Tatiana Faia nasceu em Portugal, em 1986. Autora de dois livros de poemas — Lugano (2011) e Teatro de rua (2013) — e de um livro de contos — São Luís dos Portugueses em Chamas (2016) —, concluiu seu doutorado em Literatura Grega Antiga com uma tese sobre a Ilíada e os personagens homéricos. Atualmente, vive e trabalha em Oxford, na Inglaterra.
Faia também escreve ensaios, resenhas e faz traduções. Ao lado de José Pedro Moreira e de André Simões, editou a revista Ítaca: Cadernos de Ideias, Textos & Imagens (2009-2011), ainda em Portugal. Hoje, é uma das frentes da ótima Enfermaria 6, editora portuguesa sobre a qual falaremos adiante. O nome é uma homenagem ao conto Enfermaria nº 6, de Tchekov.
Tivemos uma longa conversa com Faia sobre o eco da Antiguidade no mundo contemporâneo. Mais justo do que falar em eco parece ser pensar em certa atemporalidade de alguns elementos do Mundo Antigo, o que garante que sua presença resista, em alguma medida, a inúmeras transformações socioculturais, atravessando períodos históricos tão diferentes: “As preocupações de Aquiles são-nos muito próximas, de alguma forma quase pós-modernas. Quando ele pergunta, no ‘Livro IX’, quem e como alguém teria o direito a pôr um preço na vida dele, esse é um momento-chave ainda hoje. Nós compramos e vendemos partes da nossa vida todos os dias, é muito difícil escapar a essa regra do jogo”, comenta Faia.
Uma pequena observação: em razão da distância, a entrevista foi realizada por e-mail. Mantivemos a grafia das respostas de Faia tal qual ela as escreveu, seguindo as regras de ortografia e gramática de Portugal.
Deriva — Ao lado de três colegas, você criou uma editora de cultura, a Enfermaria 6. Como tem sido a experiência de manter um projeto independente?
Tatiana Faia — Gosto dessa definição de editora de cultura. Nunca tinha pensado no projecto da Enfermaria nesses termos, mas é muito isso. No início, havia três editores: eu, o José Pedro Moreira e o Paulo Rodrigues Ferreira, a que se juntou um pouco mais tarde um quarto elemento, o Victor Gonçalves. Todos temos formações um pouco diferentes, mas o trio do princípio já tinha em comum uma revista literária anterior, a Ítaca, o que significa também que já tínhamos uma experiência comum, que conhecíamos o modo de trabalhar uns dos outros. À parte isso, eu queria pensar que neste quarteto há uma corrente de amizade muito forte, isto talvez seja comum a muitos projectos criativos, que não é bem o mesmo que afinidade. Nós aprendemos com as ideias uns dos outros. Há em comum agora também uma história de diáspora. Eu e o Zé Pedro já estávamos em Inglaterra quando nos juntámos ao Paulo para começar a Enfermaria e o Paulo entretanto mudou-se para Nova Iorque, o que significa que o Victor é o único elemento do quarteto no lugar onde tudo isto começou, em Lisboa. A única condição inicial que existia — e que se mantém — é que nós queríamos que a Enfermaria fosse um espaço aberto, que permitisse acolher gente que estivesse a escrever coisas de que gostássemos. Eu diria que o maior desafio foi estabelecer um conjunto de colaboradores, descobrir autores de que gostássemos e que quiséssemos ver publicados.
Neste momento, a Enfermaria funciona como um lugar de expressão para autores sobretudo de Portugal e do Brasil e isso foi um pouco inesperado, porque não tínhamos previsto esse alcance geográfico, foi algo que aconteceu. Nós vemos cada texto que publicamos como uma reflexão ao mesmo tempo sobre e contra o quotidiano, e um pouco mais acidentalmente é também sobre esse amor original que nos juntou — o amor aos livros, à literatura, à escrita. Quando a Enfermaria começou, nós sentíamos que não havia assim tantos sites dedicados a divulgar a escrita de jovens autores portugueses. Então há também esse sentido de compromisso.
