Foram oito anos tentando entrar na Universidade de São Paulo. Essa jornada teve início em 2011, quando, por um tropeço do destino, voltei a estudar aos trinta e três anos.
Parei de estudar pela primeira vez ainda na adolescência, na quinta série, hoje sexto ano. Já estava fazendo pela terceira vez quando desisti. Ainda adolescente, me encaminhei para o Ensino de Jovens e Adultos, em mais uma tentativa. Concluí a quinta série e passei para a sexta, hoje sétimo ano, mas não fui adiante.
Mais uma vez, desistia dos estudos. Da primeira vez, não tinha ideia das minhas dificuldades e limitações e por isso me desinteressava e cabulava as aulas tranquilamente. Da segunda vez, ainda não conseguia ter o compromisso necessário para acompanhar os estudos.
Uma das consequências da minha falsa autonomia foi que engravidei aos quinze anos, e tive três filhos até os vinte e dois. Preciso confessar que, depois, até quis voltar a estudar, mas cuidar dos filhos pequenos dificultava o retorno. Ainda assim, o que aumentou de verdade a minha resistência foi o comentário da secretaria da escola em que eu fui buscar meu histórico escolar que dizia: “repetente” de que também estava no meu currículo que era “desistente”, o que dificultaria a minha entrada em uma outra unidade escolar. Com isso, me senti estigmatizada, perdendo perspectiva. Tinha tanta vontade de retomar quanto vergonha de tentar.
Eu sabia das dificuldades que havia encontrado no caminho, mas quem me daria credibilidade? Passei anos sem nenhuma expectativa de terminar o ensino de base. Assumia até uma postura de semianalfabeta funcional por não ter o diploma de conclusão do ensino fundamental.
Mas continuava cogitando, mesmo secretamente, a possibilidade de voltar. Conversava com os professores dos meus filhos e, às vezes, com a minha mãe, mas encontrava uma carreta de impedimentos, como a logística das escolas que se destinavam a oferecer o ensino noturno, muito longe de onde eu vivia.
Foi por uma situação inusitada que voltei para as carteiras escolares. Já adulta, com filhos adolescentes, todos estudando no fundamental, me deparei com um conselho de classe que apontava para mim os defeitos deles como alunos. Todos os professores tinham apenas reclamações a fazer e nenhum elogio. Eu me vi, então, em uma situação de humilhação, mas não aceitei que aquelas pessoas que se julgavam letradas determinassem um destino tão cruel para os meus filhos, sem investimento. Não acreditei naquele julgamento implacável, não aceitei aquela sentença, mesmo porque eles não tinham o direito de dizer que meus filhos “não tinham jeito”, desistindo.
Então decidi pegar com firmeza e provar para esse tipo sociedade intolerante e determinista que meus filhos teriam jeito sim e que seria eu a conduzir o trajeto que eles deveriam seguir, com estudo, com empatia, com equidade. Matriculei o mais velho no nono ano, enquanto também me matriculei no ensino fundamental. Fiz uma avaliação de reclassificação e fui direto para o oitavo ano, sem precisar repetir o sétimo novamente. Meu filho terminou e eu segui para finalizar o nono ano. Fomos juntos para o ensino médio, um ao lado do outro, e assim conseguimos vencer as barreiras estabelecidas em nosso caminho. Juntos, concluímos essas etapas enfrentando as adversidades.
Minha história com a Universidade de São Paulo começou no segundo ano do ensino médio. Eu estava na dentista quando comentei com uma estudante de odontologia da USP que queria fazer vestibular. Ela me contou sobre os cursinhos populares das faculdades da casa e me indicou o da Poli-USP. Fui logo atrás, mas, naquela altura, já não havia mais possibilidade de fazer inscrição. Então me indicaram outra unidade e fui bater na porta do cursinho Faculdade de Economia e Arquitetura. Enfim, consegui me matricular no edital do Enem, aos sábados, com aulas das 07h às 18h. Isso mesmo, o dia inteiro. Foi um desafio, mas o objetivo era maior: eu tinha certeza que todo o meu esforço valeria uma vaga no curso de História.
Claro que todo o atraso de conteúdos e de leituras não seriam supridos em um sábado por semana, mas aprendi muito nessa jornada. Me inscrevi na Fuvest e no Enem, acreditando que alguma dessas opções abririam caminhos. Mal pontuei na Fuvest, mas, no Enem, com a minha notinha, consegui uma vaga de bolsa de 100% nas cotas de PPI (pretos, pardos e indígenas) em uma faculdade particular.
