Uma breve pesquisa sobre o que as pessoas querem
Nesse período de distanciamento social, além de aprimorar as habilidades para lavar louça, iniciei uma pesquisa para meu futuro livro. O objetivo do estudo é buscar similaridades entre os filmes e livros que fizeram sucesso nos períodos pós-crises. Para isso, delimitei o humilde estudo sobre os principais vencedores do Oscar e do Nobel de Literatura nos anos de 1946 (2ª Guerra), 2002 (ataque às Torres Gêmeas) e 2009 (subprime). Escolhi os vencedores do Oscar porque acredito que a premiação faz um bom balanço entre os campeões de bilheteria e os filmes que capturam o espírito de uma época. A escolha do Nobel passa por similar caminho. Sei que a Academia Sueca não premia livros e, sim, o conjunto da obra dos autores. Contudo, vejo que os laureados pelo Nobel produziram obras que ecoaram nos debates da sociedade nos anos em que receberam o prêmio. De qualquer forma, alerto aqui que esse texto não se trata de um trabalho acadêmico. É, sim, um passeio no tempo com uma série de reflexões. Partiu?
Nossa primeira parada é no ano de 1946. Apesar do pavor propagado pelas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, o mundo respirava aliviado pelo fim da segunda grande guerra. O rastro de ruínas deixado pelo conflito, no entanto, não era nada inspirador. A reconstrução da Europa e do Japão prometiam muito trabalho e os garotos que lutaram na linha de frente voltavam para casa desnorteados pelos horrores que presenciaram. Nesse ano, Hermann Hesse foi laureado com o Nobel de Literatura. Entre as suas principais obras Demian (1917), Sidarta (1922) e O lobo da estepe (1927), três livros escritos sobre o impacto da primeira guerra e que tem como protagonistas homens atormentados que buscam por respostas.
Enquanto Hesse contava os dólares ganhos com o Nobel, The lost weekend se tornava o grande vencedor do Oscar de 1946. A produção do diretor Billy Wilder levou quatro estatuetas: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Ator. Assim como as principais obras de Hermann Hesse, The lost weekend retrata um homem atormentado. O protagonista Don Birman sonha ser escritor, mas sofre com um bloqueio criativo e começa a beber. A única meta de Don passa a ser obter dinheiro para seguir embriagado.
Deixemos o copo no balcão com Don Birman e voltemos a nossa máquina do tempo. Qualquer pessoa com mais de vinte e cinco anos tem na memória as cenas da manhã de 11 de setembro de 2001. Os canais de notícia transmitiam ao vivo a torre atingida por um avião. Muita fumaça saía do prédio. Jornalistas especulavam se foi um acidente ou um atentado terrorista quando o segundo avião surgiu em cena e acabou com qualquer dúvida. O boeing fez uma curva brusca para acertar em cheio a segunda torre. Milhões de pessoas assistiram ao vivo os prédios ícones do capitalismo norte-americano desmoronarem. Uma tragédia que deixou mais de dois mil mortos e uma grande ferida aberta.
No ano seguinte, 2002, o grande vencedor do Oscar foi Uma mente brilhante, dirigido por Ron Howard. O filme venceu nas categorias de Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Diretor e Melhor Atriz Coadjuvante, com Jennifer Connelly. No filme, Russel Crowe interpreta o matemático John Nash, que contribuiu muito para o desenvolvimento da Teoria dos Jogos. Durante a guerra fria, Nash é chamado para fazer um trabalho em criptografia para o governo dos Estados Unidos. Após esse episódio, Nash passa a ser atormentado por delírios e alucinações. Então começa uma caminhada para reconstruir a ponte entre o real e o imaginário.
Alguns meses após ao Oscar, a Academia Sueca agraciou o húngaro Imre Kertész com o Nobel de Literatura. Kertész foi um sobrevivente do holocausto. Em sua principal obra, Sem destino, Kertész usa a sua traumática experiência para contar a luta de Köves György, um rapaz de quinze anos para resistir aos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, Buchenwald e Zeitz. No entanto, Köves György narra os acontecimentos sem dramatismo, nem julgamentos. Os episódios são encarados como experiências de alguém que deseja seguir em frente.
