Durante o segundo turno, era recorrente a reclamação acerca da dificuldade de argumentar com os eleitores de Jair Bolsonaro: “Parece que eu estou conversando com uma planta”, disse alguém. “Estou me sentindo em um filme de ficção científica em que todos viraram zumbis”, reclamou outro. A princípio, os motivos seriam tão incompreensíveis por conta da obscenidade dos arroubos autoritários do candidato e sua coletânea de declarações racistas, homofóbicas e misóginas, que escandalizaram até mesmo um ícone da extrema direita europeia, Marine Le Pen. Mas, por ora, vamos deixar de lado a hipótese de que todos seus eleitores também sejam fascistas, racistas, homofóbicos e misóginos.
É estrategicamente ruim colocar um peso moral na decisão de cada um nas urnas. Afirmar uma posição de superioridade moral em relação ao inimigo só produz o mesmo efeito no campo adversário, que retorna com sinal invertido. Steve Bannon, estrategista político fundador da Cambridge Analytica, recentemente declarou: “Let them call you racist and consider it a badge of honor” (“Deixe que te chamem de racista e considere isso como uma medalha de honra”) — de fato, o apontamento moral direcionado aos eleitores foi ineficaz em produzir resultados favoráveis à esquerda na eleição brasileira.
Vamos pegar como exemplo essa fala específica de Steve Bannon. Em que universo ser chamado de racista é algo a ser considerado honroso? Esse mecanismo psicológico propicia um moral switch análogo àquele realizado por Goebbels. O Ministro da Propaganda nazista moldou a moral alemã a ponto de inverter o mais famoso mandamento de Moisés: “Não matarás” torna-se “Matarás”. Finda guerra, e com o colapso do Terceiro Reich, a estrutura anterior foi automaticamente invocada. Da mesma forma, a moral bolsonarista é aquela em que jornalistas, professores e artistas são perseguidos e difamados enquanto um torturador é reverenciado.
“Escolhi voltar a nossa atenção para as questões morais, aquelas que dizem respeito à conduta e comportamento individual, as poucas regras e padrões segundo os quais os homens costumavam distinguir o certo do errado, e cuja validade supunha-se ser evidente para toda pessoa mentalmente sã como parte da lei divina ou natural. Até que, sem grande alarde, tudo isso desmoronou da noite para o dia, e então foi como se a moralidade de repente se revelasse no significado original da palavra, como um conjunto de costume (mores), usos e maneiras que poderia ser trocado por outro conjunto sem maior dificuldade que enfrentada para mudar as maneiras à mesa”, escreve Hannah Arendt no ensaio “Algumas questões de filosofia moral”, presente no livro Responsabilidade e Julgamento (Companhia das Letras).
Pajubá Reverso
Os eleitores do Bolsonaro nos parecem plantas ou zumbis porque a polarização extrema fomentada pelas guerras culturais fez com que falássemos línguas diferentes — literalmente. Pablo Ortellado escreveu uma rápida análise no Facebook sobre a manifestação “PT Não”, do dia 22/10: “Um pedaço da perplexidade advém do fato de que os termos não são o que parecem querer dizer. O comunismo não é a ideologia que defende a justiça social, mas uma espécie de manobra das elites em prol da corrupção. Por isso, podem ser chamados de ‘comunistas’ sem pudor, não apenas o PT, mas também a Globo, a Folha, a USP, o PSDB e o MDB. O mesmo se aplica a termos como ‘nacionalista’ e ‘patriota’ que parecem mais afirmar o compromisso com uma espécie de ordem nacional do que a defesa dos interesses da economia, dos empregos ou da cultura nacionais”.
Trata-se não apenas de valores diferentes, mas de todo um novo léxico — ou, conforme brincou um amigo, uma espécie de pajubá reverso. No pajubá, dialeto informal usado pela comunidade LGBT, “apelidos” são dados para uma série de palavras, mas o conceito permanece o mesmo: coió é agressão; picumã é cabelo; neca é pênis, e por aí vai. Originalmente, eram termos em iorubá (língua nigero-congolesa do grupo Kwa) que serviam como proteção para que pessoas de fora do grupo não entendessem o conteúdo da palavra, como uma linguagem criptografada. Mas, no contexto das guerras culturais, o significante permanece o mesmo e o que muda é o significado. Imediatamente, relembrei uma série de discussões aleatórias nas redes sociais em que meu estado de perplexidade só aumentava. Como é possível acusarem de propagar o comunismo entidades tão fundamentalmente capitalistas como The Economist e Banco Santander?
