Traduzir é muito simples. Basta transferir o conteúdo de um copo para um outro lugar onde não há copo, há algo parecido, mas que em geral é usado para guardar areia, e a água de lá é espessa e não congela, mas de algum modo as pessoas têm sede igualzinho às daqui.
Diz-se que traduzir é sempre, em alguma medida, trair. Mas, quando estamos trazendo um conteúdo de uma cultura para a outra, é possível no mínimo escolher a quem trair. Essa escolha sobre quem será mais traído surge em uma das decisões mais básicas da tradução: a opção entre estrangeirizar ou domesticar um texto. Uma coisa interessante sobre esses termos é que ambos soam levemente pejorativos, dando a pista da dificuldade.
Estrangeirizar um texto é tentar manter estruturas e características da língua fonte mesmo que elas soem um pouco deslocadas na língua de chegada. É abrir mão de parte da fluidez em nome da especificidade. Sabe quando você lê um texto e fica evidente que ele não foi originalmente escrito em português? Isso não necessariamente é uma falha da tradução. Pode ser falha, mas pode ser uma opção que parte do pressuposto de que determinadas especificidades de uma língua ou de uma cultura são mais importantes do que um entendimento completo por parte do leitor, ou do que uma sensação de familiaridade.
Já a domesticação é o contrário: ela parte do pressuposto de que o texto deve soar o mais “natural” o possível na língua de chegada. Aplicada ao grau máximo, a domesticação não chamaria nenhuma atenção para o fato de que aquele texto foi originalmente escrito em outra língua.
Uma opção prioriza a diferença. A outra, a familiaridade. Não existe uma que seja melhor, e há gradações entre elas. Talvez não seja sequer o caso de uma opção: texto e público costumam impor quem será priorizado. Um público como o americano, por exemplo, desacostumado a ler traduções, tende a estranhar demais uma tradução estrangeirizada. Já no Brasil, onde títulos traduzidos correspondem a uma fração significativa (não há levantamento preciso, mas algumas editoras estimam que isso gire em torno de 65% dos nossos lançamentos literários), as pessoas recebem melhor um texto estrangeirizado.
A opção entre domesticar e estrangeirizar é apenas um item da penca de decisões que um tradutor toma durante o trabalho. Essas decisões não interessam apenas a quem trabalha diretamente com o mercado editorial. Elas afetam a fruição e o entendimento de todo leitor atento. No Brasil, como escreveu o tradutor Rogério Bettoni em sua newsletter, somos um pouco “especialistas em tradução”, dado a importância que os títulos traduzidos têm por aqui. Questões que em outros países ficam restritas ao mercado editorial (ou que não importam nem a ele), aqui tendem a ser mais amplas.
Pensando nisso, conversamos com seis tradutores brasileiros com experiências diversas — em ficção, não ficção, poesia, textos em inglês, alemão, italiano e francês — sobre alguns dos dilemas contemporâneos relacionados à tradução. As perguntas foram inspiradas nos temas de discussão da residência de tradução do Banff International Literary Translation Centre, no Canadá, que Bettoni mencionou em sua newsletter. Cada tradutor escolheu as que se sentia mais à vontade para responder. As respostas deixam ver que entre eles não há fórmulas. E são poucos os consensos.
Denise Bottmann
Quais os limites de aproximação e cruzamento entre duas linguagens e duas culturas na tradução?
São muitos os fatores a levar em conta — não só em termos “geográficos”, mas sobretudo em termos cronológicos. Se já é difícil entender plenamente muitos costumes brasileiros do século 19, quem dirá entender todo o caldo de cultura de um, por exemplo, Dryden ou de um Bashô ou de um Ovídio — não só pelas radicais diferenças culturais, como também pelas radicais diferenças históricas ao longo dos milênios, até mesmo dentro da mesma tradição cultural.
Quais são as estratégias dos tradutores para recriar dialetos e gírias, quando possível? E quando não é possível?
Em tradução, como na vida, cada um é um, sempre. Então terá aquele que fará uma transposição usando algo local nosso (paulistês, gauchês, nordestinês, mineirês, o que seja — mas é uma decisão difícil); terá aquele que manterá aquela diferença nem que seja inventando alguma bizarrice para dar a entender que é bizarro também no original; terá aquele que neutralizará relativamente aquela característica, e tudo isso em graus variados, uns mais, outros menos. Em gírias, algum procurará alguma gíria local — e se for texto do século 18 ou 19 (sim, também havia gírias naquelas épocas, claro), um poderá procurar gírias brasileiras de época, outro preferirá um anacronismo com uma gíria mais contemporânea, outro ainda neutralizará um pouco e assim por diante.
