O isolamento não é um problema
para quem entende que o isolamento é o objetivo.
Don Delillo
Um.
Há um mês, abri o Instagram e havia um post de Letícia Novaes, a Letrux, com um teaser da primeira música de seu disco novo. “Todo corpo tem água, lágrima, suor e gozo”, dizia a letra de “Déja-vu frenesi”. “Todo corpo tem água, lágrima, suor e porra, ou a gente chora ou a gente sua ou a gente goza, só não pode magoar”.
Deviam fazer um cartaz, pensei na hora, escrito “Só não pode magoar”. Também pensei que a cantora me dá, constantemente, um sentimento de vertigem. Foi assim com Letrux em noite de climão, primeiro disco da persona Letrux, estava sendo assim com um teaser de trinta segundos da primeira música do novo disco – será com o disco inteiro, apostei.
Não estava errado.
Dois.
Alguns sentimentos que Letícia Novaes, seu livro Zaralha, sua antiga banda Letuce e sua persona Letrux me causam: frenesi, vertigem, riso, lágrima, leitura-absolutamente-indispensável-do-zeitgeist, coceirinha debaixo da barriga, entortada nos olhos, bolo de banana, melancolia, jogar-tudo-pro-alto-e-fugir, pânico, angústia, gargalhada-geral-do-meio-dia-até-o-anoitecer.
Três.
Letrux aos prantos foi lançado dia 13 de março, uma sexta-feira, o que diz muito sobre os planos de Letícia Novaes e o conteúdo que se insere nas — de novo — 13 faixas do álbum.
Passei a noite inteira ouvindo: um dia inteiro ouvindo: um fim de semana: quase uma semana escutando o mesmo disco. Isso não acontecia desde que descobri o Transa, do Caetano, e o Houses of the holy, do Led Zeppelin — discos que também falavam comigo, com certa pessoa que eu fui e ainda guardo dentro de mim, despertando algum carinho pela possibilidade de transgredir os limites do que é aceitável ou emocionalmente justo. Por exemplo: Caetano escrachando alguém em “Nostalgia” quando diz “the clothes that you wear could suit an old times baloon, you’re always nowhere but you’ll realize pretty soon that all that you care isn’t worth a twelve-bar tune“; Robert Plant cantando em “The Crunge”: “Ain’t gonna call me mr. Pitiful, no, I don’t need no respect from nobody, no“; Letrux cantando em “Dorme com essa”: “Pinta o cabelo, vai pra Lisboa, some da minha vista”.
É essa beleza quase cínica, essa aproximação escorregadia entre os discursos dos seres humanos, como quem diz quero-mas-não-muito, que me encanta num disco. Que me faz ir até o final para desvendar seus mistérios. Naquelas noites de março, ouvindo Letrux, era isso o que eu sentia: vontade de prosseguir.
Então veio o choro.
Quatro.
“Eu estou aos prantos e quem não está?”, canta Letrux na quarta faixa do disco. Se Letrux em noite de climão era o zeitgeist pós-2016, com um clima estranho no país e as pessoas buscando nas relações o que é possível sentir de prazer quando tudo desaba, Letrux aos prantos é a ressaca do neofascismo, o afundamento de todas as relações e nós ainda mais ensimesmados. Gosto de como Letícia explora outros idiomas — espanhol e inglês —, porque a mensagem do universo parece dizer que neste mundo intranquilo uma só língua não dá conta do recado — e nem mesmo uma persona, uma banda: Letícia já disse que gosta do radical Let em seu nome — do inglês, deixar ir, ou seja, ser quantas for possível.
