A um palmo da cama e dois do guarda-roupa, eu primeiro botei a planta. Uma verde, ordinária, dessas que se compra em supermercado. Sentei à sua frente — o corpo desordenado de quem não costuma operar no baixo plano da existência — e observei. Achei bonito. Era só.
Os outros cantos da casa, não muitos, permaneciam como sempre estiveram: funcionais, o máximo que eu, até então, poderia exigir dos móveis e eletrônicos domesticados do meu sala-cozinha-quarto. Quero dizer que a cama seguia sendo o lugar onde se dormia, a pia onde se lavava, o fogão onde se cozinhava, a privada onde se esvaziava e a porta onde se passava. Não que seja nada além de evidente o pouco que eu relatei até aqui, mas ocorre de as evidências terem passado a indicar tantos e inusitados significados, depois da quarentena, que o óbvio já não existe mais no reduzido repertório remanescente em meu histórico de relacionamento com o mundo.
Ainda não era quarentena quando eu comprei a jiboia verde. Não era, mas eu deduzi que chegava galopante a hora, deduzi com exatos cinco dias de antecedência. Então, antes de qualquer movimento dos Homens de Negócio e de Estado, catei uma mochila, botei uma sacola dentro pra caber mais coisa, e marchei pro abastecedouro de gente.
Na volta do supermercado, além de suprimentos alimentícios suficientes para duas semanas de uma vida solteira, e apesar do incômodo de carregá-la embaixo do braço, trouxe comigo a jiboia. Só me dei conta do nome inusitado depois de chegar em casa, não tinha em absoluto cara de cobra; não era rasteira, nem tinha proporções gigantescas, ou matava suas vítimas roubando-lhes o ar. Esta descrição, inclusive, coincidia não com o aspecto e a vida da planta que eu tinha acabado de comprar, mas com uma nova espécie de animal peçonhento ainda mais perigosa.
Prometi que compraria uma planta pra ter de quem cuidar além de mim mesma, caso eu também ficasse doente. Levantar, todos os dias, botar água nela e colocar pra tomar sol na beira da janela, eu acreditava, me faria resistir à doença, caso se abatesse logo sobre mim. Bem, eu desconhecia o mal… e desconhecia a mim. Ah, eu também desconhecia a planta. O que eu achava de mim é que sucumbiria a qualquer indisposição por falta de apego à vida. Do mal, que passaria logo. Da planta, nada.
O isolamento social fez as pessoas criarem rotinas alternativas, um pouco, ou de todo, diferentes das que levavam antes. Mesmo eu, que já trabalhava majoritariamente de casa e não nutria hábitos restritivos, adaptei os meus já poucos costumes àquela situação de exceção: entre o café preto de manhã e a taça de vinho à noite, inseri os cuidados com a jiboia e — aqui entra o elemento inusitado, até para mim, naquele momento — um tempo de contemplação diária à criatura.
Alguns poucos segundos, da primeira vez, que foram em silêncio se esticando nas vezes conseguintes até tornarem-se minutos. Coloquei ali, entre a cama e o guarda-roupa, observei pra ver se estava bacana naquele canto, lugar de passagem . Estava, mas bacana talvez não fosse a palavra.
No dia seguinte, me flagrei capturada pela imagem dela outra vez e com mais intensidade. O retrato era curioso: eu ali, de lado, interrompida no meio do caminho em direção à área de serviço, o pescoço retorcido olhando pro canto, as roupas sujas constritas nos braços para não caírem, “até que é bonita”, pensei. Noutra tarde, tomava o café de frente pra ela e não sabia como tinha ido parar lá. Fosse encanto, feitiço ou distração, tanto fazia, o que fazia sim diferença era a força gravitacional, cada vez maior, operando naquele lugar. Dado a insistência dessas interrupções magnéticas no tempo árido do confinamento, assumi não fazer mal me deter só uns minutos, para encará-la sem torcicolo, quando desse vontade. Tempo, eu tinha.
Assim foi. 2, 3, 10, ou 15 minutos por dia e os dias passavam, todos os dias.
O que não passava era a peste. Convencionei chamar assim porque este apelido carinhoso me parecia muito mais próximo à realidade de todos nós do que as nomenclaturas burocráticas dos jornais. Pandemia era outra forma de chamá-la, mas essa tampouco refletia a intimidade e a intensidade da convivência com a doença. Através das notícias, do medo, da reclusão, nos tornávamos próximos demais dela, numa espécie vertigem cega, salto involuntário no abismo.
As notícias tampouco passavam. Elas, inclusive, se multiplicavam epidemiologicamente: dados, especulações, previsões, alguma realidade, vez ou outra. Entendi que a relação entre tempo de vida e tempo de noticiário era inversamente proporcional e, aos poucos, fui me dedicando menos e menos às telas contaminadas de novas descobertas. Era grave. E isso é tudo o que alguém pode saber em momentos como este.