Quais estratégias usar para traduzir poesia escrita na Idade Média para um público moderno? Cabe atualizar o uso dos pronomes ou martelar no “tu” e no “vós” (no caso do português)?
Depende sempre do partido, do tipo de abordagem e tratamento que cada tradutor julgará mais propício, mais adequado, mais sintonizado consigo mesmo, com as exigências editoriais e com o público a que se destina a obra traduzida. Naturalmente, a tendência geral é uma relativa atualização do léxico. Pois afinal a imensa maioria das traduções literárias se destina ao público leitor, por intermédio da editora que publica a obra. E muitas vezes é esse público leitor considerado genericamente, como um “leitor médio”, que determina o enfoque editorial, até para que a obra tenha alguma saída comercial. Por outro lado, essa tendência não é de forma nenhuma inevitável, exclusiva ou excludente. Traduções mais eruditas ou classicizantes, digamos assim, também têm seu nicho de leitores; assim, felizmente, é possível manter um espaço editorial para abordagens não tão imediatamente acessíveis àquele hipotético “leitor médio”.
O que significa, para um tradutor (em termos pessoais e profissionais), traduzir a obra inteira de um autor, ou passar anos a fio traduzindo um único autor?
Dedicar-se à tradução de um só ou de alguns poucos autores por anos a fio é uma coisa maravilhosa! Você adquire uma familiaridade, uma intimidade com ele que é comparável a uma grande amizade, em que os diálogos tradutor/autor, tradução/original fluem com mais facilidade, o entendimento se aprofunda, a visão se amplia.
Quais os limites de aproximação e cruzamento entre duas linguagens e duas culturas na tradução?
Ter a sensibilidade para saber quando devemos intervir em um texto que de outra forma sairia ininteligível em português não é tarefa das mais fáceis. Ficar colado à letra, como alguns pensam que funciona a tradução, também não é possível. Cruzar linguagens e culturas, na verdade, é o que fazemos o tempo todo, com mais ou menos ênfase, dependendo do leitor, do autor e do objetivo da publicação. Somos contratados para trazer a um leitor, que não conhece aquele idioma a ponto de lê-lo, uma experiência de leitura o mais completa possível.
Não sou defensor da domesticação de um texto, pois um dos objetivos de se traduzir é levar o leitor a um universo cultural que ele não conhece de forma que ele entenda. Talvez possamos dizer que tendo a fazer uma tradução mais “brechtiana”, em que o leitor sabe que está lendo uma obra traduzida, mas nem por isso perde o prazer da leitura.
Derrubar essa quarta parede na tradução é fundamental para que o leitor saiba que há um intermediário entre ele e o leitor, um guia que vai conduzi-lo por aquela viagem ao desconhecido. Na briga entre quem defende a domesticação ou a estrangeirização (grosso modo, marcar o texto ao máximo para chamar a atenção do leitor para o tradutor), fico no caminho do meio e sempre analiso caso a caso.
O texto não pode em momento nenhum causar “tropeços” na leitura, pois durante esse processo — como durante as peças de Brecht — devemos esquecer que ele não foi escrito em português. Uma editora me disse certa vez o seguinte: “Quanto menos eu lembrar de você durante a leitura, mais vou me lembrar de você para outros livros”. E quanto menos o leitor lembrar do tradutor durante a leitura, mais aquele vai desfrutar a obra.
Quais estratégias usar para traduzir poesia escrita na Idade Média para um público moderno? Cabe atualizar o uso dos pronomes ou martelar no “tu” e no “vós” (no caso do português)?
Depende de muitas variáveis, nem sempre sob nosso controle. Por exemplo, traduzi um livro de terror que se passa entre 1350 e 1390, na Inglaterra. O livro é para um público jovem adulto e adulto. Os personagens expressam-se em um inglês corrente hoje, mas de forma muito mais formal, às vezes culta, outras vezes com termos e palavras que já caíram em desuso em inglês. Conversando com o editor, decidimos que caberia imprimir essa “antiguidade” no texto não apenas nos termos, mas também na narrativa e, principalmente, nos diálogos. Por isso, optamos pelo uso da segunda pessoa do singular no caso de informalidade e/ou intimidade e a segunda pessoa do plural tanto no caso simples como nos casos de tratamento. Também tentei, na medida do possível, não usar nenhum termo que fosse moderno (fofoca, por exemplo, que entrou no idioma português apenas na década de 1970, segundo o dicionário Houaiss).
