O elogio da insegurança e a legitimidade dos medos que nos acompanham são o tema de Preocupações (Edições Macondo, 2019), de Ana Guadalupe. O conjunto de poemas do livro [leia alguns aqui] sugere o testemunho de alguém que, cansado de tentar negar ou superar seus pavores, assume-os e dignifica-os, em fidelidade à natureza fantasmagórica do que nos assombra desde as rachaduras do mundo.
Ao legitimar a persistência desobediente de tudo aquilo que o mundo do sucesso pessoal exige que superemos (as preocupações aqui são a antítese da autoconfiança, da entrega completa ao instante), os poemas de Ana levantam uma bandeira anti-espalhafatosa em nome da honra e da singularidade do que existe de incômodo em sentimentos de desconfiança — cujo agravante poderia ser chamado de paranoia, mas a poeta prefere usar o nome mais sutil, preocupações, dando-lhes mais racionalidade e menos o delírio romantizado dos dionisíacos.
Mas, uma vez que diagnosticar sentimentos incômodos (como o medo da morte, a dor de amor) na poesia seria apenas mais uma vez estetizar o desamparo, Ana afirma a insegurança num tom nem alto nem baixo. A autoconfiança dessa voz está na coragem de se atirar a uma poesia que pode soar, à primeira vista, como um pensamento amedrontado, anotado por um jovem adulto num celular antes de se perder para sempre na memória do aparelho. O tom, portanto, não é nem do êxtase ou pânico, nem da poética do cotidiano, mas de resolução em se assumir no meio-tom entre materialidade e imaginação, sugerindo que é este o lugar por excelência do animal autoconsciente e delirante que somos. É ainda uma reivindicação de fazer poesia sem a grandiloquência impositiva dos bardos do dom.
Essa sutileza explica o fato de os poemas, a princípio, parecem não se destacar da linguagem mais banal. Os ratos e espíritos que circulam pelos poemas de Ana querem honrar seu caráter paranoico sem maquiá-los, trazendo-os para a convivência entre a materialidade do mundo e as ciladas da consciência, com sua capacidade de projetar perigos o tempo inteiro.
No domínio da linguagem escolhida, a poeta prega sustos nas frechas que deixa abertas para os leitores atentos a encontrarem, observando-os nas dobras dos poemas e dizendo: tudo isto é decisão. As frechas estão, por exemplo, nas rimas fáceis que, no mesmo instante em que são assumidas, incluem a poeta na categoria, dada por ela mesma, de “simplória”, como se tirasse sarro do termo pejorativo que usa para dar a si mesma, já que está assumidamente “rimando ruim” (“disfarça pretensão/ e se rima ruim é por opção”) e na contagem abertamente indecisa, mas a cada vez dita sem hesitação, do número de casas em que a poeta já morou, em poemas diferentes — em um deles confessa mentir, reforçando (ou solapando?) a própria suposição de uma fidelidade confessional ao leitor.
Enquanto os discursos bem-resolvidos no mundo nos impõem a urgência de perder o medo para ganhar felicidade e autoafirmação, Ana dá um nó nessa ordem, desobedecendo-a e obedecendo-a ao mesmo tempo ao seu próprio jeito, com a discrição de uma voz que joga fora a insistência pelo ideal da cura que jamais chega, e cola isso à própria forma com que escreve.
Ana joga com uma noção de verdade como desvelamento que me faz pensar no livro A coragem da verdade, de Michel Foucault: a verdade de Preocupações traz à superfície dos poemas o que é e como é, sem mais nem menos — o que pode ser entendido como um ideal poético por excelência. À pergunta sobre se toda essa preocupação é real ou imaginação, se tem fundamento ou é vitimização (o rato do último poema existe ou é a consciência que o cria, como o morcego no famoso poema de Augusto dos Anjos?), a resposta é: a experiência de preocupar-se é verdadeira, independente da ordem daquilo com que se preocupa.
“O verdadeiro é aquilo que, sendo não dissimulado, é oferecido ao olhar”, diz Foucault. É verdadeiro não só o que é revelado, mas o que não é adicionado do que lhe seria estranho — aí se encaixa a procura de Ana tanto em não fingir a inexistência das preocupações quanto em não fazer da dor um canto rebuscado, vingativo ou redentor. Note-se ainda que o que é “oferecido ao olhar” no caso desses poemas são espíritos, mau-hálito, lembranças vigilantes, medo de acidentes — coisas da ordem do que não dá para ver com o olhar, mas que se realiza na consciência, e que tem portanto realidade.
Outro sentido lembrado por Foucault para verdade (alethés) é aquilo que é direto, sem rodeios, sem dobras, sem enfeites. Falar a verdade é fazer com que as palavras sejam o espelho mais imediato possível do real. E mais, a coragem da verdade (parresía), diz ele, designa o risco de ser verdadeiro, colocar a própria relação com o interlocutor em risco. Ora, se o real em Ana é a própria incerteza sobre se o que nos toma (preocupações, medos) é real ou “ideia fixa que perturba o pensamento” (uma das definições dicionarizadas para o título do livro), assumir isto e revelá-lo numa poética igualmente espectral (no sentido derivado e já positivo de “frugal”), então Ana é uma poeta parresiasta (uma poeta que tem a coragem da verdade).
Mas quem é capaz de se familiarizar com seus medos é também capaz de rir com eles. É assim que a própria exposição desses temas, embora não dê lugar à romantização, é capaz de fazer piada de si. Aí os poemas mostram que, quando assumidos, os medos descansam os dentes por um instante e dão risada junto com aquele a quem assustam. O humor está presente, entre outros momentos, na corporeidade que surpreende (ou somatiza?) enquanto a poeta elabora seus medos (olheiras, miopia, peido, diarreia, mau-hálito), nas rimas em momentos constrangedores (“Infeliz em Santa Catarina”) e nas imagens repentinas (“meu amor novo cheira a plástico queimado”).
Aliás, um dos momentos raros em que as preocupações baixam a guarda é quando a poeta, em Allan Kardec, resolve observar aquilo que tanto nos assusta. Ao se colocar na pele do fantasma que nos assombra, ela percebe que ele também tem seus momentos de cansaço, e que se entedia ao nos observar pequenos, para revelar que enfim somos espelhos uns dos outros, nós e nossos fantasmas:
“que programação
repetida
preparamos
este ano
são tantas cenas de ronco e banho
e mesmo assim você fica obcecado
e no canto da sala acompanha os vivos
com a má postura ferimentos olheiras etc. afinal
você não tem passado bem
[…]
são tantas horas da mesma atividade
que você se entedia e cochila
deixando pra depois o trabalho
de fazer assombração”
Thiago Barbalho é escritor e artista visual. Publicou os livros ‘Um homem bom’ (Iluminuras, 2017), ‘Doritos’ (Vira-Lata, 2013) e ‘Thiago Barbalho vai para o fundo do poço’ (Edith, 2012), entre outros.
Imagem: fotografia de Ana Guadalupe, por Fernanda Vallois.
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