Desde antes da Covid-19 chegar ao Brasil, a cena de um filme não saía da minha cabeça toda vez que eu lia o noticiário sobre a futura pandemia. Uma mulher branca, professora universitária de linguística, com idade por volta dos 40 anos, inicia uma aula sobre língua portuguesa para um anfiteatro quase vazio. Seu semblante é grave, melancólico, e há um sutil desconforto, ou quem sabe preocupação, pelo fato de boa parte dos seus alunos terem faltado. Mal começa a aula, ela é interrompida pelos poucos alunos presentes. Eles pedem que a professora confira o noticiário. Vemos cenas de caos social e distúrbios por todo o globo, quando a humanidade, pela primeira em sua história, é visitada por alienígenas.
A cena descrita é retirada de um dos meus filmes favoritos de ficção científica, A chegada, dirigido por Denis Villeneuve e baseado num conto do escritor estadunidense de ficção científica Ted Chiang. Tanto no filme, quanto no livro, a humanidade é visitada por dezenas de discos voadores e as naves se posicionam em pontos estratégicos ao longo do globo. Acompanhamos a história da professora de linguística, vivida pela atriz Amy Adams, e suas tentativas de decifrar a linguagem dos alienígenas. No dia 13 de março, as aulas presenciais na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde trabalho, foram suspensas em função das primeiras implementações de medidas de isolamento social. Os dias seguintes todos nós vivemos juntos: houve estupefação, negação, guerra de narrativas, politização de problemas sanitários, melancolia, adaptação a uma nova rotina. É um lugar comum dizer que nossa vida mudou e nada mais será como antes? Sim, sem dúvidas, porém há uma sabedoria na própria ideia de “lugar” em “comum”, mesmo dentro da linguagem e das narrativas.
O fato é que em um dos fins de semana de março mergulhei em uma sequência de filmes e me peguei percebendo duas coisas após assisti-los: a) Todos eram de ficção científica; b) Todos tematizavam uma invasão alienígena. Dois desses filmes ecoaram fortemente em mim. O primeiro é o já citado A chegada; o segundo, um clássico dos anos 80, um filme de horror em estado puro. Me refiro a O enigma do outro mundo, a obra-prima de Jon Carpenter. Nesse filme, um microrganismo alienígena é descoberto na Antártida e acaba por contaminar quase toda uma estação de pesquisa científica. O microrganismo parece ter racionalidade e é capaz de criar mutações horrendas e duplos perfeitos dos seres humanos e de animais. Confinados na estação científca pela ameaça alienígena, as personagens do filme lutam entre si e contra o monstro para tentar sobreviver. O lirismo e a melancolia criadas por Villeneuve estão ausentes aqui; na obra de Carpenter, sobram sofrimento, paranoia, corredores escuros e uma luta feroz pela sobrevivência. A paranoia é uma tônica do filme. A todo o instante, as personagens desconfiam de si próprias. Você pode me contaminar? Posso confiar que você não usará de violência contra mim? O final é sombrio, mas satisfatório.
Nossa reação, enquanto sociedade, à pandemia da Covid-19 se baseia na ansiedade do presente, mas também na projeção do futuro. Estou simplificando, mas tenho percebido o surgimento de duas narrativas sobre o futuro próximo, sobre como estaremos daqui a semanas e meses. Uma das projeções do futuro é esperançosa. Após mortos e feridos e sofrimentos, teremos saído mais fortes e vamos aprender a cooperar uns com os outros, inclusive globalmente. A pandemia, dizem os esperançosos, será o momento no qual vamos repensar para melhor nossos sistemas políticos e de saúde; cairão as “máscaras” dos políticos populistas (vamos derrotá-los!) e o próprio capitalismo precisará se reinventar e abraçar uma perspectiva de proteção social e maior humanismo. Outra visão, porém, é mais sombria: democracias serão abaladas. A desinformação reinará e o populismo sairá, se não mais forte, ao menos consolidado; as mortes e perdas econômicas vão gerar assassinatos, saques, depredações, xenofobia, racismo e consolidarão práticas necropolíticas. Os estados se fecharão em si mesmos, apavorados.
Essas duas narrativas sociais podem dialogar muito bem com a ficção científica. A chegada e O enigma de outro mundo são um subgênero da ficção científica muitas vezes chamado de “Primeiro contato”, no qual são narrados os efeitos do primeiro encontro da humanidade com uma raça alienígena. Em várias dessas narrativas, isso acontece em uma invasão. O enigma do outro mundo é uma invasão “involuntária”, pois se trata menos de um plano do alien, e mais de um caso de contaminação dos humanos que, por acidente, lidam com ela. A chegada, por outro lado, é um clássico “Primeiro contato”.
Quando, no campo da ficção científica, a invasão alienígena ocorre, seja pela primeira vez, ou não, temos duas matrizes narrativas em jogo. Na primeira, os alienígenas querem nos destruir, nos domesticar. Na segunda matriz, eles querem nos ajudar a evoluir, a chegar em um patamar novo de existência. Como tive oportunidade de desenvolver em outros lugares, as narrativas de Invasão podem possuir um forte componente de crítica ou elogio a processos colonialistas. Em O enigma do outro mundo, a força de dominação é a mais nociva possível: ela devora, corrói, perverte, subjuga, assassina. Para além da própria sobrevivência, o alien, no filme de Carpenter, quer tornar a humanidade em uma multidão de cópias submissas de sua própria condição existencial. Ela quer “minions”. A chegada, por outro lado, substitui a ideologia da “colonização” pela da “cooperação”: os aliens nos ajudam agora porque, em milhares de anos no futuro, será a nossa vez de ajudá-los. É uma visão otimista do que poderíamos chamar de um processo político de “globalização” interestelar.
Tanto em A chegada, quanto em O enigma do outro mundo, o alienígena é uma presença súbita e avassaladora. Somos pegos despreparados em um tsunami. Não importa se suas intenções são benévolas ou destrutivas. Nada mais será o mesmo, seja no mundo, ou na vida das personagens que com o alienígena travam contato. A rotina que conhecíamos? Nosso laços sociais? Nossa segurança econômica? Tudo passa a girar em uma espiral de entropia. Outro traço em comum nas duas obras, e que me fascina, é o fato de que os alienígenas são radicalmente não humanos. Eles são incompreensíveis, indomáveis e não antropomórficos. Minhas narrativas favoritas de alienígenas são essas nas quais o alien é a alteridade absoluta. Seus comportamentos e constituição biológica desafiam nossa lógica e nossa capacidade de compreensão.
O alienígena, nos dois filmes, é um radical exercício de entendimento, pelo avesso opaco do espelho, da nossa própria humanidade. Do que somos feitos afinal de contas? Qual o nosso valor? A chegada e O enigma do outro mundo jogam as personagens em situações-limite. Da fronteira com o humano, da pressão causada pela invasão e pela doença, serão expostas nossas qualidades, fragilidades, egoísmo, altruísmo e crueldades. Na dança da aversão e do medo, podemos encontrar as vias da redenção, mas também o apocalipse. Nesse sentido, a ficção científica, como bem apontam tantos escritores e pesquisadores, não é sobre o futuro. Como todas as narrativas, em qualquer mídia, a ficção científica, a seu modo, pode nos dar a chave para organizarmos experiências sociais e individuais. Somos todos narrativa. Por isso, precisamos contar boas histórias desde sempre e principalmente agora.
Cristhiano Aguiar é escritor, professor e crítico literário. Autor do livro de contos ‘Na outra margem, o Leviatã’ (Lote 42, 2018), é professor do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Imagem: por gallsource.com
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