Além do que, quanto menos eu me dedicava aos jornais, mais sobrava de mim para o canto da jiboia. Para o canto, sim, porque uma hora deixou de ser a planta, eu entendi, e passou a ser o canto. Aqueles 60 cm2 de latifúndio imobiliário para o qual eu passava quase uma hora diária olhando — alguns convencionam chamar de parede — enquadravam o espaço, e o tempo, mais importantes de todo o meu apartamento, e da minha existência. Existência esta que se entendia então resumida ao seu lugar de confinamento e suas vicissitudes, quase de todo protegido de zumbido externos.
Aí compreendi que o canto da jiboia não era mais a jiboia, só o canto, e a tirei de lá. Os meus minutos diários de contemplação eu gastava só na frente da parede. Falando assim não se diz nada, parede; parede coisa alguma, parede é nome de viga estruturante, material de sustentação, alicerce, firmamento… mas aquele espaço pra mim não sustentava coisa alguma, nem erguia, não suportava nada, pelo contrário: desestruturava tudo que havia de mais fundante.
No resto do apartamento, os móveis e eletrônicos também tinham se rebelado contra a funcionalidade doméstica. A cama já não era mais espaço de dormir e sim de sonhar — sonho bom e sonho ruim, diga-se de passagem; a pia tinha virado lugar de expiação dos pecados contaminosos presentes no delito, tão raro, da saída de casa; a porta não dava passagem, mas servia como barreira de contenção; a janela — pobre — se resumia à palco de expectativas frustradas. Havia pouco que ratificasse a força de seu significado primordial e não vertesse seu conteúdo em novas formas.
Meia hora, uma hora, duas ou mais ali, parada, olhando. Os trabalhos entravam pouco. Os noticiários não faziam falta. Comia só o necessário e o necessário se empalidecia. Reduzida ao meu próprio olhar, ao branco, à ausência da planta, num ritmo próprio que se reafirmava, diário, numa prosódia cativa, numa harmonia retificada, e, num desses nadas, ouvi o choro do vizinho.
Despertei e corri para o olho mágico. Eu não costumava ouvir os vizinhos, ver os vizinhos, quase me esquecia de que tinha vizinhos. Através da porta, observei a equipe paramentada que entrava na casa daquele homem cuja história eu não conhecia e cujo nome eu duvidava saber. Grudei a testa na porta e não tirei até que os astronautas do apocalipse saíssem de lá. Com a lentidão adequada dos que prestam serviços públicos, eles carregaram apartamento afora um saco preto robusto. O choro do homem era curto e me parecia resignado, se ouvia o som da sua respiração, mas não o barulho incômodo dos gemidos da indignação.
Houve um diálogo entre eles do qual eu pude depreender uma negativa muito firme e reiterada: ele não poderia acompanhar, sob hipótese alguma, o corpo dela. Ficou ali até o saco preto sumir dentro do elevador e, quando já não o ouvia mais descer, seu par de pernas se voltou para a porta, com olhos cerrados no chão e as mãos nuca, segurando a cabeça ao corpo. Antes de entrar, ele virou o olhar em minha direção. Eu, deste lado do umbral, tomei um susto; pois poderia jurar que ele estava me vendo.
Levei um tempo na porta, de costas para o olho mágico. Quando consegui levantar a cabeça, caminhei, sem pressa, até o espelho do banheiro — fazia tanto tempo que não via a minha imagem — e me deixei olhar: as bochechas estavam bem fundas, os olhos mais claros e mais redondos, os lábios ressecados pareciam desaparecer no rosto, o rosto parecia desaparecer sob os cabelos que pendiam sujos e sem serventia.
Não era difícil saber o que fazer.
Puxei um rabo de cavalo atrás da cabeça, que segurei com a mão esquerda; com a direita, abri a segunda gaveta do armário, agarrei a tesoura e, num único movimento sem hesitação, cortei todo o cabelo preso entre os dedos. Deixei o mais curto que pude, deixei a imagem do espelho compreender o que acontecia com a imagem da mulher à sua frente e, depois, passei devagar a gilete em toda a cabeça, joguei também água sobre ela, para que a pele, bonita e fresca, brilhasse.
Assim, claro, assim estava melhor. Assim e só assim, em tempos dormentes de estiagem, eu me pareceria mais com a jiboia que havia me tornado.
Natália Zuccala é escritora, dramaturga e professora. Formada em Letras pela Universidade de São Paulo, lançou seu primeiro livro ‘Todo mundo quer ver o morto’ (Patuá, 2017).
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