Tempo de escutar, tempo de lembrar
Em Minnesota, nos Estados Unidos, foi construída uma sala que bloqueia 99% dos barulhos externos, lugar que ficou conhecido como o “mais silencioso do mundo”. Os pesquisadores que desenvolveram essa sala anecóica dizem que quase ninguém é capaz de permanecer no local por mais do que 45 minutos, pois o silêncio pode induzir alucinações e causar mal-estar. Num ponto estratégico da sala, onde há o maior grau de silêncio, foram reportados casos de desmaios e, portanto, recomenda-se que o visitante não fique em pé no local, e que não se demore por lá. Quando os sons de fora são calados, resta-nos apenas o barulho de nosso corpo e mente, e isso, aparentemente, é intolerável.
Para além das explicações neurológicas, como, por exemplo, de que ao eliminar os sons de um lugar, nossos ouvidos tão habituados ao barulho fazem o possível para encontrar novos sons, eventualmente produzindo alucinações sonoras, o que haveria de tão insuportável em nos encontrarmos a sós com nossas estrondosas pulsações e pulsões?
Nesta época de smartphones e aparelhos tecnológicos que roubam nossa atenção constantemente através de seus bips, vibrações, apitos e luzes, é comum escutarmos casos de pessoas que deixam de prestar atenção aos sinais do corpo, como o cansaço ou a vontade de ir ao banheiro, pois estavam envolvidas em conversas nas redes sociais. Quando tentamos nos desvencilhar dos aparelhos, um aviso sonoro nos lembra de que uma nova mensagem foi recebida ou que um amigo curtiu nosso último post. Usamos tais distrações externas, visuais e sonoras como via de escape da angústia que sentimos, e que tentamos calar e esquecer.
Habituados a essa toada escapista da vida cotidiana, pode ser espantoso deparar-se com indivíduos que parecem caminhar em silencioso descompasso com o agito contemporâneo, absortos na lembrança de um acontecimento traumático, incapazes de evadir desses sentimentos de angústia e desamparo.
Entretanto, relatos clínicos de trabalhadores de saúde mental nos centros de acolhimento a refugiados e migrantes da cidade de São Paulo nos apresentam numerosos casos de pessoas em desarmonia com relação ao alucinante ritmo de vida nas grandes cidades do país. Não há rede social digital que aplaque a necessidade de contato humano e que supra a falta que fazem os familiares e amigos perdidos na fuga, nos conflitos civis ou em desastres naturais.
O fato é que todo deslocamento geofísico abrupto acarreta alguma fratura interna; a estabilidade das representações internas que criamos a partir da realidade externa requer constantes direcionamentos provindos do “lado de fora”. Se a perturbação dessa estabilidade é corporalmente percebida após poucos minutos dentro da câmara silenciosa de Minnesota, qual o impacto do exílio nos corpos e mentes dos refugiados?
Talvez por medo de que o barulho familiar silencie para sempre, subjetivamente, a terra onde o exilado residia passa a habitar dentro dele e continua ali muito tempo depois da partida. Embora um permanente senso de si possa prevalecer, e muitos aspectos do sujeito sigam adiante enfrentando o que há de novo, pontuando e enriquecendo novas possibilidades, algo vital é, inevitavelmente, deixado para trás, perdido, encapsulado no complexo e multifacetado mundo no qual o sujeito cresceu.
A perda de uma casa ou mesmo de objetos menores, mas de grande significado afetivo, como uma colcha de retalhos feita pela avó, pode ser causa de tremendo desconforto e insegurança para quem vive o desterro. Já a perda de elementos direcionados para o próprio ego do sujeito, como referências familiares, função social e identidade de grupo, pode ser ainda mais grave, a ponto de causar uma incoerência narcísica. O sujeito, então, perde contato consigo mesmo, com o ideal do eu, ou seja, com aquela perfeição imaginária que almejamos alcançar e que nos serve de parâmetro moral ao longo da vida.
Sujeitos que fugiram de guerras civis ou conflitos insuportáveis em suas terras natais, são confrontados com a face ameaçadora do Outro, alteridade por vezes aniquiladora, que determina quais corpos são “matáveis” ou Homo Saccer, para usar a expressão de Agamben, e nesses sujeitos verifica-se uma perda do laço identificatório com o semelhante, um abalo narcísico que os lança à angústia e ao desamparo, impedindo-os de elaborar ou simbolizar os eventos traumáticos sofridos. Esses indivíduos encontram-se, então, fixados no trauma, impedidos de esquecer, de recalcar o ocorrido, ação necessária para distanciar-se do acontecimento.
A distração do zum-zum cotidiano que nos oferece descanso das lembranças e pensamentos mais aflitivos é emudecida, e o sujeito pode eventualmente encontrar-se incapaz de se relacionar com o entorno nessa estranha terra de chegada.
