Jarid Arraes e eu nascemos na mesma cidade, moramos no mesmo bairro, conhecemos o mesmo círculo de pessoas, e, provavelmente, frequentamos os mesmos lugares, mas nunca nos encontramos pessoalmente. Imagino os caminhos cruzados que, desencontrados em Juazeiro do Norte, iam se reunir muitos anos depois nas estradas virtuais.
Li o seu livro de poemas, Um buraco com meu nome (Jandaíra, republicado pela Alfaguara) em 2019 e, em uma troca de mensagens, alguns meses depois, ela editou o meu primeiro livro, também de poemas, Todos os meus humores (Penalux). Quando me preparei para ir à São Paulo no início de 2020, primeiro, as chuvas que interditaram a cidade e, depois, a pandemia, fizeram com que nosso contato permanecesse virtual. Às vezes, passamos semanas sem nos falarmos, mas quando nossas vozes se encontram, nos reconhecemos na familiaridade de nossos sotaques e na concordância de quem sabe que, mesmo de longe, ali mora uma amiga.
Como ela me escreveu dia desses, “a gente vai se encontrar, se você vier ou se eu for, de algum modo”. Bonito é saber que nossa escrita já se encontrou e é isso que importa.
Dia Nobre: Jarid, você é uma escritora jovem e antenada com as mudanças tecnológicas, mas durante a pandemia fomos forçados a uma interação mais intensa e, muitas vezes, desgastante, com o mundo virtual. Para além disso, os eventos literários foram todos transferidos para as salas virtuais, os cursos e mentorias passaram a ser integralmente online e sinto que ainda que essa dinâmica tenha encurtado distâncias e promovido uma conexão entre pessoas que em outro momento não conseguiriam trabalhar juntas, houve também um impacto considerável sobre a saúde mental de todos. Como você avalia o impacto desse período na sua produção?
Jarid Arraes: Eu sempre tive uma forte presença online e foi devido ao meu uso das redes sociais que consegui esgotar meu primeiro livro, totalmente independente, e vender algumas dezenas de milhares de cordéis. Se eu não soubesse usar as redes e não tivesse uma relação próxima com quem se interessa por meu trabalho, eu não teria passado por cada etapa até chegar onde estou. Só que onde estou também exige de mim uma presença online constante, o que muitas vezes é exaustivo. Há muitas coisas boas que vieram com os eventos online, como a possibilidade de compartilhar uma mesma conversa com autores e autoras de diversos estados brasileiros, porém, talvez pela novidade da coisa, há muitos problemas na montagem desses eventos. Muitos não entendem que aquele testezinho de uma hora antes do dia do evento também é um tempo de trabalho e não comunicam a necessidade desse teste no momento do convite, por exemplo. Ou oficinas de vários dias e muitas horas que oferecem uma remuneração muito baixa, pois não consideram que o trabalho de ministrar uma oficina online seja comparável com a oficina presencial. Em todo caso, há muito esforço e comprometimento envolvido, mesmo que pela internet, mesmo que eu esteja sentada de frente para o computador na minha casa. Então eu sinto que muitas demandas aumentaram, alguns aspectos pioraram, e com as mudanças das regras das redes sociais, está cada vez mais difícil chegar até quem se interessaria por nossos livros e publicações. Recentemente escrevi um texto para minha coluna na revista Elle e lá falo sobre essa questão, sobre como é extremamente cansativo lutar contra os algoritmos que são feitos para te coagir a determinados comportamentos. Como me sinto muito desencaixada de certas tendências online, vejo que meu conteúdo tem um alcance menor do que o que deveria ter, levando em consideração a quantidade de pessoas que me seguem. Acho que há um sentimento contraditório que fica entre tentar trabalhar num método meio “influenciadora” e, ao mesmo tempo, rejeitar essa “obrigação”, porque esse não é o meu trabalho e eu quero divulgar literatura, escrita, leitura. Tem sido bastante estressante, mesmo que eu tenha decidido manter o meu estilo de estar nas redes, independente do que as redes sociais tentem impor, mas felizmente estou conseguindo escrever e tenho um original na sua reta final. Na verdade, escrever esse romance me dá a oportunidade de desligar minha cabeça das redes, parar o tempo como se nenhuma dessas coisas existisse, e então consigo me concentrar e focar. É a escrita que me apresenta a possibilidade do equilíbrio.
Dia Nobre: Em alguns momentos de sua trajetória, você falou sobre a influência da Lady Gaga na sua escrita, e mais recentemente, em sua coluna na revista Elle, você escreveu sobre a importância do grupo coreano BTS nesse momento da sua vida. No mundo intelectual da literatura contemporânea, é comum que sejamos perguntadas sobre nossas influências literárias e todos esperam que desenrolemos uma lista com nomes clássicos, em sua maioria, homens. Ao trazer referências do mundo pop, você desafia esse cânone e propõe um novo modo de produzir literatura que mescla sua herança cultural com os ritmos e coreografias da música. Essa mescla é algo que orbita em sua literatura e que cativa seus leitores e leitoras. Como tem sido pensar em uma literatura cinestésica, que captura aspectos de culturas tão distintas? Se todo texto é um pouco autobiográfico, como dizem, o que você revela de si mesmo na sua escrita?