Gosto do lamento galhofeiro em “El dia que no me quieras”, evocando um Gardel às avessas; a mística presente em “Vai brotar” e em “Salve Poseidon”; o baixo ao final de “Abalos sísmicos”, que me lembra a introdução de “Mal secreto”, especificamente em 3:18; o samba pop grudento em “Contanto até que”, e a levada algo malandra no final de “Cuidado, paixão”, dizendo “Não dei conta, vou chorar”. Essa sinceridade de virar para o ex-amor e dizer que não deu conta, ou então a exatidão na mensagem “Te amei com tudo e, entretanto, sobrou nada pra guardar, ao passo que o mundo é podre e você escolheu sumir, se você já tá cansada, ai, que abuso, faz-me rir “— cada um desses registros honestos me comove, me gruda à narrativa que Letícia construiu.
Daí eu ter me lembrado de Ottessa Moshfegh.
Cinco.
Fenômeno editorial, Meu ano de descanso e relaxamento (publicado pela editora Todavia, com tradução de Juliana Cunha) é uma crônica mordaz de certa sociedade. Apesar de estar situada vinte anos atrás, sua narrativa ressoa muito mais a melancolia de nossos tempos torporizados pela indústria farmacêutica. A protagonista é uma “versão jovem de Lauren Bacall após uma bebedeira” que, depois de receber uma herança, decide passar o ano 2000 dormindo à base de remédios. Visitada apenas por sua amiga Reva, a quem humilha impiedosamente, ela cria um retrato orgânico da Nova York pré-11 de setembro.
Apontada como uma das melhores vozes da literatura contemporânea, Ottessa Moshfegh abusa do humor depreciativo na tentativa de demolir a sociedade ocidental. Suas personagens são todas algo cartunescas, e a quantidade de cultura pop presente no livro só reforça o aspecto descompromissado – a começar pelo título. Não é preciso avançar muito nas 237 páginas para saber que o ano 2000 não terá descanso ou relaxamento. Por mais que os desejos da protagonista sejam sustentados pela dra. Tuttle – pior psiquiatra da história da literatura e também melhor personagem do livro –, a vida cuida de se fazer presente. Entre funerais desastrosos e artistas com fetiche por empalhamento, nada garante que a indústria farmacêutica dará conta de tanta realidade.
O que me leva à quarentena e aos nossos tempos.
Seis.
No livro Argonautas, Maggie Nelson questiona: “E se Beatriz Preciado tiver razão, e se agora vivemos um capitalismo pós-fordista, que Preciado chama de ‘era farmacopornográfica’, cujo principal recurso não é nada mais do que ‘os corpos insaciáveis das multidões – seus paus, clitóris, ânus, hormônios e sinapses neurossexuais […], nosso desejo, excitação, sexualidade, sedução e… prazer’?”
Em 2020, a realidade não é muito diferente disso. Ponto para Preciado — que inclusive escreveu brilhantemente sobre a quarentena e a ressignificação amorosa, em um artigo traduzido pela revista Quatro Cinco Um. Neste 2020, a indústria farmacêutica faz mais pela sociedade do que a indústria do entretenimento. Esse sentimento incutido em Meu ano de descanso e relaxamento se complementa no clima geral de Letrux aos prantos, mas nem precisava: basta olhar para o lado e conferir num Twitter da vida a quantidade de seres narcotizados diante da tela, a quantidade de remédios na mesinha de cabeceira para que seja possível também assistir aos seriados da Netflix. A babá química há muito superou a babá eletrônica.
Pela folhinha azul esperamos e pela tarja preta economizamos.
Sete.
Quisera eu conseguir ler minha época como fizeram Moshfegh e Letrux, as duas com tantas imagens fortes apesar das palavras, da música. Porque vai além do simples exercício de juntar meia-dúzia de referências num caldeirão e produzir uma obra de arte; antes, é preciso ter um olhar de águia para o mundo à sua volta, conseguir afundar no próprio delírio e sair pronto para devolver a esse mesmo mundo alguma coisa que resista ao impulso das fraturas.
Olhem ao redor: já está tudo partido.
Mateus Baldi é jornalista, escritor e criador da plataforma Resenha de Bolso, voltado para a crítica de literatura contemporânea. Colabora com Época e O Estado de S. Paulo, entre outros veículos.
Imagem: Letrux/Ana Alexandrino
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