Embora muitos refugiados e migrantes encontrem variadas soluções pra a construção de novos laços sociais, como a maternidade/paternidade de um filho nascido na terra de chegada, o casamento com um cidadão local, emprego novo, estudos, dentre outras resoluções, algumas pessoas são tomadas por uma aflição e angústia avassaladoras, e frequentemente essa angústia é relacionada à culpa.
Em Os Submersos e os Salvos, Primo Levi escreve sobre o estereótipo consagrado pela literatura da “calmaria depois da tempestade”: depois da doença vem a saúde, após a prisão vem a liberdade, após a guerra o soldado encontra o lar, a família e a paz. Levi relata, baseado na experiência em campos de concentração nazistas, que na maioria das vezes, o momento de libertação não é tranquilo nem feliz: a sensação, para o autor, era de que soasse, sob um fundo trágico de destruição, o massacre e o sofrimento. Naquele momento em que os prisioneiros dos campos sentiam que voltavam a ser humanos, portanto responsáveis, retornavam os sofrimentos da humanidade: a dor da família dispersa ou perdida, a dor universal em torno de si, a própria extenuação, o sofrimento da vida que deviam recomeçar em meio aos destroços, e, frequentemente, sozinhos.
Além das dores e humilhações às quais os refugiados asilados no Brasil foram submetidos em suas terras natais, e que por conta da xenofobia e das condições sociais precárias continuam a ser expostos também aqui, surgem questões sobre a própria ética e a culpa pelo o destino de seus familiares perdidos, com a dúvida, nem sempre vivida conscientemente: é possível sobreviver enquanto os outros morreram?
Crises de angústia e desejo de morte são recorrentes em relatos de profissionais de saúde mental que acompanham esses indivíduos, demandando intervenções urgentes para tais casos. Busca-se ajudar o sujeito a se relançar em sua trajetória e história individual e coletiva.
É nesse ponto que a clínica psicanalítica pode agir mais efetivamente, apresentando o suporte necessário para que o indivíduo exilado consiga, num ambiente de acolhimento, reinventar-se a partir da junção de suas memórias com a realidade externa e estrangeira do momento presente.
Em tempos de comunicação virtual e tuítes com 140 caracteres, o campo psicanalítico parece muito favorável ao silêncio e a vagarosidade que a elaboração e a narração de histórias íntimas demandam. A consideração da realidade psíquica como algo tão ou mais importante do que a realidade externa para o setting analítico também confluem perfeitamente com a narração oral. Uma escuta livre de julgamentos e que não demande um discurso claro e objetivo é necessária para possibilitar o aflorar de uma rememoração com lapsos, solavancos, recalques e incompletudes inerentes a um conteúdo que ainda não teve condições de ser lembrado nem posto em palavras.
Em O Narrador, Walter Benjamin aponta que na era da informação, os acontecimentos só tem valor no momento em que são novos. Oras, para um sujeito em exílio, como poderiam sua fuga, e as perdas sofridas, ter valor efêmero? A clínica psicanalítica nos revela que qualquer evento traumático para o sujeito promove repetições até que o acontecimento seja suficientemente elaborado.
Para Benjamin, o relato do passado transforma-se no “grande símbolo de esperança do narrador: de que a vida não tenha sido vivida em vão e que seu sentido – tardio, mas cuja ressignificação liberta quem viveu os acontecimentos – sirva para outrem”.
Essa seria a função precípua do ato de narrar. De fato, em muitos relatos de sessões psicanalíticas com refugiados, ouve-se de indivíduos que até então estavam tomados pela pulsão de morte, que eles não podem morrer, pois precisam passar adiante a história de suas terras, de suas famílias. Precisam manter viva a memória de seu povo através da narração, do compartilhar das experiências vividas.
Os relatos das lembranças dos refugiados correspondem a um forte sentido para a vida de quem efabula, e no momento da enunciação tem a potencialidade de colocar o enunciador como sujeito central em sua história, o que contribui para um deslocamento da situação de vítima de um destino cruel e aniquilador, para o lugar de sujeito dono de desejos, sonhos e de sua própria história.
Dante escreveu na Divina Comédia que “não há dor maior do que a de nos recordarmos dos dias felizes quando estamos na miséria”, todavia o seu oposto também é verdadeiro, pois narrar a miséria sofrida quando nos encontramos a salvo traz alívio e contribui para o processo de elaboração e ressignificação dos males vividos.
Quando Primo Levi estava preso no campo de concentração, teve repetidas vezes um sonho, que era sonhado similarmente por vários de seus companheiros: sonhava que retornava para casa, e que com intensa felicidade e alívio podia finalmente contar aos parentes e amigos o horror já passado e ainda vivido e, de repente, percebe que ninguém o escuta, e que os ouvintes se levantam e vão embora, indiferentes. Não sejamos esses personagens que não escutam, que são indiferentes ao que é humano!
Para o ouvinte dessas narrações, cabe reconhecer a posição difícil, mas privilegiada de testemunha da história, a quem a escuta acolhedora é retribuída com o compartilhamento da cultura e da história de outras terras.
Nadia Berriel é psicanalista, artista cênica e mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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