Como traçar o perfil de um artista que simplesmente parece ter passado a maior parte da vida tentando apagar todos os frágeis contornos que, em vão, muitos tentaram traçar? A resposta está na sua arte atemporal calcada na fotografia e na colagem.
Alguns anos atrás, tive a chance de retratar o fotógrafo norte-americano Peter Beard cujo corpo foi encontrado esse dias, num bosque, perto de sua casa em Long Island.
O artista de 82 anos teria saído caminhando para não mais voltar. Partiu como viveu, explorando os arredores de sua casa. Fez isso com o mundo, e principalmente, com a África, transformou-os em redondezas de sua casa.
A experiência é esta: você está na beira da falésia mais alta e bela da Europa (300 metros acima do Mediterrâneo ), na sua mão suada uma câmera, na sua frente um dos maiores fotógrafos do mundo, que, sem avisar, decide simular suicídio. Você olha em volta. O contorno do litoral do sul da França, o vinhedo no promontório e na distância as montanhas, que parecem ter saído de telas de Cézanne, fazem você pensar no contorno definido das coisas. Exceto por aquele personagem na sua frente, que desafia qualquer tentativa de definição precisa.
Peter escapou, como ele gosta de dizer, para o leste da África em 1955, em companhia do bisneto de Charles Darwin, quando os Mau-Maus incendiavam árvores e partiam para a destruição do que então integrava o maior santuário de vida selvagem na Terra. Difícil definir o homem que vim encontrar. Personagem da noite e do mítico Studio 54 de Nova York, onde em companhia de Truman Capote ou Andy Warhol desfilava ao lado da modelo Cheryl Tiegs, sua companheira entre 1978 e 1986, ou Dorothea McGowan, sua segunda mulher, que foi fotografada para dezessete capas da revista Vogue. Porém, sempre habitando dois mundos, podia também ser encontrado nas manhãs brilhantes das savanas, sob o sol equatorial das montanhas Ingong ou atravessando o rio Athi para fotografar elefantes semi-mortos de inanição sendo devorados por crocodilos. Fui fazer seu retrato na bela Cassis, um pequeno porto de pescadores abrigados pelos penhascos daquele trecho do litoral da Provença à leste da cidade de Marselha. No primeiro encontro, disparei: “My name is Marcio Scavone and I shoot photographers, but this time I came looking for a lion to shoot!”. Esperei sua reação me divertindo com a ambigüidade da língua inglesa no que se refere aos termos “atirar“ e “fotografar”, ambos definidos pelo verbo “to shoot”. Olhei no fundo dos olhos de Peter, senti que no seu sorriso começava uma amizade. Encontrei nele um artista contemporâneo incrivelmente conectado com o mundo. Um inquieto caçador de imagens e notícias para povoar suas incríveis colagens, um americano universal, digno das páginas de um Hemingway.
Peter, um diarista compulsivo desde a adolescência, tem neste exercício os alicerces de sua arte. Quando um fotógrafo faz “scrapbooks” ou diários de imagens, demonstra um desejo de acorrentar o tempo, leva pelas mãos as furtivas lembranças com o cuidado dos que não querem ser mal interpretados amanhã. Apaixonado defensor dos elefantes, talvez inconscientemente estivesse tentando roubar deles o seu maior atributo: a memória. Memória para não esquecer o seu primeiro encontro com a escritora dinamarquesa Karen Blixen, que escreveu as legendas de seu livro The end of the game, ou com Sir Francis Bacon, um dos maiores pintores do século 20 que, fascinado com suas imagens de carcaças desidratadas de elefantes, acolheu o então jovem americano para dentro de seu exclusivo círculo de amizades e, principalmente, de retratáveis.
Certa vez, quando uma de suas fotografias foi parar na capa da respeitadíssima Life ele comentou, segurando a revista: “A foto não é boa, mas o elefante é magnífico”. Coerente, explicava mais uma vez o seu credo “sou um parasita do assunto que fotografo”. Sabem disso os grandes fotógrafos. No começo, é sobre fotografia. Depois, quando fazemos imagens que realmente ficam, é sobre as coisas que amamos. Peter é um artista que insiste em afirmar que os seus diários são inúteis “visto que somos todos formigas em um formigueiro, a vagar sem rumo entre o nascimento e a morte”. Mas são exatamente esses diários que se encarregam de dilacerar seu olhar e disparam mecanismos no canto mais obscuro de seu cérebro para alimentar sua criatividade.
Deixei Cassis com alguns pedregulhos da praia — desses que Peter usava nas colagens — no meu bolso. Eles faziam um barulhinho de contas quando eu andava. Eu queria uma prova concreta, a mais, além das fotografias, sobre nosso encontro, que o nosso encontro não teria sido um sonho extremamente visual. E assim fui me despedindo das falésias banhadas pelo sol poente. O enigma ganhava contornos, finalmente. A sombra e a luz, o glamour e a simplicidade, a falésia silenciosa e o som e a fúria dos olhos de Peter Beard.
Marcio Scavone é fotógrafo, escritor membro da Academia Paulista de Letras e autor das fotografias de Peter Beard que acompanham este ensaio.
Observação: uma versão anterior desse texto faz parte do livro ‘Copo de luz: ensaios sobre fotografia como arte e memória’ (Alice Publishing, 2018).
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