Como dividir um apartamento com fantasmas
No meio do meu apartamento fica um altar. É uma prateleira alta do armário embutido, em um ângulo que, do meu 1,60m no corredor estreito, eu mal enxergo. Nela moram algumas figuras católicas – uma boa quantidade de imagens de São Francisco de Assis, uma ou outra cruz, até um bobblehead do Papa Francisco.
Quando me mudei, de vez em quando abria um uma gaveta e encontrava uma imagem religiosa. Santinhos, rosários, escapulários, revistas e calendários. Estavam sobrando nos cantos que eu ainda não tinha arrumado, nos pedaços dos armários em que guardamos a bagunça e que aos poucos aprendemos a pular, como se simplesmente não existissem.
Não sou católica, os santos não são meus. Não eram, pelo menos. Pertenciam ao meu avô, espalhados por todos os cantos da casa dele, presos aos quadros, enfileirados no móvel da sala, amontoados na mesa de cabeceira, pregados nas paredes, vigiando cada cômodo. Na casa dele, que agora é minha. Que nem os santos, que agora são meus. E que, na minha ignorância agnóstica, foram relegados ao altar quase invisível que de vez em quando aponto para os amigos que visitam só para mostrar o inusitado Papa Francisco balançando a cabecinha.
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É estranha a escolha vocabular para explicar o apartamento que era do meu avô, e antes também da minha avó, e que agora é meu. Até porque não é — meu, quero dizer. É do meu pai, que herdou no sentido mais literal da palavra os dois quartos no Bairro Peixoto em que viveu um pedaço da juventude. Eu, a filha de vinte e alguns anos da classe média carioca, só “herdei” com aspas, no papel de inquilina e moradora responsável pela manutenção desse espaço; dessa memória.
Isso quer dizer que, tecnicamente, os santos também são do meu pai, provavelmente. Ou não são de ninguém, ou são ainda do meu avô, ou são ainda da minha avó, ou são independentes e soberanos. Talvez os santos também só sejam inquilinos e moradores, responsáveis, a seu modo, pela manutenção do espaço e da memória.
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Os azulejos da cozinha e do banheiro são os mesmos desde os anos oitenta: tons de bege e marrom estampando flores e árvores. Na primeira vez que entrei aqui para arrumar as coisas, postei uma foto na internet. Pelo menos dois amigos com avós portugueses responderam dizendo que tinham crescido em banheiros iguais. Quando fiz uma obra hidráulica para me mudar, minha maior satisfação foi encontrar os mesmos azulejos para substituir os trocados.
Tudo, na verdade, era igual desde os anos oitenta. Os armários da cozinha, cujas portas de vez em quando desmontam. O chão de taco que viveu décadas escondido e preservado por uma camada dura de carpete cinza. A única luminária que ainda não troquei, nos fundos do apartamento, um cacho de esferas que ocupam o cômodo de forma teatral. O armário embutido no corredor, cuja porta principal revela um bar de prateleiras de vidro e paredes espelhadas com um cheiro avinagrado impossível de tirar.
A maioria dos móveis se foi quando eu entrei (exceto o já mencionado móvel da sala: dois aparadores pretos envernizados com portas amarelas e puxadores dourados grandes demais). Arrancamos o carpete e o chão de taco brilha, mesmo que já arranhado no canto em que vivo arrastando minha poltrona. Mas eu não paro de encontrar os anos oitenta escondidos, como os santos: um facão no alto de um armário, um talão de cheques caído atrás da gaveta, a máquina de costura para a qual não tenho uso, as bijuterias que colocava de brincadeira aos cinco anos e que de vez em quando ouso vestir a sério.
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Morar sozinha, sozinha mesmo, torna todos os desafios práticos emocionais. A escolha da gaveta correta para o pegador de salada, o primeiro prego que tive coragem de martelar na parede sem ajuda, a tampa do vaso sanitário que está perdendo parafusos mas tenho preguiça de trocar, o aspirador de pó que é pesado e de vez em quando largo no meio do corredor — cada elemento diário e rotineiro da minha vida ocupando esse espaço me ensina um pouco sobre mim mesma, me faz confrontar minhas facilidades e meus limites.
Estar sozinha é necessariamente predicado em autodescoberta e autoconhecimento. Quanto eu preciso comprar toda semana na feira? O que eu finjo para mim mesma que gosto mas na prática acabo deixando estragar na geladeira? Podendo me alimentar como e quando decido, quantas vezes por mês cedo à tentação de pedir delivery de sorvete? Trabalhando em um escritório que posso isolar do mundo, até que horas mergulho numa tradução que quero terminar? Matemática nunca foi meu forte, mas fazer as contas fica mais fácil quando o denominador é sempre um: uma pessoa, uma casa, um quarto, um escritório, uma cozinha, um horário para dormir, um horário para acordar, um armário para distribuir os cabides.
