Nos tempos antes de pandemia, quando podíamos estar perto sem máscaras e trocar abraços, eu conheci Vanessa Vascouto antes que ela me conhecesse. Eu estava numa casa de cultura vendo uma conversa com escritoras. Vanessa se levantou, elogiou o debate e falou de seu livro. De longe, eu reconheci a capa, aquele livro estava na minha estante. Era Água fria e areia, seu primeiro romance, que me foi presenteado por uma amiga. Comecei a lê-lo uns dias depois e o enredo me tragou. Perdi a pouca vergonha que tinha e mandei mensagem em por Facebook elogiando o livro. Começamos a conversar, almoçamos juntas. Ali nasceu uma amizade, e a admiração só aumentou.
Vanessa comentou que estava com um livro pronto, procurava editora. Algum tempo depois recebi a capa de Terra dentro, vibrei com uma felicidade que parecia minha. E era. É sempre um presente poder conversar com alguém que escreve aquilo que me traz conforto. Os livros da Vanessa me trazem conforto, assim como a sua amizade, e as nossas conversas são sempre boas. Aqui compartilho uma delas.
Michelle Henriques — Quem é Vanessa Vascouto? Qual a sua relação com a escrita?
Vanessa Vascouto — Sou uma contadora de histórias, sempre fui. De pequena, inventava mistérios policiais e imitava o Gil Gomes, contava piada, mantinha diários. Acho que essa foi a minha primeira relação com a escrita. Depois, na escola, as aulas de redação e uma disciplina chamada “expressão corporal” pra me ensinar a contar história em corpo / movimento. Dali pro teatro foi um pulo. Na faculdade acabei cursando jornalismo, trabalhei anos como redatora, mas entre idas e vindas foram 15 anos atuando até que uma hora cansei, cansei de falar, o palco e os processos do teatro me cansaram, a minha voz, ela não dava conta de tudo (não dá, nada dá), me soava (ainda soa) limitada, me acelerava, não me dava o tempo do pensamento, me deixava vulnerável ao impulso e ao improviso (não gosto disso). Daí fiz o caminho inverso: voltei à expressão corporal com a dança-teatro e os estudos sobre Kazuo Ohno e Pina Bausch. E dali, como complemento, o retorno à escrita. Nesse processo, me reapaixonei pela página, esse pacto de quietude autor-leitor, a possibilidade de arquitetar uma pulsação. Com o passar do tempo fui ficando mais e mais implicante com interpretar, recitar, tenho medo de ler meus textos em voz alta (os textos de qualquer um, na verdade). Não gosto muito de falar. Na voz, na minha voz, algo se estraga ou se perde. Não sei explicar.
Mas o engraçado é que Terra dentro é um texto de base oral trabalhado totalmente em voz alta e, em paralelo, no papel, pra lapidar. Era pra ser uma dramaturgia, mas aos poucos fui abandonando a ideia. Tem a ver com liberdade, acho, liberdade de formato sem a necessidade de um coletivo para botar a imaginação em pé (teatro tem isso: precisa de muita gente). E por fim, eu, que fugia da voz, acabei criando três. Hoje me empolga ver outras pessoas lendo Rita, Mirna e Mosquito, acho bonito, mas eu, de verdade, ainda resisto.
Michelle Henriques — Você tem dois romances publicados Água fria e areia, e o mais recente, Terra dentro. Como foi o processo de escrita de cada um?
Vanessa Vascouto —Ambos partiram de fatos reais, mas tomaram rumos criativos muito diferentes. No Água fria, confesso que não sabia muito bem o que estava fazendo. Sabia que tinha que tirar aquela história de mim (um romance vivido à distância por uma amiga, mas que se conectava muito comigo também). Foi como um expurgo, sem muita preocupação técnica, linguagem e tal. É o enredo pelo enredo, com a minha poética, claro, mas saiu num fluxo, publiquei sem pensar muito (primeiro no Kindle; depois, por uma editora, a Lamparina). Era um começo e a chance de ver: “será que o que eu escrevo ou o que penso em escrever se comunica com alguém?”. Um ponto de partida.
Agora, Terra dentro foi muito estudado, até porque passou por muitos meios antes de desembocar em literatura. Nasceu como uma dramaturgia que contava, num monólogo, a história que ouvi de uma pessoa querida. Depois esse monólogo virou, ainda no teatro, uma cena para uma personagem tripartida (três atrizes, portanto); depois esse texto ganhou novos personagens para dialogarem com essa personagem; depois, se transformou num grande poema de muitas vozes intercaladas. Só dez anos depois da primeira experimentação como monólogo é que ele começou a tomar forma de romance.
