O livro mais recente de Sigrid Nunez, O que você está enfrentando, começa com uma mulher que viaja para visitar uma amiga que está com câncer. Seu prognóstico é ruim, mas ela parece estar reagindo a um tratamento experimental, tudo caminha bem, dentro da narrativa que nos acostumamos a considerar para nossas vidas.
No entanto, Nunez não é uma escritora conhecida por nos manter no caminho confortável. Seu romance anterior, O amigo, trazia uma narradora as voltas com o suicídio de um amigo íntimo em um luto que seguia toda a desorganização da realidade e muito pouco do arco de superação que nós gostaríamos que fosse real.
Nós, seres humanos, possuímos uma relação curiosa com a morte: ela é inevitável, igualitária, inescapável. Todas as pessoas devem morrer em algum momento e uma série de ditados populares em diversas línguas nos lembram de que, ao menos para esse mal, “todos” realmente significa “todos”. Ricos e pobres, jovens e velhos, doentes e saudáveis, alguns podem estar mais perto da morte do que outros, mas ela virá, sem exceção, para todos.
Ao mesmo tempo, a maior parte de nós evita contemplar essa possibilidade como cotidiana, ou até mesmo presente. Quantas vezes, na presença de alguém muito doente ou muito idoso que fala de seu pouco tempo restante, nós sentimos o impulso de dizer “não diga isso, você não vai morrer”. Mas a pessoa provavelmente vai. Todos vamos. A morte é ainda, no século 21, o tabu final, o último fragmento de realidade mágica que possuímos: mesmo a mais científica das pessoas ainda parece guardar uma certa crença que falar na morte pode atrai-la. Todos morremos, mas quase nenhum de nós fala sobre isso.
Esse paradoxo é, de certa maneira, o tema do romance. Uma vez que a amiga da narradora não melhora, diante de seu diagnóstico fatal, decide antecipar as coisas e tomar a morte nas suas próprias mãos. O único porém é que ela não quer fazer isso sozinha e convida a protagonista para acompanhá-la no processo.
O livre arbítrio diante da morte é tema antigo. Talvez tão antigo quanto a possiblidade do homem de tirar a própria vida. Camus, no texto mais famoso sobre a assunto, formula que o único problema filosófico verdadeiramente relevante é o suicídio. Uma premissa estranha para aquele que era o mais otimista, mais engajado e mais hedonista dos existencialistas. Mas o que o filósofo queria dizer não é que deveríamos estar todos acordando pela manhã e contemplando um jogo de roleta russa com o café, mas sim que é preciso, constantemente, perguntar por que estar vivo. Se a vida não tem sentido intrínseco por que continuamos com ela se torna uma resposta radicalmente livre e pessoal.
A proposta parece simples e quase senso comum: a vida não faz sentido, você precisa criar o seu. Mas há algo profundamente subversivo aqui: o que Camus está dizendo não é apenas que a Vida, enquanto proposição filosófica, não faz sentido, mas que a existência — o ato de inspirar, expirar, bombear sangue e existir biologicamente — não tem sentido intrínseco. A radicalidade dessa proposta é para onde olha o romance de Nunez.
Isso porque, mesmo sabendo que a amiga está morrendo, que suas chances são baixas e que a morte chega para todos, a narradora sente um incômodo profundo com o pedido que lhe é feito. Ela não diz nada disso, mas seu impulso é argumentar que pode ser que as coisas sigam para outro lado, pode ser que a amiga não morra, pode ser que uma descoberta científica seja feita. Nossa sociedade é condicionada a acreditar no oposto de Camus: que a existência, o simples pulsar do sangue, tem sentido e devemos preservá-la, mesmo às custas da dignidade e da qualidade de vida. A amiga se recusa: ir embora em seus próprios termos é só o que lhe resta e ela vai fazê-lo.
Enquanto usa esse cenário para explorar os dilemas de uma existência que vale a pena no pessoal, Nunez também introduz uma subtrama que puxa as mesmas questões para o coletivo: um ex-namorado da protagonista abandonou sua carreira de crítico de arte para dar palestras em que fala sobre o eminente apocalipse climático e provável extinção da raça humana. Como é possível ter filhos, ele pergunta, em um mundo como esse?
A pergunta, em muitos sentidos, é a mesma: se sabemos que vamos morrer, por que viver? E quanto custa para nós olhar essa pergunta de frente?
O que você está enfrentando é um livro formalmente mais tradicional do que O amigo, mas é radical em sua temática. Ainda usando um estilo que combina a prosa ficcional ao ensaio, Nunez apresenta ao leitor uma situação que o faz confrontar questões filosóficas profundas e muito difíceis, o tipo de pergunta que a maior parte de nós passa a vida afastando.
Com seus volumes curtos, mas uma coragem intelectual ímpar, Nunez vem se mostrando uma grande expoente do romance filosófico, não porque use a ficção para desenvolver conceitos ou explicar linhas históricas de pensamento, mas sim porque, na prosa, ela explora aquelas que sempre foram as questões fundamentais da disciplina, nesse caso talvez a mais antiga e primordial delas: qual é a vida que vale a pena ser vivida?
Isadora Sinay é escritora, tradutora, professora de literatura. Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo.
Imagem: fotografia de Sigrid Nunez (Civitella Ranieri)
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