Mas eu não havia desistido da USP. Em 2014, fiz aulas como ouvinte na Faculdade de História da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), escolhendo disciplinas que dialogavam com as disciplinas do meu curso. Mais uma vez foi puxado, mas continuava a aprender muito. Foram dois semestres, seis disciplinas e uma nova desenvoltura para compreender a prova da Fuvest 2015. Passei para a segunda fase. Mas então fui massacrada. Como compensar todos os anos de enfrentamento da vida em uma prova totalmente discursiva, como explicar matemática, física, química, eu sabia alguma coisa de história, geografia, até de biologia, mas e o restante?
Passei entre os penúltimos da lista de espera, mas segui com a vaga que eu havia adquirido na faculdade particular. Em 2016, decidi não me estressar com a prova do vestibular, pois estava em ano de finalização do curso de história e licenciatura, e consegui me formar. Junto com toda essa trajetória no ensino superior, fui me aproximando de minhas origens como indígena. A busca das minhas raízes ancestrais foi o meu tema de conclusão de curso.
Fuvest 2018. Foi o primeiro ano em que os 21% de cotas destinadas para PPI foram aprovadas na USP. Eu tentei, fiz a prova, passei para segunda fase em Letras. Achei que pelo número de vagas, eu conseguiria. Mas, não, ainda não foi dessa vez. Foi um ano em que eu participei das mesas de calouros dos movimentos estudantis que comemoravam o acesso por cotas, mas os indígenas não chegaram pela porta da frente.
No mesmo ano, minhas amigas Simone Santos e Márcia Mura me estimularam a entrar no mestrado pelo programa da antropologia, com vagas destinadas ao acesso indígena. Segui todos os requisitos do edital, memorial, projeto, documentação, mas me barraram, pois não conseguiram legitimar meu processo de auto afirmação indígena. Mas como e com qual direito podem dizer quem eu sou ou deixo de ser, se assinei uma documentação afirmando e dando fé que era verdade, que sou indígena, vítima de violências múltiplas como o apagamento histórico, do epistemicídio que me tirou até mesmo o direito de ter nascido e vivido dentro da cultura indígena?
A essa altura, eu estava forte na militância do movimento indígena. Participei da organização do Encontro Estadual de Mulheres Indígenas do Estado de São Paulo nesse mesmo ano e toda a minha trajetória estava descrita no memorial, cada passo da minha vida estudantil, acadêmica e militante. Mas o pior foi saber que o corpo discente de alunos indígenas também não legitimara minha autodeclaração e não reconhecia a minha luta, com a alegação de que não seria possível confirmá-las.
Em 2019, eu até me inscrevi nas cotas destinadas a pretos e pardos, já que minha certidão de nascimento diz que sou parda, mas descobri que não contemplariam pardos indígenas, pois a casa destina vagas próprias para indígenas. Quando chegaria a minha hora de acessar o meu lugar na USP? Lá, eu tive meus filhos, meu neto, tratamento médico, havia feito cursinho, fui militante, participei de duas greves, em 2014 e 2016, mas como aluna efetiva…
Minha amiga Márcia despencou lá do Rio Madeira, em Rondônia, até São Paulo, para compreender o que estava acontecendo, por que tantos entraves ao meu acesso à universidade. Então, foi pesquisar como estava o andamento do edital do DIVERSITAS/USP (Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades). Averiguou que não haveria racialização das pessoas que se autodeclaram indígenas, desde que houvesse total responsabilidade na legitimação com o povo específico.
Em 2020, o DIVERSITAS lançou um edital com 80% de vagas destinadas a PPI com edital especial para indígenas, levando em consideração os contextos de aldeia e de cidade, e todas as especificidades culturais e linguísticas. Eu me inscrevi e em seguida veio a pandemia de Covid-19. Em meio ao caos e ao confinamento, foi fundamental examinar o edital detalhadamente para compreender, estudar espanhol (a partir do trabalho voluntário de Laura Mogadoudo, que me dá aulas nessa língua para me fortalecer) e também estudar para escrever a resenha que substitui a prova obrigatória.
Em julho, veio o processo seletivo. Enfim, após oito anos, consegui entrar, com minha teimosia — meu melhor defeito —, muita insistência, persistência, resistência, existência e tudo mais que puder honrar meus antepassados.
Letycia Rendy Yobá, indígena da etnia Payayá, é formada em História e mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades na Universidade de São Paulo.
Imagem: trabalho Moara Brasil, Museu da Silva.
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