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Copacabana é o bairro com mais idosos do país e com a maior densidade populacional do município. Em um raio de duas quadras do meu prédio, tenho acesso a todos os comércios e serviços que preciso: a feira das quartas de manhã; o metrô mais próximo; alguns supermercados; a academia onde faço aula de boxe; uma farmácia 24h; todo tipo de comida; uma agência do meu banco; lojas de eletrônicos, de material de construção, de roupas, de coisas que eu nem sei que existem até a hora em que preciso.
Apesar de uma vida inteira na Zona Sul do Rio de Janeiro, quando me instalei aqui me senti a protagonista de uma comédia romântica chegando pela primeira vez na cidade grande. Nas primeiras semanas, dormi com tampões de ouvido, perturbada pelo barulho da rua. Cada encontro no elevador (um elemento que nunca estivera presente em outros lugares em que morei) me gerava angústia quanto à etiqueta apropriada. Me perdi no play no dia da primeira reunião de condomínio e acabei desistindo e indo ao cinema. Levei mais tempo do que é ideal para lembrar qual era a saída certa da estação do metrô.
Quando me senti suficientemente acomodada no apartamento, abri um pouco mais a rede, tentando me acomodar no bairro. Comecei com a feira, meu ritual preferido, a praça que percorro com um carrinho amarelo estampado de corações, ouvindo um podcast sobre Buffy, a caça-vampiros, me presenteando com uma água de coco, um buquê de flores, um bolinho de bacalhau e um saco de bala de leite entre cada escolha mais racional e importante de alimento. Depois da feira, a padaria que vende manteiga um pouco cara demais mas tem rosquinhas açucaradas que tenho que me controlar para não devorar ainda no elevador. A loja de eletrônicos onde insisto em comprar o fone de ouvido mais barato, usar até quebrar, e comprar de novo, e que no fim do ano era uma festa de Natal constante, coberta de luzes e exibindo balões tortos que diziam 2081.
Cada passo, cada quadra, cada esquina tem coisas a serem descobertas, a sensação de um microcosmos fechado da vida carioca da minha porta até a praia. Já quase não gaguejo ao dizer “minha casa” (exceto na frente dos meus pais), mas toda vez que chamo Copacabana de “meu bairro” rio como se fosse uma brincadeira, até uma surpresa; o implícito nas duas palavras é “imagina só, eu agora moro em Copacabana, quem diria?”.
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Um dia saí do banho convencida de que o apartamento estava assombrado. Pisei fora do chuveiro e me deparei com uma marca de mão no espelho embaçado, muito acima de onde alcanço. Entendi, de repente, como funciona a lógica dos protagonistas de filmes de terror a que gosto de assistir: enquanto grito “vai embora! se muda! queima tudo!” para a tela, o morador da casa assombrada pensa “me mudar vai dar trabalho! fantasmas nem existem! é só um acontecimento inexplicável, mas meu aluguel é tão bom, gosto tanto daqui, mudança dá um trabalhão”. Dei de ombros, fui para o quarto me vestir, contei para todo mundo que minha casa era assombrada.
Não acredito em fantasmas, particularmente. Cresci cercada de uma aura de agnosticismo pregada da máxima “no creo en brujas, pero que las hay, las hay“, então estudo astrologia, leio tarô para minhas amigas e, confrontada com uma marca inexplicável no espelho, decido sem muita emoção que a casa é assombrada. Mesmo que não o seja, literalmente, o valor metafórico da imagem é tão explícito que mal serve à narrativa: meus avós ainda estão aqui, do porta-retratos na minha escrivaninha à enorme Bíblia caindo aos pedaços que se juntou à minha estante. Estão aqui a juventude do meu pai, as brigas intensas de família, a doença da minha avó, o luto do meu avô. Estão aqui também meu próprio luto, a alegria dos amigos que recebi, os vinte e alguns anos que arrastei comigo como uma mala pesada, as inúmeras vezes que chorei, minhas tentativas de navegar a solidão.
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Apto 2 quartos no Bairro Peixoto. Dependência completa. Vaga de garagem, elevador e porteiro 24h. Próximo ao metrô. Mobiliado. Acompanha uma coleção de santos, um possível fantasma e uma moradora solitária.
Sofia Soter é escritora e tradutora.
Ilustração de Celeza Ramalho
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