Agora, pensemos em uma adaptação para ser estudada na escola para aproximar o público leitor da poesia inglesa da Idade Média. Talvez seja válida essa adaptação. Daí podemos lançar mão de alguns dos termos do funcionalismo na área de tradução: a que se destina esse texto? Quem vai lê-lo? O que o editor espera desse texto? Esse texto serve mesmo ao público destinado? Quais outros textos que fazem parte desse corpus e talvez pudessem ser mais bem aproveitados pelo público-alvo? Dessa forma, podemos chegar a uma ou a várias estratégias para a tradução.
É importante promover o diálogo entre autores vivos e seus tradutores, quando possível?
Na minha opinião, o diálogo aberto com os autores é uma questão de extrema importância, mas que pouco é explorada. Dentro da minha experiência, esse contato sempre foi muito bem-recebido e, às vezes, até mesmo exigido por alguns autores. Porém, a maioria dos autores americanos, por exemplo, tem um agente que faz o intermédio e filtra todas as comunicações, em especial dos best-sellers. Não duvido que, pela falta de tempo, esses autores deleguem esse tipo de trabalho de comunicação com tradutores a seus agentes ou editores, que acabam resolvendo dúvidas que talvez fossem mais bem exploradas pelos próprios autores.
Com autores de outros idiomas (o alemão, por exemplo), sempre há uma abertura maior, talvez porque não atinjam o mercado mundial com tanta facilidade e conversar sobre seu livro para que ele saia em outro idioma deve ser uma experiência empolgante. Esse diálogo, quando acontece, é sempre muito proveitoso. E para que ele aconteça, acredito que o tradutor precisa mostrar ao editor brasileiro o quanto esse canal direto de comunicação — desde que seja consciencioso e parcimonioso — melhora muito a obra traduzida. Se ainda existe o filtro, é porque ainda existe gente que abusa um pouco da paciência de seus autores. De qualquer maneira, antes termos uma comunicação mediada do que não termos comunicação nenhuma.
Qual a diferença entre ser um tradutor que escreve e um escritor que traduz? Como isso se reflete no texto escrito e nas traduções?
Podemos dizer que autor e tradutor são dois tipos de escritores. Não estou querendo, ao dizer isso, angariar para os tradutores o prestígio de poetas, de ficcionistas, e de ensaístas (um pouco como parecem querer os que dizem que letristas são poetas), mas fazer uma distinção que considero fundamental.
Não acredito que exista um único tradutor — ao menos entre os tradutores literários que se levam a sério — que não pense constantemente no que significa escrever bem. Porém, é claro que há diferenças entre esses dois tipos de escrita, e acho que elas podem ser elucidadas fazendo uma comparação entre ideias de Ananda K. Coomaraswamy (herói do nacionalismo indiano, curador de arte oriental do Museu de Belas Artes de Boston, e autor que comecei a traduzir por puro gosto, há muitos anos) e uma observação de W. H. Auden (que não precisa ser apresentado).
Em Christian and Oriental Philosophy of Art, Coomaraswamy apresenta uma visão totalmente antirromântica da arte. Para ele, arte é o método correto de fazer as coisas com vistas a algum fim. Antes que surja alguma rejeição a essa ideia, convido a uma reflexão: qualquer pessoa sabe que há um jeito melhor e um jeito pior de fazer qualquer coisa. Eu gosto de cafés especiais, tenho um forte pendor para ritualizar tudo, e sei que preciso moer o meu café de tal jeito, na hora de preparar o café, colocar a água em tal temperatura… Existe uma arte de fazer café, que vale para qualquer café. E existe uma arte de traduzir, em que você pensa em aceitar perder algo no nível semântico para não perder o efeito de uma piada, por exemplo. O que une essas duas artes é que você tem uma ideia mais ou menos clara de como deve ser o resultado do processo. Mesmo que o gosto interfira, você pode aprender a modular o processo para que o resultado saia conforme o gosto. Por exemplo: o ideal é não perder nada numa tradução, mas, tendo de perder, um tradutor pode preferir sacrificar um pouco do ritmo para manter algo do sentido, por exemplo. Outro pode preferir perder algo do sentido.
A diferença para a atividade daqueles que são chamados de escritores, especialmente nos casos da ficção e da poesia, é que, como disse Auden, não lembro bem onde, o sapateiro sabe como vai ser o sapato que está fazendo, mas o poeta não sabe como vai terminar o poema que começou a escrever.
