Em Os Testamentos Traídos, Milan Kundera aponta para os tradutores, biógrafos e críticos que, por critérios ideológicos, morais ou estéticos pessoais, “traíram” os artistas e as obras a que se dedicavam. Escreve sobre Max Brod, biógrafo e testamenteiro de Kafka, e critica os tradutores do autor, que muitas vezes “corrigiram” repetições; e da análise de A Sagração da Primavera, de Stravinsky, por Adorno, que teria ignorado a força estética dos ritos bárbaros. O autor também reflete sobre os pontos de contato entre a história da música e a história da literatura, dois de seus temas mais queridos.
O livro, publicado originalmente em 1993, foi lançado no Brasil em julho deste ano e pode ser lido como uma coletânea de nove ensaios independentes ou como uma espécie de romance ensaístico, composto por nove partes. Em suas páginas, Kundera reafirma a importância do compromisso com os recursos de linguagem e de estilo nas traduções de autores estrangeiros. Teríamos, de cara, uma questão: como traduzir Kundera sem traí-lo? “Se alguém me perguntasse qual é a causa mais frequente dos mal-entendidos entre mim e meus leitores, eu não hesitaria: o humor”, escreve o autor.
No Brasil, Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca parece ter conquistado a confiança de Kundera: responsável pela tradução de quase toda a obra do autor, Teresa nos conta um pouco sobre sua formação como tradutora e gentilmente compartilha conosco um trecho da vasta correspondência que trocou com o autor ao longo dos anos.
Deriva — Você nos contaria um pouco de como chegou à tradução literária e, mais especificamente, à tradução de Milan Kundera?
Teresa Fonseca — Desde que terminei meu curso na PUC do Rio, em 1956, com a habilitação específica de Professora de Inglês, senti que meu interesse verdadeiro era trabalhar com traduções e estudar mais literatura. Gostava de estudar línguas, tenho o diploma de Proficiency of English Studies da Universidade de Cambridge e o Curso de Língua Francesa e Literatura da Aliança Francesa. Fui alfabetizada numa escola bilíngue e isto me deu uma certa naturalidade em deslocar meu pensamento de uma língua para outra. Acho prazeroso, e às vezes um desafio, a busca por uma palavra ou uma expressão mais adequada. O primeiro livro que traduzi foi uma ótima biografia de Byron de autoria de André Maurois publicada pela Editora Nova Fronteira em 1966, em seguida, um livro de Agatha Christie, Encontro com a Morte, em 1969. Mais tarde, quase vinte anos depois, meu amigo e grande editor Sergio Lacerda me ofereceu aquilo que se constituiu na oportunidade mais representativa do meu trabalho: a tradução para o português de praticamente toda a obra do notável escritor tcheco Milan Kundera, num total aproximado de 3.500 páginas que traduzi com grande paixão. O primeiro livro que traduzi foi A Insustentável Leveza do Ser (1984). É a paixão pelo texto que temos diante de nós que vai nos motivar, e no caso deste livro, essa paixão começa com o título e termina na última palavra. Certamente, um dos melhores romances do século 20.
Deriva — O que significa, para quem trabalha com tradução literária, passar anos a fio traduzindo um mesmo autor? Mais precisamente, o que significa para você se tornar a voz de Kundera no Brasil, construindo sua memória literária em nossa língua?
Teresa Fonseca — No meu caso, tive a sorte de trabalhar com um autor que conheci pessoalmente. E que tinha uma grande desconfiança em relação aos tradutores explicitada mais tarde num de seus livros de ensaios, Os Testamentos Traídos (1993). A princípio, isso me assustou, depois vi que era estimulante essa oportunidade de esclarecer com ele mesmo, quando ocorresse alguma dúvida em relação ao texto. Era sempre recebida com extrema gentileza e pouco a pouco, para minha surpresa, percebi que o autor estava até se familiarizando com a língua portuguesa. Os escritos de Kundera têm um senso de humor muito peculiar e certamente teria sido mais difícil captá-lo se não tivesse tido esse privilégio.
Sempre pude consultá-lo quando tive alguma dúvida. A princípio por carta, depois à medida que a tecnologia avançava, por fax, e finalmente por e-mail. Isso me possibilitava o cuidado que procurava ter em relação à fidelidade ao texto original. Uma grande vantagem. Por isso, por ter esta admiração e por ter tido a oportunidade de sempre consultar o próprio autor, é que foi para mim um prazer trabalhar com os livros deste extraordinário escritor durante anos a fio.