Jarid Arraes: O que eu revelo de mim mesma na minha escrita está muito mais relacionado a minha visão de mundo, o que considero importante, urgente, incômodo, a forma como vejo a sociedade e a força que a arte ganha com a coletividade, mas também referências particulares que são muito políticas, muito intencionais e bem pensadas. Ter artistas coreanos como influência literária realmente me dá uma prática cinestésica de escrita, assim como a forma como a Lady Gaga usa a moda também enche minha mente de imagens ricas, exageradas, intensas. O BTS, assim como a Lady Gaga, possui uma ética artística que admiro muito. Tanto ela quanto eles sabem se posicionar em relação a questões sociais urgentes e não sentem medo de experimentar coisas diferentes em seus trabalhos artísticos. Sempre há algo novo.
Dia Nobre: Eu sinto esse olhar mais resistente quando cito que minhas referências são quase que exclusivamente femininas. Não é que eu não tenha lido os homens escritores, na realidade, li bastante, durante toda minha vida, justamente por isso, hoje leio mais as obras de mulheres. Também gosto da ideia da experimentação. Faço muito isso na minha própria obra, mesclando gêneros e referências literários, brincando com o hibridismo, passo do poema para a prosa com relativa facilidade, então isso me inspira muito a jogar com a norma.
Jarid Arraes: E eu até agora tenho feito o que me dá vontade, provocada pelo que me incomoda e me inquieta. Então se comecei com cordel, depois fui para poesia, depois para contos e agora para romance, é porque considero possível a experimentação, a troca com outras linguagens artísticas, e deixo o caminho aberto para a complexidade da cultura pop. Acho que essa mistura diz muito sobre mim, mais do que ser fã de artista x ou y, é uma questão de olhar o mundo e enxergar a profundidade das coisas que muita gente no mundo literário tenta diminuir por preconceito, arrogância, pedantismo e idiotice.
Dia Nobre: Concordo muito com esse olhar mais complexo que tenta abarcar outras realidades. Vemos isso em Redemoinho em dia quente, seu último livro publicado, que recebeu o APCA de Literatura em 2019, foi premiado na categoria Contos pelo Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2020 e esteve entre os 5 finalistas na categoria de contos no Prêmio Jabuti 2020. O livro traz o sertão do Ceará como paisagem. Nele, você desdobra histórias de mulheres que têm na memória um mote importante.
Como também sou fruto do pé de Juazeiro e passei a infância percorrendo o passeio das almas nos Franciscanos, alguns contos me fizeram recordar da minha infância na rua São Benedito, esperando os romeiros passarem e jogarem bombons em troca de água. Despertaram a lembrança de quando entrei pela primeira vez nos Salesianos, que é grandiosa por fora, mas por dentro nem é tão bonita assim. O primeiro cigarro que fumei escondida dos meus pais porque eu achava bonito quando via as atrizes da novela das oito fumarem. E por falar nisso, realmente Jarid, ninguém assistia a novela das sete, ficávamos na calçada, minha vó, contando história de trancoso ou falando mal da vida alheia. Minha avó, inclusive, podia ter sido a beata que tomou um alucinógeno e viu Padre Cícero e aquele texto final de despedida (um canto romeiro) poderia ter sido escrito por mim. É interessante notar como você domina o léxico e os aspectos psicológicos que permeiam tanto os adventícios quanto os visitantes da cidade. Gostaria que você contasse um pouco do processo de retornar à Juazeiro e construir literariamente aquele espaço depois de ter migrado para São Paulo. Você se sente estrangeira ao voltar ou foi confortável e familiar? Como foi desdobrar memórias (suas e de outras pessoas) na construção dessa paisagem tão diversa e por isso mesmo, tão rica?
Jarid Arraes: Eu me sinto estrangeira em todo lugar, não acho que exista um lugar do qual eu me sinta totalmente pertencente. E eu acho isso ótimo. Porque eu sempre me esforço para olhar as coisas um pouco desenquadradas da minha vista, sabe? O processo de escrita do Redemoinho em dia quente foi incrível porque foi uma troca de imenso afeto com o Cariri. Reunir todas as imagens que você citou, imagens que não são minhas, imagens que são, e escrever algo que tente oferecer uma experiência de cores, cheiros, texturas e sons, de modo que o sertão caririense do Ceará se torne familiar até para quem nunca ouviu falar dele, essa foi a experiência mais importante e mais bonita. Porque existe muito afeto envolvido. A literatura afetada por nosso imaginário cheio de significados e questionamentos e revoltados, essa literatura é muito genuína e eu acredito que os leitores percebem isso. Pelo menos tem sido essa a minha experiência ouvindo quem lê o Redemoinho.
