Certo entrelaçar de intimidades
“Quando leio este caderno, o que às vezes faço em uma noite quente de domingo em Londres, sou atingida pela selvageria de suas passagens — o descuido de suas descrições — a repetição de seus adjetivos — & em suma o declaro um trabalho muito apressado, mas me perdoo ao lembrar em quais circunstâncias ele foi escrito. Depois de um dia fora, ou em uma meia hora livre, ou como um descanso de alguma tragédia grega — em diferentes momentos, & com diferentes humores, & eu estou certa de que se me impusesse outras condições ele nunca seria escrito. Eu não o levei para Cornwall na Páscoa, & determinei que anotaria algo útil — e cheguei até a escrever meu endereço?
Então, uma vez mais, retorno ao velho método; & declaro apenas que estou consciente de suas falhas — a declaração da vaidade.
Agosto, 1908.”
Encontro-me uma vez mais com os diários de juventude de Virginia Woolf em mãos, e sigo a tatear suas passagens em busca de conhecer e compreender um pouco mais as singularidades e meandros de sua autora.
Abro nas páginas escritas em 1908 e vejo que, enquanto as inicia, Woolf relê alguns dos registros dos anos anteriores. Ao perpassar páginas e páginas de anotações do dia a dia, de trechos nos quais procura apreender a riqueza de detalhes de um pôr do sol, de ensaios nos quais versa de maneira delicadamente ácida acerca da sociedade da época, Virginia analisa sua escrita. Critica-se, bem como se perdoa, pelo descaso com que acredita ter tratado sua própria linguagem. Contudo, no exato instante em que descubro que Virginia Woolf está a reviver seus escritos pessoais, entrevejo que, ao se reler, ela lança sobre suas páginas íntimas muito mais do que um olhar agudo acerca de sua estilística.
Não me abandona a sensação, sequer por um segundo, de que ao revisitar as passagens de seus diários, Woolf, por vezes, sinta-se transportada para as ocasiões narradas, “em diferentes momentos, & com diferentes humores”. Rememorando, então, muito do que ali foi anotado sobre um dado acontecimento… E, provavelmente, muito do que não foi registrado também.
Woolf é capaz de, ao se reler, acessar a intimidade de suas lembranças, de escavar suas memórias, de reavivar sentimentos e, talvez, não raro preencher as lacunas criadas a partir de tudo aquilo que optou por não transcrever, seja por preguiça, falta de tempo ou por, no momento da escrita, não existir coragem, não haver palavras suficientes para descrever o que era sentido. Ela tem essa capacidade… Eu, em meu papel de simples leitora de seus diários, não. Só tenho acesso ao que foi anotado nas páginas dos cadernos íntimos.
Philippe Lejeune, professor e ensaísta francês, afirma que “[…] essa é uma característica surpreendente do diário que o opõe a todos os outros textos: nenhum leitor externo poderá fazer a mesma leitura que o autor, embora leia justamente para conhecer sua intimidade”. Essas diferentes leituras se dão, pois cada diarista anota — ou deixa de anotar — seu cotidiano, suas emoções, suas vivências da maneira como bem entende. Ao se reler, ele consegue resgatar muito do que não foi registrado, pois foi o protagonista das experiências. No entanto, um leitor outro não terá vivenciado o que é ali narrado e, portanto, sua leitura e entendimento da intimidade do autor do caderno se basearão, em princípio, apenas no que está escrito.
Não existe dentro do gênero textual diário um acordo tácito de compreensão plena entre quem escreve e quem lê, até porque, em primeira instância, diários não nascem para serem lidos por um alguém além daquele que os escreve. Sendo assim, o meu desejo de adentrar, conhecer e entender as singularidades e meandros da jovem Virginia por meio de seus cadernos íntimos não constitui tarefa fácil.
Para tentar entendê-la, então, leio e releio. Vou e volto em suas páginas em um movimento constante e incansável que procura unir fragmentos de acontecimentos e emoções para que, de alguma maneira, um todo do que era a intimidade de Virginia em sua juventude possa ser formado em minha cabeça. Não desisto de tal empreitada mesmo quando ela deixa claro que faltam ali muitas informações: “não há espaço na página para falar mais sobre isso”, “Adquiri o mau hábito de não escrever em meu diário por dois ou três dias”.
Por vezes, Woolf não opta simplesmente por não escrever, mas assume não ter como delinear o que foi vivido. A passagem de 19 de julho de 1897, dia da morte de sua meia-irmã Stella Duckworth, guarda uma dessas situações: “Às 3 da manhã, Georgie e Nessa vieram até mim e me contaram que Stella havia morrido — Só pensamos nisso desde então; e isso é impossível escrever”.
Essa impossibilidade de escrita talvez abarque a certeza da dor que é a de nunca mais poder estar ao lado de alguém, o arrependimento por não ter buscado sempre entender a pessoa que partiu, as lembranças de momentos bons que não tornarão a acontecer. Por detrás dessa incapacidade podem morar miríades de pensamentos e sentimentos. Em situações assim, tenho a impressão de que, para tentar compreender a jovem Virginia, vou além do trabalho de união dos pedaços de intimidade transcritos no decorrer de suas páginas.
Eu, simples leitora dos diários de juventude de Virginia Woolf, não vivenciei esse dia 19 de julho com ela, e nem outros tantos momentos nos quais as palavras lhe escapam. Entretanto, durante a leitura me vejo transportada para os meus dias 19 de julho, ou seja, para os instantes nos quais me faltaram formas de dizer o que sentia. Rememoro minhas emoções e suas impossibilidades e as utilizo, de certa forma, ao longo do processo de compreensão de algumas das lacunas de intimidade deixadas por ela.
Nos momentos em que acabo por fazer uso das minhas experiências para preencher os espaços vazios dos diários, vislumbro certo entrelaçar de nossas intimidades. Na busca por conhecer e entender os meandros da jovem Virginia Woolf, perpasso, em certa medida, um processo de reconstituição de mim. E nessa mescla de nós duas sinto como se, de alguma maneira, eu passasse a entendê-la com maior profundidade. E a me entender também.
Mayara Freitas é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Pesquisa e traduz os diários de juventude de Virginia Woolf.
Ilustração de Celeza Ramalho
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