Deriva — Em Os Testamentos Traídos, você assinou a tradução ao lado de Maria Luíza Newlands. Como é a experiência de traduzir a quatro mãos?
Teresa Fonseca — Conheci Maria Luíza Newlands Silveira num grupo de estudos de Literatura Inglesa. Excelente tradutora. Trabalhamos em perfeita harmonia. Anna Lucia Moojen de Andrada, que trabalhou comigo em dois livros, A Brincadeira (1967) e a A Imortalidade (1990), grande conhecedora de língua portuguesa e de francês, também foi uma excelente companheira desse trabalho de tradução, que só tem a ganhar quando bem feito à quatro mãos.
Deriva — Como é o seu processo de tradução? Se puder nos contar um pouco mais sobre quais diretrizes a guiam, como faz a pesquisa e o cotejo com outras traduções, ou se recomenda alguma leitura teórica, adoraríamos saber.
Teresa Fonseca — Ao receber um exemplar leio o livro todo como um leitor comum. Em seguida, começo o trabalho. Faço uma revisão por parágrafo, depois por capítulo, em seguida, uma revisão final. Trabalhei sempre à tarde, umas três horas por dia. Acho indispensável uma leitura em voz alta. Sempre chamo alguém que me acompanha, mencionando cuidadosamente a pontuação. Qualquer dúvida naturalmente uso dicionários — gosto muito dos Robert. Sempre procuro explicações em dicionários franceses. Mas, sobretudo, peço a opinião do próprio autor, já que tive oportunidade, através dos anos, de estabelecer com ele um contato facilitado agora pelo recurso de e-mails. Recebi várias vezes edições dos livros que estava traduzindo em espanhol e italiano e assim podia comparar as soluções que estava adotando com aquelas dos outros tradutores. Muitas vezes, era útil. Desde o primeiro livro, o autor percebeu que eu teria como preocupação primordial uma absoluta fidelidade ao original. Essa percepção por parte dele determinou a direção do meu trabalho.
Deriva — Você se importaria em compartilhar conosco algum trecho das correspondências que trocou com Kundera?
Teresa Fonseca — Na carta em que debatemos a escolha do título do segundo livro do autor publicado no Brasil, a antologia de contos Risíveis Amores (1969), publicado pela Companhia das Letras em 2001, Kundera respondeu (traduzindo do francês):
“No que diz respeito ao título. Ridículo me parece, realmente, um pouco pejorativo demais. O sentido exato deveria ser: Os amores desprovidos de seriedade. (Não é verdade que os amores não-sérios podem ser muito mais agradáveis? É por isso que a palavra ridícula não é a ideal!). Em alemão, me propuseram o título ‘Komische Liebechaften’. Os amores cômicos (cômicos amores). Deixar apenas o título ‘Amores’ não me parece bom. É preciso encontrar um adjetivo que, ligado a amor, pareça insólito. Risível, mesmo que seja um adjetivo pouco usado, não poderia criar com a palavra amor, esta dupla insólita?
Junto, estou enviando um exemplar francês com as correções de alguns erros que ainda encontrei.
Não hesite em me escrever sempre que tiver alguma dúvida ou qualquer pergunta e me informe sobre o que pensa sobre o título.
Amigavelmente,
Milan”
Deriva — Entre suas leituras de Kundera, existe alguma preferida, que a marcou de uma maneira diferente como leitora ou tradutora?
Teresa Fonseca — Prefiro não escolher. Gosto dos livros de ensaios e de todos os romances. Foi uma experiência única e um privilégio trabalhar com quase toda a obra de um escritor como Milan Kundera. Fazer uma avaliação seletiva seria uma tarefa quase injusta. Acho que todo grande artista das palavras nos revela, acima de tudo, uma visão de mundo que é só dele. Cada livro nos revela uma parte desta visão do mundo que só pertence a ele. Vejo a sua obra como um conjunto, como um todo. Considero Kundera um grande artista e foi uma honra ser sua tradutora.
Fabiane Secches é editora da Deriva, psicanalista e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada (Estudos Comparados: Literatura e Psicanálise) na Universidade de São Paulo.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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