Dia Nobre: Isso é bem interessante, porque também tenho este sentimento de estrangeiridade, de sentir que não caibo em nenhum espaço e posso me adaptar a todos, acho que é uma base da minha inquietação com o mundo, esse sentimento de não pertença que trago no meu último livro, No útero não existe gravidade e que já estava um pouco presente no Todos os meus humores, meu primeiro livro que foi editado por você. Pensando um pouco nisso, nesse trabalho que você faz com outras escritoras, sei que em 2015, em São Paulo, no antigo espaço do Coletivo feminista Casa de Lua, você criou o Clube de Escrita para Mulheres que tinha como objetivo agregar mulheres que escreviam ou queriam escrever qualquer gênero literário, mas que sentiam insegurança no processo de escrita. Em 2019 com a criação do Selo Ferina você criou espaço para autoras estreantes e conseguiu reunir em uma Antologia recente, Poetas negras brasileiras, mais de 70 mulheres negras de diversas regiões do Brasil. Vemos que a intersecção entre raça e gênero está presente nos seus trabalhos e que estes possuem um caráter coletivo muito forte. Como é, para você, trabalhar com os meandros dessa intersecção em um mercado editorial que ainda é extremamente masculino e cisheterocentrado? Quais as dificuldades que uma mulher negra que escreve pode encontrar e para o que ela deve se preparar quando decide ser escritora?
Jarid Arraes: Uma das maiores dificuldades está no silêncio, na ausência e na falta. O silêncio a respeito das publicações das autoras, a ausência de convites e oportunidades para elas e a falta que não é corrigida com a presença, a pluralidade e, por isso, a literatura criativa, cheia de possibilidades. Muita coisa melhorou desde que comecei a publicar, mas ainda há, por exemplo, poucas mulheres negras, indígenas, nordestinas e nortistas sendo publicadas pelas grandes editoras. Ainda é possível apontar para as premiações e fazer listas que, no fim, podem ser bem desconfortáveis. Quem de fato está sendo premiado? Quem de fato está sendo publicado e divulgado? Eu lembro que lá no começo, eu costumava fazer uma contagem de homens e mulheres publicados mensalmente por determinadas editoras. Por isso, digo que nem toda preparação do mundo te deixa pronta para o que é ser uma escritora no Brasil. Eu costumava apostar muito na força das redes sociais para construir uma carreira, mas apesar de ainda acreditar nisso e enxergar na autonomia a melhor forma de ser escritora no mundo (sendo publicada por editora ou não), hoje também precisamos refletir sobre os desafios das redes sociais, pensar a respeito da quantidade exorbitante de trabalho necessário para chegar até os leitores e fazer com que publicações independentes sejam interessantes mesmo quando colocadas lado a lado com grandes nomes de outros países.
Dia Nobre: Eu sinto isso também em relação ao mercado voltado para as autoras LBTQUIAP+, parece que sempre há um estigma de “nicho”, como se não pudéssemos estar em outros lugares ou falar sobre outros temas. Enquanto mulher lésbica me sinto um pouco cobrada nesse sentido e tenho dificuldade de fazer minha literatura circular no meio LBT porque não trato necessariamente de temas relacionados à sexualidade. Ao mesmo tempo, há também uma dificuldade de circular no meio tradicional porque sou uma autora estreante e ainda pouco conhecida. Tento focar meu trabalho na conquista de leitores que ainda não estão nichados, sabe?
Jarid Arraes: Os leitores fazem escolhas o tempo todo. E o que os fará escolher apoiar o trabalho de uma autora iniciante que gasta toda sua energia on-line para que sua escrita seja percebida? Meu trabalho também é voltado para a experiência coletiva e política da literatura porque não existe outra forma da literatura existir no mundo. Ela não é uma arte solitária e todos estão cheios de suas visões de mundo, repertórios e referências — e tudo isso é político. Eu faço uma escolha consciente de abordar esses temas e tentar construir projetos que fortaleçam outras mulheres.
Dia Nobre: Não é segredo que te admiro com paixão e que você contribuiu imensamente na minha estreia (e permanência) na literatura. Nossas trocas foram fundamentais para construir em mim um sentimento de segurança como escritora. O contato contigo me fez perceber também como é importante contar com boas leitoras que conseguem apontar problemas, mas também saídas naqueles textos que ainda são rascunhos. O diálogo contigo durante a construção do meu último livro, No útero não existe gravidade, foi essencial para a percepção de muitas questões ligadas a esses temas que discutimos hoje. Te agradeço a oportunidade de mais uma conversa. E boa sorte com o seu novo livro, Corpo desfeito, romance publicado pelo selo Alfaguara, da editora Companhia das Letras.
Dia Nobre é escritora, doutora em História e professora universitária em Petrolina, Pernambuco.
Imagem: colagem de Sumaya Fagury com fotografias das escritoras Jarid Arraes e Dia Nobre, respectivamente.
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