O futuro chegou
Já conseguimos nos comunicar ao vivo com alguém em outro hemisfério instantaneamente. Dos 7 bilhões de pessoas que habitam o planeta Terra, ao menos 1 bilhão hoje consegue realizar uma ligação utilizando aplicativo de celular. Nem cheguei em casa e minhas vizinhas me alertaram pelo WhatsApp: uma ponte ruiu na Marginal Pinheiros em São Paulo. Pelos stories do Instagram, espio as travessuras da cachorrinha Pipoca em Campinas. Pelo Telegram, o amigo compartilha a dissertação de mestrado sobre literatura especulativa em Cuiabá.
Há uma felicidade no contato diligente, na manutenção de laços e no localizar pessoas que possuem os mesmos interesses específicos que os próprios ao redor do globo. Seria ingenuidade tremenda pensar que toda estas possibilidades não seriam tarifadas no sistema capitalista. Até agora, tudo o que paguei foi o boleto da Vivo pelo uso de uma linha de telefone.
É incômodo pensar: afinal de contas, quem paga por estarmos neste mundo das maravilhas? No pacto por mais conhecimento, não prestamos muita atenção nas letras miúdas. Inclusive, se lembramos que lemos as letras miúdas, logo as esquecemos, recalcamos com a borracha do não-quero-nem-pensar. Terrível imaginar o preço por uma dádiva.
A dádiva é possuir uma máquina, símbolo de poder.
A dádiva é perfeita, simpática, funcional. Resolve pequenos pepinos de forma criativa, “essa gente usa a foto do celular para tudo”, transmite emoções, cumpre tarefas, te acompanha solidariamente (afinal, estar numa festa teclando no celular sugere função semelhante ao ir fumar lá fora: você é uma pessoa plena, ocupada, entretida na própria companhia — quase sexy, se não parecer um comportamento aditivo).
O produto é você!
Há uma modalidade de história cômica, na qual o gênio da lâmpada compreende todos os nossos desejos ao pé da letra. Nessas versões, para o azar de quem achou que tinha chegado a hora de mudar a vida, tudo dá errado.
Semelhante ao gênio da lâmpada da farsa, o Vale do Silício entregou-nos tudo o que desejamos. Conhecimento ilimitado. Autonomia. Colaboração. Compartilhamento. Por um instante, nossa sorte virou, uma boa estrela. Mal houve tempo de celebrar. A interpretação do desejo, feita ao pé da de câmbio virtual, não possui lastro. Desejos sem lastro são moldados facilmente.
Se a coisa toda é de graça, devíamos ter desconfiado, não? Inda mais aqui do Brasil. Se nos deram de graça algo o motivo é evidente: cilada.
Utilizar serviços na Internet, a exemplo das redes sociais, termina por ser grátis, pois é você que está à venda. São os teus dados a moeda que você entrega. No início, a gente pode até se animar, “uau, finalmente alguém está me dando valor!”. Entretanto, logo o pacto se torna mais complexo: não somente querem teus dados, mas como querem te induzir a fazer coisas. Comprar coisas. Moldar teus desejos. Querem os teus dados e as chaves para o que te move.
O pacto avança. O produto é você, mas você pouco vale enquanto individualidade. Você só vale se estiver dentro de uma colmeia. Você possui tanto valor quanto uma abelha sozinha na produção de mel. Na produção de mel, somente a colmeia toda interessa. O buzz, escutar, processar, calcular e dirigir o buzz.
Dessa forma, o valor de teus dados só possui peso e significância se for computado ao lado de muitos outros dados de muitas outras pessoas. Big data. Um maciço de dados e dados a se perder de vista. O petróleo do século XXI. Um número impossível de imaginarmos com nossos olhos humanos. Dados oferecem formas de calcular padrões de comportamento. Previnem gestos. Mais do que isso, são capazes de, a partir de previsões, sugerir coisas. Alterar escolhas. Soprar no teu ouvido, “clique ali”.
