Existe uma força bonita na relação de uma leitora com seu livro que se dá justamente pela infinitude de percursos imaginários que a literatura é capaz de proporcionar. Ainda que normalmente concebida de uma maneira silenciosa e passiva, a leitura pode ser um deslocamento enorme – um trajeto literalmente nas mãos para escapar às infelicidades da realidade. É dessa maneira que Anne Shirley se debruça sobre os livros. Personagem da série a qual dá o nome, Anne with an E nos conta a história dessa menina órfã que, no fim do século 19, após uma vida de clausura e sofrimento, é adotada por um casal de irmãos e pode finalmente ser a heroína de sua própria aventura.
A série é uma das muitas adaptações do primeiro livro escrito pela autora canadense Lucy Maud Montgomery. Pode-se dizer que a obra publicada em 1908 está inserida numa tradição literária na qual escritoras constroem suas protagonistas a partir de sua relação estreita com a leitura, a escrita e a educação, de maneira que consiga transformar seus percursos ou ainda “salvar” suas vidas. De Jane Austen a Elena Ferrante, a lista se estende entre séculos assegurando justamente o poder dessas relações para uma mulher, ainda mais por se contraporem aos ideais de épocas, que negavam a nós a autonomia que os estudos podem proporcionar.
Não à toa, as primeiras falas de Anne no episódio de abertura da série são uma referência à Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Livro publicado em 1847 — e provavelmente lido por Montgomery —, também conta a história de uma órfã que nutre o desejo de expandir seus horizontes desde a infância no internato, e somente depois de se tornar professora consegue encontrar uma vida diferente da que conhecia. Ao longo dos episódios, Anne se volta para Jane como um exemplo a ser seguido, ou na cabeça de uma garota de treze anos: a única pessoa que poderia entender o que acontece com ela. Sem mais precisar do livro, ela cita as passagens com as palavras na ponta da língua e assim conseguimos entender, entre flashbacks angustiantes e os desafios de sua nova vida, que aquele livro foi por muito tempo a “realidade” que ela conhecia.
Mas ao contrário do tom obscuro das histórias das irmãs Brontë, Anne with an E reverbera uma leveza que certamente dá o encantamento à série, e assim por três temporadas ficamos envolvidos na singela vida de Anne, em uma cidade fictícia criada pela autora do livro — Avonlea — na Ilha do Príncipe Eduardo, no Canadá. Da sua relação com os irmãos Matthew e Marilla Cuthbert ao dia-a-dia na escola local, as suas aventuras se atêm às possibilidades do que pode ocorrer na vida de uma adolescente no fim do século 19. Nesse bonito cenário, acompanhamos os dilemas não só da mudança para uma realidade muito sonhada — que é sua condição de filha, em um lar amoroso —, como todas as dores e alegrias que esse período da vida — a adolescência — pode proporcionar: a aparência, os amores, as amizades e a descoberta do “mundo dos adultos”, da ordem e do dever. Afinal, Anne conhece pouco da vida, ainda que seu maior desejo seja viver. Assim, apesar de toda a singeleza, o peso maior da série se encontra no duro confronto de uma garota que por muito tempo se escondeu no mundo das histórias inventadas para se deparar numa realidade que, ainda que muito desejada, não se ordena como a imaginação.
“Scope for the imagination”, ou na tradução, escopo ou espaço de imaginação, é a expressão que a protagonista mais usa nas duas primeiras temporadas. Deslumbrada com a nova vida, ela se encanta com o tanto de possibilidades que Avonlea e Greengables (a fazenda dos irmãos Cuthbert) pode proporcionar. Sem o ímpeto de fugir ou se refugiar em histórias, a vida de Anne é pura e simplesmente a motriz de toda sua imaginação e é emocionante ver a garota deslumbrada com a própria realidade. Embriagada por esse grande devaneio real, ela não deixa escapar nada para continuar compondo suas fantasias: até mesmo a pequena folha de uma árvore, um fruto seco ou flor prensada têm valor de relíquia — é uma aproximação intensa das pequenices, uma valorização das cotidianidades, que chega até o espectador como um bom questionamento sobre a importância que damos para as coisas ao nosso redor.
Por continuar a misturar imaginação e realidade, Anne muitas vezes tropeça no fio que divide essas duas noções paralelas. Seja por falar demais, desejar o improvável, ou por um excesso de altruísmo, os dramas da protagonista despontam sempre com aprendizados, e ainda que nem sempre tenham consequências diretas para ela, o que assistimos são, até certo ponto, os anos de formação de uma menina. Dentre os acontecimentos, é engraçado se reconhecer nas angústias do crescimento de Anne, fazendo com que nós, espectadores, nos percebamos relembrando dos próprios casos com muita graça.
Mas para além da história de uma jovem se equilibrando entre imaginação e realidade, a série também traz à tona o tema do reconhecimento da diferença, tão caro nos dias de hoje: gênero, racismo, liberdade de expressão e a figura do índio são alguns dos assuntos que envolvem os personagens e tecem a trama da série, da primeira à última temporada. Além do momento histórico, Avonlea é retratada como uma pequena cidade ainda baseada em tradições e preconceitos. Anne, também como uma estrangeira, é a porta-voz dessas “novidades”. A partir de tais discussões — leves como o tom da série —, laços bonitos são construídos entre as diferenças, e para mim essa é uma das maiores belezas que série consegue criar.
Infelizmente, foi anunciado seu cancelamento na terceira recém lançada temporada. A decisão foi tomada a partir de uma quebra de contrato entre a Netflix e a CBC, canal canadense que a produzia, o que comoveu os fãs e os mobilizou numa grande campanha. Abaixo assinados contra o fim da série foram feitos, e o dinheiro arrecadado em petições online conseguiu comprar um outdoor em plena Times Square para chamar atenção dos responsáveis: Anne with an E não poderia acabar. Ainda assim, a decisão continua a mesma, mas uma brecha de esperanças foi aberta por conta da enorme movimentação. Afinal, a história de Anne continua nos livros que Montgomery continuou escrevendo depois do primeiro.
Considerando a terceira temporada como o desfecho de sua história, é bonito ver o desenvolvimento da personagem de Anne acompanhando a sua maturidade: o primeiro episódio se inicia com a comemoração pelos seus dezesseis anos. É o começo de uma nova vida, da mesma maneira que o primeiro episódio da série. Porém, dessa vez, seus desejos não correm para um futuro de devaneios, mas sim para um passado difícil de confrontar — nesta temporada, Anne decide descobrir quem são seus pais. Assim, as pontas se unem nesse fim de série quando relembramos a primeira temporada, em que a personagem afirma sentir mais prazer em imaginar do que lembrar as coisas, pois suas memórias são dolorosas demais. Mas ela se reconcilia, e esse é o final feliz muito bem feito para quem acompanhou o percurso da menina: depois de tantas idealizações de si e do universo ao seu redor, Anne finalmente consegue se encontrar com a realidade de si mesma.
Não é preciso percorrer a série até o último episódio para ver Anne em conciliação. Já no primeiro, quando está a caminho de Greengables com Matthew e vê o cenário de sua nova vida pela primeira vez, ela começa a renomear as paisagens ao seu redor com seu vocabulário de leitora fervorosa. Esse momento, muito mais a tagarelice criativa, é a imagem de alguém que consegue realizar a difícil aproximação entre imaginação e realidade, utilizando, para nomear os lugares da própria vida, as palavras dos livros que leu.
Gabrielle Gonçalves é estudante de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Imagem: cena da série ‘Anne with an E’ (Netflix).
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