“A memória como um lugar, como um prédio, uma série de colunas, cornijas, portais. O corpo no interior da mente, como se nos movimentássemos lá dentro, indo de um lugar para outro, e o som de nossos passos, enquanto andamos, se deslocam de um lugar para outro.” — Paul Auster, ‘A invenção da solidão‘
Quando certa manhã C. acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se metamorfoseado num fantasma. Não é exatamente assim que começa o filme Sombras da vida (2017), escrito e dirigido por David Lowery, mas em seu cerne também está um personagem que é repentinamente atravessado por uma mudança abrupta e definitiva, que o obriga a ajustar-se a uma nova forma de existência.
Ao perceber-se morto após um acidente de carro nos primeiros minutos do filme, o fantasma do músico C. dirige-se para a casa que dividia com a esposa, M. A partir daí, o fantasma atravessa seus dias em uma espécie de existência suspensa, monomaníaca, preso ao local onde, supomos, tenham se passado os melhores dias de sua vida. E assim transcorre a maior parte do filme: época após época, acompanhamos ao fantasma de C. observar todas as mudanças que ocorrem ao seu redor, enquanto ele mesmo permanece praticamente imóvel, confinado à sua antiga casa, assistindo às testemunhas de sua passagem pela vida o deixarem para trás. Sua prisão não se dá pela impossibilidade de mover-se para longe dali, claro, mas porque, ainda que não esteja preso fisicamente à casa, C. está preso à vida que ali viveu.
O filme parece propor uma reflexão sobre a confluência entre tempo e espaço, onde a casa de C. e M. passa a ser o centro do universo particular da existência do personagem principal. Dentro deste cosmo, enquanto o espaço permanece fixo, o tempo dá saltos para o futuro e para o passado, onde a relevância subjetiva dos gestos dita a duração que estes ocuparão em câmera. Assim, momentos banais para o espectador – como uma cena onde o casal está apenas deitado na cama, se preparando para dormir – têm sua duração estendida, enquanto décadas e até mesmo séculos de história se passam tão rapidamente quanto um abaixar ou levantar da cabeça do fantasma. É como se a audiência estivesse assistindo a uma edição da vida de C. feita pelo próprio personagem. Os momentos que importam, de sua perspectiva pessoal, se alongam por minutos em cena — às vezes até desconfortavelmente — e todo o resto parece passar-se em fast forward.
A ideia da percepção do tempo através de um espaço fixo é também o tema central da brilhante graphic novel Aqui, do autor Richard McGuire. A partir de um único cenário — a sala de uma casa — acompanhamos o tempo desdobrar-se desde 3.000.500.000 a.C. até 22.175 d.C. Com recursos mais limitados do que o audiovisual oferece, McGuire consegue, de maneira impressionante, registrar a percepção relativa do tempo ao sobrepor diferentes épocas em um mesmo espaço por meio de recortes dentro das próprias cenas. Estas sobreposições são feitas de forma lenta e gradual, em uma espécie de treinamento do olhar do leitor, até que sejamos capazes de acompanhar quase vinte marcas temporais distintas dentro da sala da casa escolhida como cenário pelo autor.
Na graphic novel, o autor deixa a construção de sentido quase inteiramente nas mãos do leitor, uma vez que não há nenhuma espécie de narração ou comentário que guie a percepção de quem está lendo para uma ou outra conclusão sobre a passagem do tempo ou sobre quanto tempo e quantas vidas cabem em um espaço físico. Tudo ao que somos apresentados são recortes, cenas, tempo presente, tempo passado, dezenas de momentos, tanto prosaicos quanto grandiosos. A obra pode ser lida para frente e para trás, sua construção não é exatamente linear. Talvez possa-se dizer o mesmo sobre o tempo.
Em um esforço similar, o diretor David Lowery constrói uma narrativa sutil e que também não subestima a audiência em Sombras da vida, não conduzindo o espectador além do necessário. O filme conta com pouquíssimos diálogos e não se sabe quase nada sobre o personagem principal ou mesmo sobre o relacionamento central do filme. E aqui cabe a menção a mais uma interpretação incrível de Rooney Mara, que transborda complexidade no luto quieto e contido de M., especialmente na cena marcante em que a personagem devora uma torta inteira de chocolate em cena por longos e dolorosos 4 minutos.
Da mesma forma, o fantasma interpretado por Casey Affleck consegue uma riqueza de nuances mesmo sendo representado apenas pelo ator coberto de um lençol branco com dois furos para os olhos. Esta representação, que pode parecer infantil e desajustada à princípio, ganha diferentes dimensões à medida em que o filme avança. Por não ter falas nem rosto, o músico C. e a pessoa que ele foi em vida parece suprimida e o fantasma torna-se uma tela em branco aberta às projeções do espectador, como se o processo de desaparecimento do protagonista, que ocorre dentro da tela, fluísse também para fora dela e a audiência, de certa forma, gradativamente também se esquecesse de sua existência.
Em um dos raros diálogos do filme, que não é falado, mas sim exibido na tela através de legendas, C. encontra outro fantasma, que diz estar esperando alguém, mas não se lembrar mais quem. Esses processos de esquecimento, de desaparecimento enquanto memória e, paradoxalmente, de apego, aparecem recorrentemente na história. Lá pelo meio do filme, vemos a casa onde moraram M. e C. ser ocupada por um grupo de amigos hipsters em uma festa. Em certo ponto do evento, um homem (interpretado pelo músico Will Oldham) faz um monólogo niilista sobre a vasta insignificância da vida humana no decorrer do tempo e a incapacidade de deixarmos marcas reais nele. O músico (em mais uma rara escolha de cena alongada) passa minutos e minutos discorrendo sobre como mesmo a mais genial das contribuições humanas será esquecida mais cedo ou mais tarde, e como é ineficaz a mera tentativa em deixar qualquer espécie de legado às gerações posteriores.
O filme em si curiosamente parece corroborar e refutar esta proposta ao mesmo tempo. Apesar de explorar incessantemente a grandiosidade do universo para muito além da minúscula vida de C. e a amplitude do tempo em relação ao ínfimo tempo do músico na terra, as banalidades e idiossincrasias da vida é que são a verdadeira chave de sentido aqui. Estamos presos a um tempo curtíssimo, mas ele é, afinal, tudo o que temos e engloba todo o nosso tempo. De tal forma que, tal qual C., seríamos capazes de renunciar a uma eternidade vagando pelo tempo e espaço para atravessá-la cutucando um buraco onde uma pessoa querida nos deixou um bilhete enquanto éramos vivos.
O efeito final da graphic novel Aqui é bastante parecido com o atingido por Lowery em Sombras da vida: a percepção de que o tempo é, afinal de contas, uma espécie de ilusão coletiva, extremamente relativo e individual. O tempo de nossas vidas, enquanto definitivamente insignificante dentro de uma percepção mais ampla sobre o universo, ainda é tudo o que temos, e ele é atravessado, sempre, por tudo que é absolutamente banal. E, se o banal não nos é suficiente, esta centelha no tempo que chamamos de vida pode ser, para muitos de nós, muito, muito longa.
Cintia Nogueira é professora e editora.
Imagem: cena de Sombras da vida (A ghost story, 2017).
0 Comments