Assim, a escrita criadora principia com um fim aberto, e a tradução principia com um fim já determinado.
No entanto, eu diria que hoje o Brasil conta com um grande número de bons tradutores, os quais parecem demonstrar mais cuidado com o texto do que muitos dos nossos escritores. Recentemente assisti à mesa de tradução do XV Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, e repetiu-se uma experiência minha de muitos anos já: apenas entre tradutores você escuta discussões sobre o idioma, fala de palavras, de pontuação, de soluções práticas. Eu poderia dizer que são discussões de “técnica“, mas poderia ser mal-interpretado.
O tradutor precisa ser um grande leitor, e com isso as discussões de tradução entram por todos os aspectos de um texto. Por outro lado, as mesas sobre literatura têm fortes tendências a girar em torno do ego dos autores, de suas vivências, de suas opiniões sobre quaisquer temas. Numa discussão entre tradutores, algo que você não vai ver é a literatura ser usada como pretexto para falar de outro assunto.
Por fim, se não me engano, Javier Marías também recomenda que escritores iniciantes se esforcem para traduzir grandes estilistas de outros idiomas. Por trás dessa recomendação está a sugestão de conhecer a vida nas trincheiras do texto, ou, caso se prefira outra metáfora, de desparafusar frases, e de perguntar-se: isso funciona? Sim? Não? Por quê? Claro que autores e tradutores podem perceber esse tipo de coisa instintivamente, e eu diria até que algum instinto é indispensável para começar, mas não vejo como um conhecimento mais aprofundado de materiais ou instrumentos prejudicaria autores ou tradutores. Pelo contrário…
Quais os limites de aproximação e cruzamento entre duas linguagens e duas culturas na tradução?
Existe um livro inteiro sobre esse assunto: o árido e exaustivo Quase a Mesma Coisa, de Umberto Eco (na verdade, existem mestrados e doutorados inteiros sobre esse assunto, mas o livro de Eco — um nome que já remete à tradução — dá uma boa ideia da encrenca).
O título do livro me chamou a atenção quando foi publicado porque remetia a algo que eu sempre via o Paulo Henriques Britto — mestre e modelo de toda uma geração — dizer em palestras: “Traduzir é reescrever o mesmo texto em outro idioma em algum sentido da palavra mesmo.“
Assim, cada texto tem vários níveis: semântico (o mero sentido das palavras), rítmico, o sentido das referências e do contexto cultural, a coerência interna do texto, e, claro, o efeito que se espera que o texto tenha em diversos tipos de leitores, lembrando que um leitor pode corresponder a esses tipos diferentes em momentos diferentes.
Vou dar dois exemplos de dois textos muito diferentes, até porque quem gosta de tradução gosta de exemplos muito mais do que de teoria da tradução.
No livro Red Hiding Hood’s Guide to Royalty, de Chris Colfer, a Chapeuzinho Vermelho é uma menina toda cheia de si que acaba virando rainha. O livro faz parte da série infanto-juvenil — ou young adult, desculpem — Terra de Histórias, publicada no Brasil pela Saraiva. Nele, a Chapeuzinho reclama dos pais, que a oprimiriam mandando-a fazer chores. Chore é uma palavra sem uma correspondência precisa: ela refere toda e qualquer pequena tarefa ligada à manutenção da casa e que costuma ser considerada maçante. De ir ao mercado comprar cebolas até lavar a louça, tudo são chores.
Quando a Chapeuzinho reclama da opressão das chores, o leitor anglo não perde a referência e por isso não perde a piada. Agora, em português, se eu puser na voz da Chapeuzinho uma reclamação contra a opressão das tarefas domésticas, vou colocar um termo quase exato semanticamente, mas que tem seis sílabas a mais e que, apesar de inteligível, não toca nenhuma corda já retesada e afinada no imaginário do leitor.
A solução é usar uma metonímia: posso fazer a Chapeuzinho dizer que era oprimida por varrer a casa ou por lavar a louça. O leitor pode imaginar que, se ela varria a casa, também lavava a louça, tirava o lixo, ajudava em casa fazendo várias chores que todos achamos maçantes. É o caso de mudar um pouco o sentido do original (chore não designa uma tarefa específica) para preservar o efeito do original.
Esse é um caso que tem uma solução satisfatória — e, na tradução literária, vamos lidar muito com o “satisfatório“ e nunca com o “perfeito“ —, mas quero falar de um caso provavelmente sem solução.