Há e tem havido sempre desafios. Cada livro impresso que fazemos é visto como um desafio — o desafio de um projecto criativo que implica uma viagem com um autor. Semanalmente, o maior desafio é decidir que textos vão ser publicados na semana que começa e enviar más notícias a alguns autores num domingo. É uma responsabilidade que alguém nos confie o seu trabalho e nós tentamos sempre responder do modo mais equilibrado e justo possível. Todos nos lembramos de como é começar a escrever e do desafio que é confiar o que escrevemos a um estranho. Há essa espécie de pacto entre nós e os nossos autores, que é um dos maiores privilégios (e um dos maiores desafios) do trabalho de um editor. É também a maior recompensa: quando um autor de que gostamos continua a voltar.
Deriva — Você concluiu seu doutorado com uma tese sobre os personagens homéricos. Como tem sido a experiência de estudar literatura clássica no mundo contemporâneo?
Tatiana Faia — Essa é uma boa pergunta. Há um blogue chamado Rogue Classicism que, na definição, se lê “rogueclassicism: 1. n. an abnormal state or condition resulting from the forced migration from a lengthy Classical education into a profoundly unClassical world” [algo como: um estado ou condição anormal que resulta da migração forçada de um longo ensino clássico a um mundo profundamente não-clássico], mas, na verdade, essa definição engana um pouco e talvez não seja mentira que nenhuma educação nos prepara para o que vem a seguir a ela. Mas se tem alguma que chega muito perto de fazer isso por nós, então tem de ser a de Clássicas. Clássicas é uma disciplina que permite estudar tudo o que é relevante nas humanidades numa só disciplina: poesia, literatura, filosofia, teatro, política, história, retórica … Em parte, é por isso que é tão importante preservar o acesso ao estudo das Clássicas em escolas não elitistas. Eu era uma adolescente mais ou menos repelente quando resolvi que ia ser uma classicista, mas eu não sabia bem o que ia fazer com isso ou como o ia fazer. Quando entrei no liceu, que em Portugal são os últimos três anos em que você se prepara para entrar na universidade, um desses liceus antigos e enormes de Lisboa, o Maria Amália Vaz de Carvalho, tive o privilégio de poder estudar latim e perceber que era isso mesmo o que eu queria fazer. É um pouco como acontece nos romances napolitanos da Elena Ferrante, quando você começa a estudar latim, para aprender a língua bem é necessário inventar uma disciplina de estudo que depois envolve tudo, é um método para muitas outras coisas. Para isso acontecer, você tem de querer amar aquela lógica. Eu acho que é por isso que é tão difícil começar a estudar línguas clássicas, mas é só o começo.
Tem uma personagem do David Simon, o detective Frank Pembleton da série Homicide (1993-1999), que teve uma educação jesuítica. Há um episódio em que ele fala qualquer coisa como que ter estudado com os jesuítas lhe tinha dado regras, e que as regras te lembram que você merece o amor dos outros, porque partilha com eles o contexto em que essas regras operam, isto é, esse código é como uma casa. Conhecer os clássicos, lê-los, viver com eles, tentar explicar o aqui e o agora com eles, mais do que ser uma classicista, fizeram um pouco por mim o que a educação jesuítica do Frank Pembleton fez por ele. Há nessa frase um reconhecimento que acontece um pouco para todo o mundo: de que há coisas definitivas que vão sempre ser um repositório do nosso amor, porque são um facto definitivo do nosso percurso. Então, as regras daquela gramática do latim, primeiro aprendidas a custo, ordenam o mundo, tornam-se uma estrutura para viver. Você aprende a respirar entre uma linha e outra de Virgílio, e é tomado de um entusiasmo entre o febril e o divertido ao entender a manha de um Cícero ou um César, digamos, no Em Defesa de Milão, ou no Sobre a Guerra das Gálias. Parece mentira, mas o rosa pulchra est com aquela concordância ali entre os dois nominativos abre uma perspectiva que é acerca da precisão das nossas ações. É só depois dessa introdução muito lógica e muito básica, espécie de átrio de entrada por onde cai a luz em casa romana antiga, que se chega a todo o resto. E quando você lê Virgílio, ou Cícero, ou César, você então entende que na verdade as pessoas são as mesmas independentemente dos séculos. Na minha formação, eu acho que esse foi o clique indispensável e que aconteceu muito cedo, o que é uma sorte.
