45º de quarentena. De olhos fechados e respirando calmamente, aprendo no aplicativo de meditação a identificar e prolongar os gaps entre cada um dos pensamentos que me surgem e atrapalham a difícil tarefa de não pensar em nada e finalmente dormir. Meu vizinho de cima está faxinando ou se exercitando ou lutando com alguém às onze da noite. Gap. Tenhamos compaixão e não levantemos para interfonar. Gap.
Hoje meu amigo me mandou um artigo sobre o declínio dos romances onde tenta me convencer de que nada do que se produziu na literatura contemporânea tem valor, se comparado aos clássicos. Pensamos diferente e, como semana passada ele deu o braço a torcer para umas previsões astrológicas contra o governo (que se realizaram), nessa é a vez dele tentar me convencer do seu lado. Somos civilizados e nossos debates costumam ser bastante enriquecedores, geralmente comigo cedendo em algum ponto.
Acho absurda a ideia do artigo de que não se produziu nada de grande relevância desde os anos 50, como diz Joseph Bottum em seu The decline of the novel. E se Ítalo Calvino publicou Por que ler os clássicos?, também achei um exemplar de Por que ler os contemporâneos? endossando Zambra, Tabucchi, Chimamanda, DFW, Murakami, Egan, Auster, Zadie Smith, entre muitos dos meus favoritos. Ou posso apenas dar o braço a torcer (mais uma vez) e concluir que literatura é sempre uma questão de gosto.
Para piorar, a lista da escola do meu filho indicava William Golding (O senhor das Moscas, nunca lido por mim, real gap) e Juan Pablo Vilalobos (Festa no Covil, devorei esse e os outros três dele). Talvez num típico ato adolescente de querer contrariar a mãe, o Lo escolheu o mais clássico, decisão justa e meio absurda, já que a outra opção é a atraente história de um menino filho de traficante que sonha em ganhar um rinoceronte branco anão. Deixei meu amigo saborear mais essa vitória do mundo clássico.
Agora, aqui deitada, tento entender quantos móveis meu vizinho de cima tem no quarto pela quantidade de barulho que faz arrastando cada um deles, e penso nos quatro livros contemporâneos que encomendei na Estante Virtual ontem e se oferecem risco de transmissão de covid-19. Gap. Minha geladeira faz som de grilo porque foi presente de casamento (tem 17 anos) e consigo ouvi-la mesmo com a porta da cozinha fechada. Gap. Calculo que 474 mortes em 24 horas dá quase uma morte a cada três minutos, e sou de humanas, ruim de contas. Gap. Recebo uma mensagem de um amigo casado perguntando se casei de novo. Digo que não e evito pensar que a pergunta tenha uma segunda intenção. Gap.
Volto a me preocupar com as pequenas livrarias que abriram contra todas as projeções de que o brasileiro não lê o suficiente e questiono a minha opção de comprar exemplares usados. Depois penso em reciclagem e acho que fui sensata. Eu poderia me acostumar com o Kindle já que me acho tão contemporânea e se tivesse a mais remota ideia de onde guardei o carregador. Preciso ler mais clássicos, concluo, com vergonha da minha petulância em publicar um romance sem receber uma base clássica decente. Gap. Finalmente o vizinho faz silêncio e posso dormir.
Mas chega a vez dos phrasal verbs da semana. Stop putting off the house chores, Janine. Amanhã preciso passar aspirador e tirar o pó dos móveis. Penso em fazer tudo antes das sete da manhã com bastante barulho para acordar o vizinho, mas lembro da compaixão que devemos ter na quarentena. Putting up with my selfish neighbour. Vou ler Lord of the flies no Kindle, porque é um clássico e ainda dá tempo de correr atrás de uma base clássica. Gap. Talvez tenhamos um parceiro inglês interessado na nova empresa. Mais um bom motivo pra estudar a língua e decorar os malditos phrasal verbs.
Alguém grita na janela “Bolsonaro Assassino” e fico pensando se é porque nosso presidente disse “E daí?” para as 474 novas mortes em 24 horas, uma a cada três minutos, fora as subnotificações. Não é hora de abrir o celular e atrapalhar a contagem dos gaps entre os pensamentos. Basta tomar um comprimido que uso para viajar (já que viagens estão fora de perspectiva) que meu cérebro entenderá o comando e desligará The Strumbellas tocando em looping na minha cabeça. I got guns in my heads and they won’t go, Spirits in my head and they won’t go… Vou tentar tirar amanhã no violão.
Não casei de novo. Quem mandou não ter uma base clássica. Mas que diabos? Gap. Talvez esteja com sede. Se levantar da cama posso perder a contagem. Desisto de tentar me enganar com gaps. São duas da manhã e meus pensamentos parecem os cavalinhos do Bozo da minha infância, correndo para ver quem chega antes e toma minha atenção. Penso que estou deitada de barriga para baixo, posição impossível numa poltrona de avião e tento ver alívio nisso. Imagino a contagem regressiva de quem vai entrar na anestesia, como nos filmes. First insomnia in 45 days. White people problems.
Me rendo e coloco um comprimido amargo debaixo da língua. A contemporânea, cabelo rosa, que detesta alopatia e tá meditando há mais de 5700 minutos, segundo o Insight Timer, arregou. Meus pensamentos obedecem à uma estratégia nessa quarentena e não vão embora para evitar que os sentimentos ocupem o seu lugar de direito. Essa batalha clássica eu conheço e prefiro evitar. Ao contrário do presidente, eu sinto e sinto muito. A filha do vizinho de cima chora, como acordada por um pesadelo ou pelo “Bolsonaro Assassino”. Não me incomoda mais. Já sinto meu grande gap chegando.
Janine Bitencourt é sócia do estúdio de consultoria Sincronicida.de. Formada em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado, publicou o romance ‘Versão Beta’ (Terracota, 2012) e é co-autora da antologia ‘Contos Mínimos’ (Guarda-chuva, 2012).
Imagem: Insomnia (Taha Serif).
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