Existem ensaístas contemporâneos que escrevem muito bem, muito claramente, e que se distinguem por um certo rigor vocabular. O tradutor fica à vontade, porque sabe que, se preservar o sentido do que é dito mantendo a elegância do estilo, terá feito jus ao original.
Porém, alguns desses ensaístas podem não apenas usar trocadilhos, como montar seus argumentos a partir dos jogos de palavras criados. Parece mesmo um caso escancarado, à maneira estruturalista, de deixar a língua pensar-nos.
O filósofo francês Jean-Luc Marion, por exemplo, em seu livro Prolegomènes à la Charité, faz um jogo entre l’enfermement, ou “o fechamento“, e l’enfer me ment, ou “o inferno mente para mim“. Veja que a noção cristã de inferno é muito, muito anterior ao francês moderno… O que não impede um dos mais respeitados filósofos contemporâneos de montar todo um argumento a partir de um jogo de palavras que só pode ser entendido por quem tiver noções desse idioma! Ele pode dizer que o inferno é como uma mentira que consiste no fechamento do eu em si mesmo, mas uma coisa é dizer isso, e outra é dizer l’enfermement = l’enfer me ment. Ao menos não fui contratado para traduzir esse livro.
Porém, fui contratado para traduzir, já pela segunda vez, o francês Fabrice Hadjadj. Ele faz a mesma coisa, e, pior, faz muito. Entre suas frases intraduzíveis está: La mère met bas, la prostituée met plus bas, la religieuse met haut. A expressão mettre bas não significa “pôr abaixo“, mas parir, dar a luz. Aí o sentido fica, mas o trocadilho morre: “A mãe dá a luz, a prostituta leva mais para baixo, a religiosa leva para o alto”. Foi preciso usar uma saída um pouco à la Chapeuzinho: “A mãe dá a luz, a prostituta tira a luz, a religiosa dá mais luz.“
Os limites, então, são vários. Nem falei dos limites culturais. Lembro de um romance inglês que logo na primeira página dava a entender que dezoito graus centígrados era a temperatura ideal. Para um carioca, isso é escandaloso. Porém, aí cabe ao leitor lembrar que estamos na Inglaterra, e que ele também precisa fazer um esforço de imaginação. Se ler um romance é colocar-se no lugar dos personagens, o carioca vai precisar acreditar por algumas centenas de páginas que dezoito graus é uma temperatura amena, perfeita. O tradutor vai decidir o que precisa ser traduzido para que o leitor também decida o que ele próprio terá de traduzir em termos de experiências e de expectativas.
O que significa, para um tradutor (em termos pessoais e profissionais), traduzir a obra inteira de um autor, ou passar anos a fio traduzindo um único autor?
Preciso aproveitar a oportunidade para chamar a atenção para um aspecto bastante prático da profissão: como o tradutor literário em geral não tem emprego, não tem nada garantido, a ideia de traduzir a obra inteira de um autor, especialmente se essa obra foi bastante extensa, é algo que ninguém dispensaria. Contratem-me para traduzir todo o Balzac! Vamos traduzir todo o Paul Valéry! Seria um sonho.
Mesmo assim, no caso de Balzac, já temos uma tradução — feita por vários tradutores — de A Comédia Humana. Tento pensar num autor expressivo que tenha um único tradutor em português, e não consigo. Elena Ferrante e Alice Munro já foram divididas entre tradutores, e isso porque, contratualmente, a editora tem prazo para lançar seus livros. Peguemos outros contemporâneos que fazem sucesso entre crítica e público: Philip Roth, David Foster Wallace, Thomas Pynchon. Todos têm mais de um tradutor. Não sei se a Lia Wyler será também a responsável pela tradução da peça do Harry Potter que a J.K. Rowling assinou, mas, apesar de ela ter traduzido todos os livros da série, não traduziu aqueles que Rowling assinou como Robert Galbraith… O que teria sido uma decisão adequada, independentemente de questões de contratos etc.? Veja quantas questões existem aí. O tradutor mantém uma voz, mesmo que imite outras vozes. A voz brasileira de Rowling imitaria a voz de Galbraith, ou a opção por outra tradutora criaria um distanciamento entre Rowling e Galbraith maior do que aquele que existe no original?
Se ficarmos nos clássicos, me parece que quase nenhum deles tem hoje um único tradutor, e isso é extremamente positivo. Imagine que em espanhol só existe um Dom Quixote, mas em português temos vários!