Eu gostava tanto dos romanos que achei que nunca fosse ser outra coisa que não uma latinista, foi só na tese de mestrado que as primeiras falhas que iam quebrar esse vaso começaram a aparecer. A minha tese de mestrado foi sobre a comunidade judaica no império romano, sobre o relato de uma misteriosa e mais ou menos inexplicável perseguição contra os judeus que tem lugar em Alexandria no séc. I, escrita por um moralista austero e estudante da torah com quem eu sempre tive uma relação muito ambivalente, de amor e ódio, um judeu chamado Fílon de Alexandria. Fílon é um desses homens perfeitamente justos, mas rígidos, sem grande sentido de humor, que acidentalmente se viu preso na corte de Calígula (que lugar na história podia ser mais desafiante para um careta como Fílon?), quando os judeus o enviam a uma embaixada para tentar restaurar o estatuto da comunidade judaica na cidade, depois de os alexandrinos terem tentado dizimar a comunidade, imaginamos que como represália pela forma como os judeus muito depressa se colocaram ao lado dos romanos depois de estes terem subjugado o Egipto, criando tensões que não existiam entre as comunidades grega e judaica. Os tratados que ele escreveu sobre esse acontecimento, Contra a Flaco e Embaixada a Calígula, deixam a imagem de um homem aculturado, pragmático, com um domínio irrepreensível da cultura grega, mas há ali uma falha: ele não é nunca nem romano, nem grego, nem judeu, mas uma simbiose dos três. Há em Fílon a desarmonia de uma diáspora muito cosmopolita. De alguma forma essa é também uma questão muito contemporânea. Isso se vê em parágrafos sobre a piedade de Deus, em que Zeus e Apolo aparecem para dar uma perninha, sem que ele note que o resultado não é harmonioso. Os códigos culturais por que esse filósofo viveu a sua vida coexistiam numa tensão constante mas sem nunca se excluírem mutuamente. Adorar o deus de Isaac e Abraão e Jacob, observar o Sabbath, amar Platão e ir ao teatro ver um drama em que os deuses estão no centro da acção? Como resolver isso se tudo isso cabia num só dia? No mundo global, nós vivemos de um modo não muito diferente do de Fílon. Mas o lado mais sólido de Fílon é o lado judaico. Essa é a âncora. Ele de alguma forma é um dos primeiros cidadãos globais da história.
Quando eu me mudei para Oxford, achava que meu doutorado ia ser como meu mestrado: sobre Fílon. Mas eu sempre tinha querido escrever sobre Homero e sempre tinha tido o projecto que se tornou a minha tese de lado, um pouco como um pet project. Houve um dia em que eu entendi que não podia escrever sobre Fílon tendo Homero sempre na cabeça, simplesmente não ia resultar. É um salto de gigante muito para trás, do séc. I para o mundo da Grécia Arcaica, do mundo cosmopolita de intrigas palacianas de Fílon, para o mundo caótico, violento e um pouco claustrofóbico da Ilíada. Esse mundo sempre ameaçado pelo retinir de armas, com os soldados melancólicos, pensativos, violentamente apaixonados, com uma concentração de bronze de Homero, e as suas mulheres fiéis ou ambivalentes, mães, esposas, amantes da Ilíada. Eu queria muito estudar de perto essa divisão, o choque entre esse mundo doméstico e bélico, e como ele define os papéis e as personalidades dos que estão nele envolvidos. Em Homero cabe quase tudo, e na economia da Ilíada há muito pouco acerca de cada personagem, maior ou menor, que não seja vital.
