realmente existiram. Na prática, é como se, mesmo ao esquecer pequenas histórias pessoais ligadas a determinados eventos e pessoas, ainda possamos manter nosso senso de identidade se conseguirmos lembrar de que trabalhamos fazendo uma determinada atividade profissional em tal época, de que estudamos em certa escola, de que fomos casados.
É interessante ver como Roca coloca isso nas páginas — Emílio começa a esquecer de como se vestir, mas lembra-se de que trabalha em um banco, dos seus filhos, de que gosta de ler. Essas memórias são ainda capazes de manter o personagem como uma pessoa, reconhecida em sua individualidade e suas peculiaridades. Entretanto, esses estágios iniciais são também os mais perversos, uma vez que o paciente está, em grande parte do tempo, consciente de tudo aquilo que está perdendo. Emílio segura uma bola e não sabe mais o nome do objeto. Emílio é questionado pelo médico sobre o seu jantar no dia anterior e ele não se lembra. Emílio acorda de madrugada para ir ao trabalho. Emílio não sabe mais usar talheres. Os pacientes de Alzheimer têm dias bons e dias ruins, e nos dias bons eles são capazes de se dar conta daquilo que ainda são ou não capazes de realizar.
Inicialmente, Emílio reage a seu diagnóstico com indignação e raiva — reações também muito comuns em portadores do Alzheimer. Ele busca formas de tentar reverter o avanço da doença. Uma das estratégias é, inclusive, ler (e é curioso ver que o personagem escolhe ler O amor nos tempos do cólera). Posteriormente, ele busca maneiras de enganar os médicos quanto ao verdadeiro avanço da doença. Mas o Alzheimer é irreversível e impossível de ser encoberto. Aos poucos, Emílio não sabe mais onde está, nem os nomes das pessoas, até perder completamente o senso de si.
A raiva inicial que o personagem sente a respeito de sua condição transforma-se numa docilidade e conformidade que remetem a uma total falta de consciência de si mesmo. O escritor David Shenk, citado por Jonathan Franzen no excelente texto O cérebro do meu pai, diz que a cura do Alzheimer pode inclusive não ser considerada um grande benefício à humanidade, uma vez que as vítimas sofrem cada vez menos com o passar do tempo. Franzen menciona em seu texto:
“Shenk cita pacientes que falam em ‘delícias do esquecimento’ e que relatam ganhos em prazeres sensoriais, pois não têm passado e vivem num eterno Agora. Se nossa memória imediata está comprometida, não nos lembramos, ao nos inclinarmos para sentir o perfume de uma rosa, que nos inclinamos para sentir o perfume da mesma rosa a manhã inteira.”
Ao mesmo tempo — e Franzen menciona o mesmo em seu texto — me pergunto se a perda total de sua identidade e de sua privacidade seriam mesmo uma bênção. Imagine acordar todos os dias e ver-se rodeado de estranhos, perder completamente sua privacidade e autonomia. Não ter um senso de seu passado. Junto com suas memórias, Emílio vai gradativamente também desaparecendo, transformando-se numa casca desprovida de individualidade ou sentido. Paralelamente, o Alzheimer ataca também o senso de identidade dos familiares e amigos do paciente, uma vez que temos a expectativa de que o outro seja testemunha de nossa existência e de nossa história. Ao perdermos o reconhecimento do outro como filhos, sobrinhos, irmãos, maridos e esposas, nossas memórias ficam mais suscetíveis a nossa subjetividade — mais episódicas, portanto, e menos semânticas.
Um dos grandes êxitos de Rugas está na representação gráfica que Roca faz da alteridade entre o que se passa no exterior e o que se passa dentro do personagem. Ao mostrar diversos personagens que vivem uma realidade à parte dentro de suas próprias memórias, Roca nos transporta graficamente para aquela lembrança, e é como se adentrássemos o cérebro dos personagens por alguns instantes. O recurso é muito eficaz em gerar empatia e produz uma identificação imediata no leitor. A cena em que Emílio já não se recorda mais de Miguel, seu companheiro de quarto que o acompanha até a fase final da doença, é das mais bonitas e tristes da história e faz uso de um recurso narrativo que só seria possível no meio gráfico. O rosto de Miguel vai perdendo seus traços até se tornar um vazio, um vazio do irreconhecível.
A identidade e a memória estão ligadas em uma relação simbiótica de tal forma que uma constrói, organiza e dá sentido à outra. Se nossas experiências moldam o que entendemos ser nossa identidade, é também verdade que nosso entendimento de nós mesmos molda o que nos lembraremos e a forma como decodificaremos essas memórias. A nossa identidade está intrinsecamente ligada à nossa memória, e nossa memória está, também, intrinsecamente ligada ao que entendemos ser nossa identidade. Existir é recordar e recordar é também existir.
Rugas tem muitos méritos. É uma história que lida com um tema prosaico, mas raramente tratado pela ficção. A obra atinge um equilíbrio muito interessante, sendo delicada e emocionante em alguns momentos, e dura e brutal em outros. Roca não romantiza a velhice construindo uma coleção de personagens sofridos e bonzinhos — há espaço para todo o tipo de personalidades na velhice, assim como em todas as outras fases da vida. Além de tocar profundamente na questão da memória, Roca convida o leitor a contemplar a fase final da vida — e considerar as pessoas que conhecemos que estão nela — com um olhar sobre esse desaparecer que se comporta como um eco: enquanto em nossa mente o mundo desaparece aos poucos, nós também gradativamente desaparecemos para o mundo.
Cintia Nogueira é professora e editora.
Ilustração de Celeza Ramalho
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