O único caso de que me lembro agora de um autor que foi praticamente todo traduzido pela mesma pessoa, ao menos em português, é Milan Kundera. Mesmo assim, quando sua obra saiu da Nova Fronteira e foi para a Companhia das Letras, a editora mexeu bastante no texto.
Quem comparar as edições antigas e as novas verá grandes diferenças. E isso chama a atenção para outro fenômeno jamais comentado (tanto que fenômeno etimologicamente significa aquilo que aparece e isso definitivamente não aparece): o revisor, o preparador, o copidesque podem ter um papel fundamental. Boa parte dos méritos de minha tradução de Fugitiva, de Alice Munro, é de Ana Lima Cecílio e de Erika Nogueira, duas pessoa que simplesmente têm o dom de fazer aqueles pequenos ajustes que levam um texto do bom para o ótimo. Elas, talvez, acabaram sendo responsáveis por estabelecer uma voz para Munro, trabalhando com vários tradutores.
Entendo que no fim das contas talvez a pergunta não tenha sido exatamente respondida, mas quis mostrar que ela, de certo modo, talvez não se aplique bem à nossa situação brasileira. Porém, acho que ela poderia se aplicar às pessoas que são responsáveis por manter a unidade de uma voz (e que ainda se ocupam de vários trabalhos editoriais não-textuais: verificar prazos, tratar com agentes…), e que teriam muito a ensinar a todos nós que trabalhamos com a produção de livros.
Qual a diferença entre ser um tradutor que escreve e um escritor que traduz? Como isso se reflete no texto escrito e nas traduções?
O primeiro ponto que vale ser mencionado é o fato de, no Brasil, por lei, tradutor ser considerado coautor, ou autor de obra derivada. Isso confere a ele automaticamente o status de autoria. E, é claro, como a tradução é uma escritura, tradutor é escritor. Não que essa questão legal/jurídica faça muita diferença em termos de direitos autorais, mas faz em termos de direitos morais — ou seja, o nome do tradutor precisa ser citado tanto na tradução quanto em todos os meios de divulgação, o que nem sempre vemos acontecer.
A diferença que vale ser apontada é a entre o tradutor que escreve livros de autoria própria, sem se basear num original a ser seguido, e o escritor que traduz outros autores, ou seja, que subordina a própria escrita ao texto de outro. Uma coisa não implica necessariamente a outra, mas o tradutor que tem domínio de técnicas de escrita e estilo pode ter uma facilidade maior para solucionar problemas e recriar vozes na língua traduzida; e, teoricamente, um escritor que se aventura a traduzir teria um respeito maior com a obra do outro justamente por entender como se dá a tessitura de um texto.
No entanto, vemos muito acontecer um movimento contrário — escritores que se mostram livres demais no trato com o texto do outro, produzindo traduções de excelente qualidade literária, mas muito distantes dos originais, com muitas liberdades, e tradutores presos demais à letra dos originais, com um estilo truncado e sem fluência. Por isso insisto tanto na promoção de cursos e oficinas de escrita criativa nos cursos de formação de tradutores, e para que escritores que se aventurem a traduzir também se aventurem nos estudos sobre tradução.
O que significa, para um tradutor (em termos pessoais e profissionais), traduzir a obra inteira de um autor, ou passar anos a fio traduzindo um único autor?
Acho que essa é uma questão que diz respeito mais ao modo como o tradutor é visto pelo outro do que como ele se sente em relação ao próprio trabalho. Em termos profissionais, pode ser interessante que o mercado reconheça determinado profissional como um bom tradutor de determinados autores, como acontece com certas pessoas que traduziram Lacan e se tornaram referência de boas traduções, ou com a obra de Freud. Acho que o mesmo vale para a ficção.
Mas os tradutores precisam tomar cuidado para não se deixar “contaminar” pelo estilo ou pela voz desse autor, principalmente tradutores que também escrevem suas próprias obras — o tradutor (e o escritor), quer queira quer não, acaba se tornando um para-raios de tudo que traduz (e lê), e sem querer incorpora esses estilos à própria escrita. Precisamos filtrar isso. Eu já traduzi oito livros do esloveno Slavoj Žižek, por exemplo, e durante esse tempo fui criando uma terminologia muito precisa, discutindo com outras traduções existentes, descobrindo e redescobrindo as diferentes nuances que a escrita dele assume de acordo com cada época.