The Big Other, nas palavras de Shoshana Zuboff, “não busca somente prever comportamentos, mas também influenciar e modificar comportamentos humanos”. The Big Other sem a colmeia não faz mel. E para isso precisa atrair colmeias inteiras de abelhas. A nova forma de capitalismo no século XXI necessita desta mineração incessante de dados. Big Data, define Zuboff, “é um componente fundamental de uma nova lógica de acumulação, profundamente intencional e com importantes consequências”. Consequências em alterar ações humanas.
Quando foi que cedemos?
Quando foi que ocorreu? A entrega de nossos dados para recolhimento, organização, computação e experimentação? Foi no momento em que compramos a estranha narrativa que tudo seria gratuito e a Internet, essa terra virtual de utopias, seria intocada pelas mãos imperfeitas de humanos.
Evgeny Morozov explica bem a estranheza da proposta inicial: imagine um serviço de correio novo, “(…) em vez de selos, adotaríamos um sistema baseado em publicidade: abrimos todas as cartas que você envia, digitalizamos o conteúdo, introduzimos um anúncio relevante, fechamos de novo a carta e a enviamos ao destinatário”.
No momento em que decidimos que aquilo tudo, a Internet, era algo muito complicado para pessoas leigas compreenderem, nós perdemos. Largamos a mão de raciocinar junto, de barganhar, de nos apoderarmos da linguagem a nosso favor. Deixamos que a tecnologia, este presente vestido da neutralidade do futuro e progresso, entrasse em nossas confidências secretas. Obedecemos.
No livro Estação Perdido, de China Miéville, há um grande robô inteligente, morador de um ferro velho e formado de lixo, de coisas usadas e jogadas fora. Do refugo parece ter moldado as próprias partes. Seu nome é Conselho. Conselho possui outros robôs menores ao seu comando, de robôs de limpeza doméstica a outros tipos mais sofisticados. O grande robô Conselho é adorado por seres humanos residentes do bairro operário que cerca o ferro velho. Essas pessoas cultuam-no nas horas de descanso e, ao serem convocadas, o obedecem cegamente, mesmo que não compreendam muito bem o motivo de suas ordens. Para se comunicar com seres humanos, o robô Conselho acoplou um homem morto a um cabo — uma espécie de marionete-zumbi, que com suas cordas vocais cadavéricas pode pronunciar frases por ele.
Na ficção, as pessoas parecem intuir que haja ordem maior que somente o grande robô inteligente Conselho compreenderia. Semelhante ao nosso de submissão diante do mergulho em tecnologias de comunicação? Big data pautando assuntos, inundando horas de descanso e alterando a nossa maneira de nos comunicar, aplicativos e redes, provocando efeitos sociais que nem mesmo compreendemos, mas já aderimos.
Segundo George Amaral, que estudou a obra de China Miéville, o avatar-zumbi acoplado ao robô inteligente Conselho pode ser considerado uma representação do “racionalismo exacerbado e do poder relegado ao cálculo que impregnam o pensamento dentro do sistema capitalista, sendo tomados como verdades inquestionáveis”.
Não é à toa que o robô inteligente afirma: “Computo, logo existo”. Computar se torna, aqui, algo com mais poder do que pensar. O algoritmo, ao computar tudo, termina por decidir como iremos nos comportar. Um tema antigo na ficção científica: a computação no sentido maligno. A humanidade cerceada por máquinas. Tudo por um deslumbre que temos em alcançar um poder maior.
O que não prevemos é que quem irá falar não será uma voz única, um Big Brother. De forma envolvente, a técnica de microtargeting permite que o Big Other fale por intermédio de uma voz que você adora, respeita. A partir do exame de teus dados entrega a melhor forma de te convencer. Mais astucioso, antecipa quais resultados antes mesmo de se chegar ao final do trajeto. Para onde íamos mesmo?
Ana Rüsche é escritora e doutora em Letras pela USP. Publicou Do amor (Ed. Quelônio, 2018) e A desconexão telepática e seus abalos sísmicos (Revista Mafagafo, 2018). Mantém o podcast Incêndio na Escrivaninha.
Ilustração de Sumaya Fagury
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