“São globalistas”, respondeu-me um bolsominion arrogante. Essa expressão pode servir com um bom exemplo de pajubá reverso. Até pouco tempo atrás, tratava-se de um sinônimo da globalização financeira tão criticada pelas organizações trabalhistas e ambientais e pela esquerda em geral que se opunha às políticas do Banco Mundial e FMI. Mas, de uns anos para cá, tudo mudou. A alt-right americana sequestrou o termo. Quinn Slobodian, autor do livro Globalism (Harvard Press), versa sobre o tema no New York Times: “Durante os anos 90, havia um movimento chamado alter-globalização — um tipo diferente de globalização que procurava atender os direitos trabalhistas e das minorias, com qualidade econômica e ambiental. Hoje, não há traços disso, porque venceu a versão da direita sobre a alter-globalização, em que o fluxo de mercado e dinheiro permanecem, mas sem o fluxo de pessoas; e sem migração livre, democracia, multilateralismo e igualdade humana”. Globalismo deixou de ser um conceito amplamente estudado pela academia para se tornar um termo difuso com ares de teoria da conspiração — quase como uma versão século XXI do Protocolo dos Sábios do Sião.
Aqui no Brasil, não existe um conservadorismo moderno intelectualmente organizado, portanto muito da ideologia vigente foi importada dos Estados Unidos. Em 2006, Olavo de Carvalho escreveu uma carta pedindo doações na internet para seu novo livro, A Mente Revolucionária: “O objetivo imediato é conscientizar a elite americana da loucura que faz ao dar suporte político, jornalístico e financeiro a organizações latino-americanas de esquerda que, por baixo de uma persuasiva máscara democrática e legalista, conspiram com o Foro de São Paulo para a disseminação do caos revolucionário no continente”. O livro nunca foi escrito, mas a carta resume todo o paranóico universo dos olavetes e se tornou a base do discurso padrão do tio reaça no grupo de família do WhatsApp.
Como adotar uma linguagem comum para dialogar com essas pessoas? A chave para facilitar essa tradução entre direita e esquerda foi apontada pelo professor de filosofia Rodrigo Nunes: “Entre as lições mais úteis do chamado perspectivismo ameríndio para a política está a ideia de que a sensação de que entendemos aquilo que uma pessoa diz porque entendemos as palavras que ela usa é frequentemente enganadora. Começamos a compreender um discurso apenas quando começamos a entender a maneira como diferentes conceitos, que podem ser nominalmente iguais a conceitos que reconhecemos do nosso dia a dia, relacionam-se entre si — isto é, quando, ao invés de supor que são usados da mesma maneira que nós os usamos, somos capazes de apreender seu funcionamento no interior de um sistema conceitual distinto do nosso”.
Por outro lado, a esquerda também mudou sua linguagem, deixando de lado o discurso marxista da luta de classe, que era mais facilmente compreendido pela base. A esquerda pós-68 incorporou novas demandas como as questões de gênero, etnia e orientação sexual. Com a internet, um vocabulário que antes era restrito ao ambiente acadêmico se espalhou de forma extremamente diluída — e, às vezes, distorcida. De repente, Michel Foucault, Jacques Derrida, Judith Butler e demais pensadores da última metade do século passado estavam no epicentro de discussões banais dentro de uma bolha estendida — e conceitos como empoderamento, desconstrução, cultura do estupro, lugar de fala e apropriação cultural brotavam em memes ultracompartilhados.
Na guerra cultural, o conservadorismo corre com vantagem por trazer conceitos que todo mundo aprende nos primeiros anos de vida e não um vocabulário praticamente acadêmico. Para quem está fora da bolha, e não é versado nesses temas, trata-se de valores alienígenas que devem ser combatidos. Afinal, o conservadorismo é baseado em ideias que construíram o senso comum ao longo de séculos. Não vai ser do dia para noite de que as pessoas vão ser completamente convencidas que é mais vantajoso descriminalizar as drogas, que aborto não é assassinato, que um casal homossexual é tão legítimo quanto um casal composto por homem e mulher. É uma forma de pensar contraintuitiva para a maior parte da população.
Para piorar, a complexa retórica de esquerda vem junto com o combo arrogância intelectual + performance de beatitude — virtue signaling, como diriam os americanos. “Vamos fazer de conta que não sabemos ler e aplaudir os estúpidos?”, pergunta uma pessoa no Facebook. Um meme circula pela bolha progressista clamando que a divergência eleitoral no segundo turno não é política e sim moral — ignorando que existe uma miríade de motivos além do preconceito para o eleitor fazer sua escolha. É muita rigidez e apontamento de dedo para quem está perdendo a batalha.
“O discurso simplório trumpista ou bolsonarista assume a própria ambiguidade, uma zona cinzenta de interpretação em que o significado transita entre o sério e o cômico, entre o arroubo deliberado e a real ameaça”, escreve Bruno Cava Rodrigues. Enquanto isso, o campo oposto se pretende mais literal, sem flutuação de sentido, com adesão irrelativizável das palavras.