Acho importante essa linearidade de termos e interpretações, mas apesar de gostar muito de traduzi-lo, de modo algum me considero “a voz” dele em português — por ele ser muitas vozes, por existirem traduções feitas por outras pessoas, mas principalmente por ser outro que não ele. Prefiro, nesse sentido, ser aquele alto-falante escondido cujo som todo mundo escuta, mas não sabe exatamente onde está.
Alguns outros dilemas que os tradutores enfrentaram em projetos recentes:
De todos os livros que já traduzi, incluindo os de não ficção, Jaqueta Branca, de Melville, foi a tradução mais trabalhosa, mais longa, desafiadora, mais difícil e, ao mesmo tempo, de maior aprendizado. O livro conta a história da viagem de 14 meses de um “marinheiro comum” a bordo de um navio de guerra.
As dificuldades foram muitas, que vão desde a reescrita de um texto configurado em 1850 — o que já exige bastante, pois tentar escrever um texto como o fariam em 1850 é fadar-se ao fracasso de um pastiche, então precisamos buscar um equilíbrio entre o atual e o arcaico –, passam pelo tom de voz muito peculiar de Melville, e diferente das nuances que sua escrita assume em outros livros, e vão até a questão sintática e lexical, principalmente no que diz respeito aos termos náuticos. Foi um mergulho de quase nove meses, uma relação com o autor que às vezes oscilava do amor ao ódio em poucas horas.
Qual a diferença entre ser um tradutor que escreve e um escritor que traduz? Como isso se reflete no texto escrito e nas traduções?
Eu me tornei tradutora depois de ter lido muitos livros brasileiros e publicado o meu próprio — aos 17 anos de idade, a novela No Shopping. Mas minha experiência com tradução começou antes, com jogos eletrônicos em inglês, a partir dos 11 anos: eu já era boa aluna de inglês, mas me debrucei no dicionário e fui melhorando a compreensão na marra; muitos desses jogos eram adventures, focados em história, de forma que dependiam de compreensão de texto para seguir adiante.
Aos 20 anos, já na faculdade de jornalismo, optei por me especializar em tradução, fiz o curso Daniel Brilhante de Brito e, aos 21, fui estagiar num escritório de tradução técnica. Essa época rendeu um romance de ficção científica online, o Penados y Rebeldes, sobre a “vida em escritório” de uma pequena equipe dentro de uma nave espacial; essas pessoas se envolvem com um terrorista que quer provocar o apocalipse. Posso dizer que, no meu caso, uma coisa alimenta a outra, mas a leitura em português veio primeiro — o que acho essencial para produzir frases que pareçam naturais ao olhar brasileiro.
Quais os limites de aproximação e cruzamento entre duas linguagens e duas culturas na tradução?
Gosto do conceito de transcriação de Haroldo de Campos. Em línguas diferentes, há contatos culturais diferentes, obsessões diferentes, e até fauna e flora diferentes. Às vezes é inevitável o original transparecer — e nesse caso há que ter jogo de cintura para tornar essa diferença legível, e não mal-ajambrada. Há algum tempo, traduzi para a Record o romance Bellman & Black, da autora Diane Setterfield — que ainda não saiu no Brasil. Na história, na Inglaterra vitoriana, um menino mata um corvo e sofre uma maldição que o acompanha pelo resto da vida. Começa que não existem corvos no Brasil… só em Portugal. Três espécies diferentes são mencionadas no original: rook, crow e raven, e há apenas uma palavra para as três em português: corvo.
Ao final de cada capítulo da história, o narrador analisa os vários substantivos coletivos para corvo que existem na língua inglesa: a murder of crows, a parliament of ravens, an unkindness of rooks. Quebrei a cabeça até resolver adaptar esses coletivos para ditados e expressões populares: “nunca, de corvo, bom ovo”, “no bico do corvo”, “cria corvos e eles te arrancarão os olhos” etc.
Alguns outros dilemas que os tradutores enfrentaram em projetos recentes:
Traduzi recentemente The Book of Strange New Things (O Livro das Estranhas Novidades), de Michel Faber, para a Rocco. É a história de um missionário contratado para evangelizar alienígenas. Esses alienígenas têm um alfabeto próprio, que aparece no livro, e algumas das letras são equivalentes a fonemas; os aliens falam com “sotaque”, que é grafado com esse alfabeto. Eles pronunciam neste alfabeto os fonemas s, t, e tch (este último transformei em ch em português). Vários conceitos cristãos contêm esses fonemas: church, Jesus Christ, priest… e isso é bastante explorado no livro. O missionário começa a reescrever a Bíblia para os aliens sem esses fonemas — o Salmo 23, por exemplo — e teoriza sobre as diferentes traduções da Bíblia para o inglês. Ainda por cima, a corporação que contratou esse missionário está fazendo grandes empreendimentos de engenharia nesse planeta, e há muito vocabulário técnico. Obviamente, tive uma trabalheira danada com isso, mas meu histórico — sou filha de engenheiro com arquiteta e ex-evangélica— me ajudou muito. Eu sabia quais versões da Bíblia em português poderiam ser equivalentes às citadas no livro, sabia vários sinônimos para cada termo, captei cada referência bíblica… fiz uma adaptação bem orgânica em alguns trechos.
