Na abertura de uma entrevista publicada aqui mesmo na Deriva, em 2021, Mateus Baldi dizia não saber exatamente como ou quando nos conhecemos. Agora no papel de entrevistador, me pego na mesma fenda da memória. A primeira lembrança que tenho de Mateus é a de uma noite na Livraria da Travessa do Leblon, com ele mediando um papo meu com Alberto Mussa.
Me recordo também de que saímos de lá e nos sentamos, os três, num boteco do Leblon. Mateus na água, eu e Mussa na cerveja. Ou melhor, nas cervejas.
Daquelas poucas horas de uma noite abafada no Rio, entre bebuns e a solidão das cadeiras vazias, me chegam alguns fragmentos. A avó leitora, Rubem Fonseca, o pai italiano. Caetano Veloso, Luiz Alfredo Garcia-Roza, o disco Transa. O nosso Fluminense — que resolveu ser campeão justamente quando Mateus lança seu primeiro livro.
Essas afinidades eletivas, com o passar dos anos, teceriam uma amizade. Que vai da literatura à dor de cotovelo, da zoação, da festa mais plena, a intermináveis trocas de mensagem sobre as agruras da rotina.
É esse o Mateus que desponta em Formigas no paraíso. Não me refiro, aqui, à desastrada (e cada vez mais comum) confusão entre autor e narrador. Mas à maturidade de um escritor tão jovem em sua estreia literária.
Como bem destaca Noemi Jaffe na orelha da publicação, “não há mesmo por que associar necessariamente maturidade e experiência à idade ou à quantidade de livros”. Para criar uma seleta de contos como essa, é preciso ter agarrado a vida com as mãos.
Formigas no paraíso atira o leitor o coração de um labirinto que a gente costuma chamar de cidade. É sobre isso que converso com Mateus na entrevista que se segue.
Marcelo Moutinho — Uma das marcas de Formigas no paraíso é sua organicidade. Os onze contos do livro parecem costurados por um fio invisível que amalgama temática e ambiência, sustentando a noção de “todo” da obra. Como se deu a organização dos textos? Foram pensados para um volume ou você os selecionou e reuniu posteriormente?
Mateus Baldi — Engraçado você falar isso, porque eu mesmo nunca tinha parado pra pensar — digo, os contos foram escritos ao longo dos anos, desde 2017, e quando Lucia Riff, minha agente, perguntou se existia um livro de contos e eu disse que sim, percebi que algumas histórias se coadunavam em termos de estrutura, temática, sentimento. E só. Foi na hora da gráfica, na última prova, que percebi que elas se ligavam por um fio invisível — como você disse —, que já nem acho tão invisível assim, trata-se de um fio muito visível, nítido, e que se você me pedir para falar qual é — o que é —, eu não saberia explicar, vai muito além das mulheres, do queer, do anti-homem, da cidade, mas tá lá, existe — mais ou menos como a vida.
Marcelo Moutinho — Com 28 anos de idade, você faz parte de uma geração cuja relação com o mundo digital é muito mais cotidiana do que a de gerações anteriores, para as quais a publicação em papel representava uma clivagem, uma espécie de distinção. Você encara a estreia em livro — um livro físico — como uma mudança na sua trajetória como escritor? Por quê?
Mateus Baldi — Sim e não. Sim porque é claro que ainda representa essa clivagem, essa espécie de distinção. Publicar um livro tem sua importância como tem tido nos últimos séculos. Mas ao mesmo tempo não acho que tenha mudado algo internamente, sigo escrevendo e pensando a produção como algo independente do papel, da publicação em si — o fato de existir não anula o que tem havido dentro de mim em todo esse tempo, uma necessidade irrefreável de escrever.
Marcelo Moutinho — Você começou sua trajetória criando um site de resenhas. Depois passou a colaborar com os grandes jornais e a organizar, na função de curador, edições literárias da revista Época. Como é estar, agora, no papel de autor, ou seja, com seu trabalho sujeito à crítica?
Mateus Baldi — Você é meu amigo há alguns anos e sabe que a piada recorrente no nosso círculo é: Quando vem o livro do Mateus? Todos vocês, meus amigos, já tinham livros publicados quando os conheci, e sempre me souberam como escritor — porque sempre me apresentei assim. Acredito que essa distinção só exista numa perspectiva externa, pro mundo. Outro dia um amigo paulista me disse que para as pessoas de fora eu sempre fui visto como um crítico. Acho engraçado isso. O trabalho de crítica também é escrever. Publicar um livro é só uma das metades. De qualquer forma, em alguns momentos tive muito medo da crítica, mas passou, o livro está aí, nas ruas, sendo lido, eu vou fazer o quê? Escrever mais, suponho.
Marcelo Moutinho — Entre as muitas questões trazidas pelos contos do livro, está a da sexualidade reprimida, que de certa forma se relaciona com sua experiência recente, assumindo-se como uma pessoa não binária. Tratar desse assunto foi parte de um projeto ou consequência de seu processo de autoconhecimento?
Mateus Baldi — Consequência. Absoluta. Enquanto eu escrevia, não tinha muita noção do que se passava fora de mim, ou seja, que à medida em que essas histórias evoluíam, eu também ia evoluindo e me descobrindo. Simplesmente as escrevia e depois aguardava. Como disse antes, a prova de gráfica foi fundamental. Li o livro e entendi não só ele como um objeto em si, mas também eu — como um objetivo em mim. Os assuntos de gênero estão ali, e acredito que sejam parte predominante no livro, porque o eram em mim, mesmo quando eu não sabia. E isso é muito — é tudo.
Marcelo Moutinho — Outra marca das histórias, como bem ressaltou o jornalista André Aguiar em uma resenha, é o anticlímax. No recorte das cenas urbanas, não é o “grande acontecimento” que desestrutura as personagens, e sim pequenas agruras que talvez passem despercebidas aos olhos dos outros. Você acha que nossos abismos, assim como o diabo do provérbio alemão, moram nos detalhes?
Mateus Baldi — Sem dúvida. Me interessa, como ficcionista, pensar a cidade pela lógica dos corpos, como essas perspectivas se atravessam num mesmo espaço, como a pessoa que se equilibra no vagão junto contigo também tem suas agruras, seus dilemas, e que isso, em nenhuma medida, é — e poderia ser — menor do que as suas agruras, do que a sua vida. Numa guerra, me interessa muito mais a vida de cada soldado do que quem venceu. Todo o resto é estatística, e as estatísticas não me importam — eu sou de Humanas.
Marcelo Moutinho — Evoco a epígrafe de Paulo Henriques Britto para te perguntar: “Que paz será possível nessa selva”?
Mateus Baldi — Não sei. E desconfio que não quero. Acho que instituí uma selva à espera de que as pessoas a perseguissem, tentassem sair, ou ao menos fizessem o que lhes desse na telha. Não é minha tarefa como ficcionista explicar o que está no livro, acho que coloco o jogo, as cartas, e deixo as pessoas curtirem, se jogarem, se desesperarem. A paz, de qualquer forma, não existe em selva nenhuma. É uma ilusão. Mas talvez aqui exista — se você procurar na sombra, bem no cantinho.
Marcelo Moutinho é escritor e mestrando em Bens Culturais e Projetos Sociais no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. É autor de A lua na caixa d’água (Malê, 2021) e Rua de dentro (Record, 2020), entre outros títulos.
Imagem: fotografia de Marina Martins.
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