Sofia Favero, trans ativista sergipana, escreveu sobre um episódio envolvendo o comentarista Rubens Ewald Filho, que se referiu da seguinte forma à atriz transsexual Daniela Vega: “Essa moça, na verdade, é um rapaz”. A militância vibrou com a possível demissão do apresentador. Sofia escreve:
“Dificilmente um comentarista teria dito algo polido como ‘foi designada homem ao nascer, mas se identificou como do gênero feminino posteriormente’. Sabemos disso, mas apesar de sabermos, continuamos cobrando uma gramática política atualizada, coerente, alinhada a nossos discursos.
Não são todos que sabem se comunicar de acordo com o vocabulário da militância. E, por incrível que pareça, o comentarista referiu-se à atriz de uma maneira similar a que grande parcela dos espectadores faria. Ou, indo além, de maneira que até muitos dos que hoje percebem seu erro fizeram um dia.”
Esse tipo de comportamento descrito acima afasta a base da mesma forma que ocorreu nos Estados Unidos de Trump. Para a maior parte da população, é incompreensível porque seria considerado transfóbico o comentário de Rubens Ewald Filho. São pessoas que apesar de conhecerem as infames declarações do nosso atual presidente ainda assim não o consideram racista, homofóbico, misógino. Afinal, Bolsonaro tem até amigos negros e gays e colocou em votação uma lei que pune estupradores com castração química. Como ele poderia ser tais coisas das quais o acusam?
Na última semana da eleição, Mano Brown subiu no palanque para apoiar Fernando Haddad, mas uma vez no microfone fez uma crítica ferrenha: “O PT precisa reaprender a falar a língua do povo”. O candidato posteriormente declarou que concorda com as críticas do músico. Ainda assim, Haddad e Manuela D’Ávila saíram do comício direto para um after na casa de Caetano Veloso e Paula Lavigne na Avenida Vieira Souto. As várias celebridades presentes no local postaram em suas redes sociais a confraternização gabando-se de estarem “do lado certo da história”.
Isso é lido como elitismo e arrogância moral e intelectual. A maioria das pessoas ocupam funções exaustivas e entediantes em suas vidas profissionais. Isso vale para todas as camadas da sociedade: os pobres as ocupam porque precisam comer, a classe média precisa ir à Disney, e os ricos precisam de uma lancha em Angra dos Reis. Daí a raiva de alguém que adquire as mais exclusivas benesses do capitalismo oferecendo em troca apenas sua obra artística. O artista ama o que faz, o diretor de fusões e aquisições, não. O “socialista de iPhone” não irrita por causa de sua hipocrisia. Convenhamos, todo mundo convive bem com a hipocrisia. O artista famoso que é alvo do ódio dos conservadores irrita porque é alguém que trabalha com o que ama e mesmo assim ganha mais dinheiro do que o sujeito que passa o dia inteiro na frente de uma planilha do Excel. Por isso, empregos abstratos e até mesmo nocivos para a sociedade são vistos como trabalho de verdade, ao contrário do que fazem os escritores, músicos, intelectuais, artistas. A esquerda passou a ser vinculada a esse tipo de gente, os “vagabundos”.
Ora, em tempos de hiperconectividade, o candidato mais do que nunca precisa representar a voz do povo, e isso não será feito no metro quadrado mais caro do país. Não é questão de moralismo — acredito que todos têm o direito de festejar onde bem entenderem — e sim de estratégia. Parafraseando o ditado sobre a mulher de César, o político não precisa apenas estar do lado do povo, precisa parecer estar do lado do povo.
Bolsonaro, com sua coletiva de imprensa improvisada em cima de uma prancha de bodyboard com uma camisa de manga e sapatênis, entendeu que a imagem é a mensagem. Isso não é lido como sinal de tosqueira de um capitão da reserva que mal consegue articular duas orações adverbiais. É lido como simplicidade, autenticidade, e até mesmo como recusa a ceder aos interesses da elite, ao contrário dos ternos Ricardo Almeida de Lula em 2002, que simbolizavam a conciliação de classes. Hoje, a esquerda sofisticada torce o nariz para o pão com leite condensado no café da manhã da mesma forma que os tucanos desprezavam o churrasco com cachaça de Lula. E tanto um quanto outro ficaram a falar sozinhos.
Essa foi a eleição em que os burros ficaram mais inteligentes que os inteligentes. É preciso aprender a falar a língua da direita e compreender a lógica de seu universo interno para então ter condições de combatê-la. E então poderemos ter mais segurança para chegar para o bolsominion olavete e acusá-lo: seu idiota útil!
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora. Publicou A festa é minha e eu choro se eu quiser (Guarda-chuva, 2013) e A realidade devia ser proibida (Companhia das Letras, 2015).
Ilustração de Sumaya Fagury
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