Stephanie Cerqueira Leite Fernandes
Quais os limites de aproximação e cruzamento entre duas linguagens e duas culturas na tradução?
Para mim, isso varia de texto para texto. Muito difícil falar em termos gerais. Eu jamais colocaria uma piada, cenário ou personagem de Wodehouse em um contexto brasileiríssimo – Bertie Wooster em um pub, por exemplo. Por mais capenga que fosse o pub, não traduziria como “boteco”, pois deixaria o personagem — representação da aristocracia britânica em decadência, tentando manter a pose — completamente dissonante. Agora, se falarmos de um roqueiro britânico dos anos 80 enchendo a cara em Shoreditch, numa biografia que fosse, eu não teria pudores em usar “pé-sujo” para ilustrar a estética dessa cultura. É preciso medir, caso a caso, até que ponto a aproximação lapida ou desestrutura o texto.
Quais são as estratégias dos tradutores para recriar dialetos e gírias, quando possível? E quando não é possível?
Gosto muito de traduzir gírias; busco jargões análogos no português brasileiro, e é uma pesquisa bem divertida. Outro dia, passei meia tarde pesquisando como um cidadão comum reclamaria de um café aguado no Brasil em torno dos anos 40 (“água de barrela”!). Já dialetos são mais intrincados, e infelizmente ainda não enfrentei esse desafio. Creio que analisaria o dialeto sob um ponto de vista linguístico e tentaria aplicar seus cacoetes ao português (nova ordem sintática, empréstimos de línguas vizinhas, alongamento de encontros consonantais, e por aí vai). Caso isso se provasse impossível, em última instância, inventaria os meus.
Quais estratégias usar para traduzir poesia escrita na Idade Média para um público moderno? Cabe atualizar o uso dos pronomes ou martelar no “tu” e no “vós” (no caso do português)?
Depende do público e do objetivo da edição, seja introduzir poesia medieval para uma criança, por exemplo, ou compor uma coleção ortodoxa de grandes clássicos. Sou bem tradicionalista, em geral, e procuro preservar ao máximo a experiência do original, contexto linguístico incluso. Um simples pronome pode denotar títulos honoríficos, relações entre personagens, aspirações do eu-lírico, maus tratos e detalhes mil, aspectos do poema que outras palavras não evidenciariam de maneira tão sutil. Costumo martelar em “tu” e “vós”.
Alguns outros dilemas que os tradutores enfrentaram em projetos recentes:
Ano passado, traduzi o poema narrativo O Mercado dos Goblins, de Christina Rossetti. O maior dilema surgiu logo nas primeiras estrofes, que descrevem diversas frutas oferecidas a duas garotas angelicais por criaturas malévolas. Em primeiro lugar, com base em rima e cadência, precisei definir que frutas conseguiria manter no texto traduzido, e que frutas haveria de substituir. Então, para escolher as frutas substitutas, considerei diversos atributos: além da rima e da cadência, sabor, cor, textura, aroma, tamanho da fruta, a maneira como as consumimos, se vêm em unidades ou cachos, e grau de exotismo dentro do universo da história (um mundo mágico e enigmático cuja autora pertence à Inglaterra vitoriana). Nunca frequentei tanto hortifrútis e feiras. Também li bastante sobre frutas e saboreei todas antes de tomar as decisões finais. É um poema bem sinestésico, tudo isso é importante. Depois cheguei a recortar as palavras em pedaços de papel para reconstruir o poema, como um quebra-cabeça mesmo.
Matéria de Juliana Cunha, com colaboração de Fabiane Secches. Participaram, como entrevistados, os tradutores Denise Bottmann, Pedro Sette-Câmara, Petê Rissati, Rogério Bettoni, Simone Campos, Stephanie Cerqueira Leite Fernandes.
Ilustração de Beatriz Leite
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