Michelle Henriques —Terra dentro me parece um livro pronto para ser adaptado para o cinema ou para o teatro.
Vanessa Vascouto — Sim, talvez porque seja a origem dele. As cenas estão de pé, seja pra literatura ou pra um roteiro. E me anima, me anima muito a ideia de adaptação, embora eu mesma não pense em estar à frente disso. Teria que ser outra pessoa, outra cabeça pra somar. Imagino que vá me doer um pouco, a dor boa a de ver o que eu pensei ganhar asas pra longe de mim. De novo, tem a ver com liberdade. No geral, sou muito reservada e controladora com os meus processos criativos, mas depois de feito e colocado no mundo, me interessa mais é o descontrole: ver despertar nos outros coisas que eu não cogitei, perder de vista o meu significado. Em 2018, um texto meu passou por um breve processo de adaptação para o palco. Foi ruim, mas foi bom. Inevitável sentir assim, não? A menos que eu me envolva no processo, creio que seja mesmo inevitável olhar com estranhamento pro que fazem do que fizemos, tipo parir um filho, criar, soltar no mundo e se surpreender (pro bem e pro mal) com o que volta. Um exercício de desapego. Isso me interessa mais.
Michelle Henriques — Você está mais focada na literatura agora?
Vanessa Vascouto —Não pretendo ser monogâmica em relação aos formatos. Gosto de estar no “entre”: entre a literatura, a dramaturgia e o roteiro; entre a ficção e a realidade; entre a poesia e a prosa; entrelinhas. Clarice Lispector disse: “Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu”. Não é precisamente da palavra, mas sim desses “entres” que as imagens ganham força. Deixar o leitor cair nesse abismo, criar essa atmosfera instável e pantanosa que evidentemente acontece e o leitor não entende muito bem como.
Em Água fria, já tinha um pouco dessa intenção, mas dispunha de menos recursos pra alcançar um “entre” mais profundo. Já Terra dentro tem esse registro mais marcado, tanto pela oralidade quanto pelo neorrealismo. No processo de ficcionalização acabaram entrando muitas histórias, sonhos, delírios e ideais (sociais e políticos), além da vontade de usar a experiência com roteiros audiovisuais e dramaturgia.
Mas voltando à pergunta, é justo dizer que, por enquanto, a literatura é o meio que me dá mais vastidão e isso me orienta bastante. Com possibilidades híbridas, claro; entre imagens que elevem o texto a uma dimensão simbólica e uma boa dose de experimentação, o papel ainda é a ferramenta que mais me toca, com certeza.
Michelle Henriques — Ambos os seus livros possuem um tom cinematográfico. Isso foi proposital?
Vanessa Vascouto —Acho que sim, sou muito estimulada pelo cinema e pela música também. No Água fria, tinha esse clima Sofia Coppola, um tanto mais pop. Terra dentro vai mais na linha de Teshigahara, Lanthimos, uma tensão esgarçada e constante sob um som grave e repetitivo. Nos dois processos, foi o caso de pensar cena a cena, como se tivesse uma câmera comigo. “De qual ângulo eu vou contar isso?”, e a sequência da escrita vem narrando o que eu quero que o leitor veja. É uma forma cinematográfica de pensar o texto, sim, e que me dá muito prazer, ter esse palco interno para montar, experimentar, editar e visualizar a história. Já a música ajuda no ritmo do mantra que é a narrativa, na cadência e na escolha das palavras para fazer a partitura funcionar com coerência. Criar uma sinfonia audível pra mim a qualquer tempo e que, se tudo estiver certo, vai ser ouvida pelo leitor também. Mesmo sem vocalizar, mesmo no silêncio, palavra é música (sempre é).
Michelle Henriques — E quais os próximos passos na sua carreira? Você já sabe?
Vanessa Vascouto — Viver e ver o que acontece. Não tenho muitos planos. Se escrever, escrevi. Se não, não, mas já tenho novas histórias se formando aqui. Esse ano deve sair meu primeiro infantojuvenil também, um texto que foi finalista do Prêmio Barco a Vapor há três anos. No geral, sou um pouco lenta, meus processos também. Como disse lá no começo, não gosto do impulso nem do improviso. Preciso pensar.
Michelle Henriques é co-criadora do projeto Leia Mulheres.
Imagem: fotografia de Vanessa Vascouto.
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