Bem-vindo a bordo novamente da nossa máquina do tempo. Próxima parada, julho de 2007. Ao contrário da Segunda Grande Guerra e do 11 de setembro, a crise do subprime não começou com a perda de vidas humanas. Dessa vez, o desastre começou com a morte de um banco. Com mais de 150 anos, o Lehman Brothers era um dos pilares de Wall Street. Nos últimos anos de existência, porém, retiraram o concreto do miolo desse pilar e injetaram espuma de barbear. Essa é uma forma elegante de dizer que o Lehman Brothers, assim como tantos outros bancos, compraram um volume imenso de títulos imobiliários sem lastro. Culpa do Lehman Brothers? Não. Culpa da ganância do mercado financeiro de uma forma geral. Só uma análise extremamente detalhada conseguiria perceber o quão vazio eram esses complexos títulos. Dessa forma o próprio mercado se envenenou. Bilionários sangraram suas poupanças, porém o grande efeito veio para os trabalhadores comuns. Milhões perderam empregos e casas ao redor do planeta.
A crise iniciada em 2007 teve eco nos anos seguintes. Exigiu que mesmo os governos mais liberais abrissem o bolso e adotassem posturas Keynesianas para salvarem suas economias. A população, enquanto isso, se virou como podia. Toda essa criatividade na luta para sobreviver é retratada no incrível filme Slumdog millionaire (Quem quer ser um milionário), do diretor Danny Boile. No Oscar de 2009, o filme levou oito estatuetas. Slumdog millionaire conta a história de um adolescente de Mumbai que remonta os fatos da sua vida em meio à pobreza depois de ser acusado de trair a versão indiana do programa de televisão “Quem quer ser um milionário?”.
Entre os indicados ao Oscar de 2009, estão excelentes filmes como Doubt e Wall-E. Há um filme, porém, pouco conhecido que merece atenção quando buscamos narrativas sobre momentos de crise: Frozen River, indicado como melhor roteiro original. Escrito e dirigido pela diretora Courtney Hunt, Frozen River conta a história de duas mulheres da fronteira norte dos Estados Unidos que se envolvem com o tráfico de emigrantes para sustentarem seus filhos.
Em 2009, o Nobel de Literatura foi para uma das minhas autoras preferidas, Herta Muller. A Academia dedicou o prêmio a Muller por “retratar o universo dos desapossados”. Herta Muller cresceu na Romênia, em um povoado de minoria que falava alemão. A violência que seu povo sofreu durante o regime comunista é o principal tema da obra de Herta, na qual destaco o livro de contos Depressões.
A nossa viagem ao tempo está chegando ao fim. De volta a 2020, ainda pouco sabemos como será o mundo pós-pandemia. O que sei, após a minha pequena pesquisa sobre esses e outros títulos, é que, em momentos pós-crise, há uma grande tendência do público e da crítica em valorizarem histórias de personagens lutando para sobreviver em mundos devastados. Nesses ambientes, solidariedade, amor, esperança são temas que se destacam.
Observei também que em períodos pré-crises, no entanto, há a busca por narrativas com forte crítica ao sistema que esmaga o indivíduo. Em Clube da luta (1999), por exemplo, o protagonista conclui seu plano anti-sistema implodindo prédios. Seria inconcebível essa cena de o Clube da luta em 2002, enquanto a sociedade americana ainda buscava corpos embaixo dos escombros do WTC. Se olharmos para os grandes sucessos recentes, percebemos o mesmo movimento. Em 2019, Bacurau, Coringa e Parasita incendiaram os públicos nos cinemas. Esses filmes vingaram nas telas populações inteiras esmagadas pela desigualdade social e injustiça. Frente à perplexidade causada pelo Covid-19 com as mortes e o distanciamento social, a violência desses filmes, hoje, não reconforta. Queremos um pouco de ar, abraços e tempos melhores.
Mauro Paz é autor dos livros ‘Por razões desconhecidas’ (IELRS, 2012), ‘São Paulo – CidadExpressa’ (Editora Patuá, 2014); e ‘Entre lembrar e esquecer’ (Editora Patuá, 2018) e organizador da antologia ‘Contos de quarentena’ (Amazon, 2020), que reúne alguns principais contistas da literatura contemporânea brasileira.
Imagem: cena de ‘Bacurau’ (2019), de Kléber Mendonça.
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