Minha tese inicialmente era uma tentativa de explicar a história de uma coleção de leituras críticas sobre personagens homéricas, e com isso tentar entender por que é que a história da sua leitura no séc. XX sugere que as personagens homéricas eram tão básicas quando elas são tão complicadas. A minha discussão acontece num ponto de viragem, quando o debate académico está muito dividido entre esses dois extremos, com autores do início do século dizendo que elas são básicas e desinteressantes, e com uma re-apreciação a partir da década de 1970. Eu tentei olhar para Homero como Aristarco de Samotrácia dizia, Homeron ex Homerou saphenizein, explicar Homero a partir de Homero, fora desse debate que muitas vezes diz mais acerca das nossas expectativas sobre os textos do que sobre o que os textos dizem. Tentei escrever sobre Homero sem qualquer preconceito prévio (tanto quanto isso é possível), conhecendo os debates teóricos, mas tendo sempre em mente que o limite é o texto. A verdade é que Homero é para a literatura ocidental o que a teoria do Big Bang é para a origem do universo: uma explosão que aconteceu sem testemunhas directas. Nós não sabemos quem, nem como, nem onde ao certo a Ilíada foi escrita e se foi mesmo originalmente escrita e desconhecemos largamente o significado das convenções sociais implícitas no texto. Tudo isso serve para dizer que ler a Ilíada é uma experiência muito peculiar. Nesse sentido, nunca nenhuma leitura séria da Ilíada será a certa ou a errada. Escrever sobre Homero é então um exercício de especulação pura, o amor que se tem a esse texto é bem em sentido platónico, em parte porque o que esse texto é, está fora do tempo e do espaço, porque não sabemos de onde ele veio. É só quando se lê que se entende o quão próximos somos dessa explosão, sem a poder entender completamente.
O que aconteceu foi que a minha tese acabou a pertencer àquele tipo de estudo que explora as ligações entre o mundo contemporâneo e o antigo. As preocupações de Aquiles são-nos muito próximas, de alguma forma quase pós-modernas. Quando ele pergunta no “Livro IX” quem e como alguém teria o direito a pôr um preço na vida dele, esse é um momento-chave ainda hoje. Nós compramos e vendemos partes da nossa vida todos os dias, é muito difícil escapar a essa regra do jogo. É por esses acordos e concessões que vivemos. A maior parte das regras de uma sociedade servem para regular essas trocas, do público ao privado. E, no entanto, a melancolia de Aquiles, brutal e fundadora como expressada nesse discurso, é parte de uma separação dolorosa entre nós e as condições da nossa vida que na verdade serve para nos lembrar de quem somos e do quão única a nossa vida é, e no fundo, de quão mágico isso é. Talvez a coisa mais mágica e misteriosa acerca de estarmos vivos. Para os antigos, Homero era um mapa e um ponto de partida para a criatividade e para o pensamento. Em parte é isso que explica que ele seja ainda importante para nós, que ele siga sendo nosso, mutatis mutandis, como foi dos antigos. Eu acho que no fundo é essa a minha experiência com os clássicos.
Deriva — Você mencionou a autora italiana Elena Ferrante, que recentemente reacendeu o interesse popular pela cultura clássica. Ferrante parece acreditar, como você, que o Mundo Antigo não está assim tão distante. Como foi a experiência de lê-la, sendo você também uma classicista?
Tatiana Faia — As primeiras obras que eu li da Elena Ferrante foram as três primeiras novelas mais breves, e não me lembro ao certo de como as descobri. A isto deve ser acrescentado que embora existam traduções portuguesas, eu não tive acesso a elas, pelo que a minha leitura de Ferrante foi feita nas traduções de Ann Goldstein. É bem possível que tenha sido uma crónica do James Wood na New Yorker (2013) que me tenha feito ir ler Ferrante. Eu normalmente leio o que me interessa ler, sem obedecer muito a grandes pressões sobre o que está na moda, portanto não foi exactamente o James Wood ter escrito sobre Ferrante que me fez ir ler os livros, foi provavelmente mais o facto de ele citar uma entrevista dela em que diz que não ia promover os livros, porque já tinha feito o que tinha a fazer por eles, que tinha sido escrevê-los. Tanto escrever como ler são actividades solitárias e eu achei que havia algo nessa atitude que era sobre proteger essa solidão. Li as três primeiras novelas de seguida.
Os romances napolitanos eu lembro-me bem porque foi há muito menos tempo, o que quer dizer que deve ter havido um hiato de dois ou três anos entre eu ter lido as três primeiras obras e a tetralogia. Aconteceu que eu cheguei à tetralogia por ter travado uma dessas amizades que se fosse no masculino seria apelidada de bromance com uma italiana do sul, Antonella, e uma das primeiras conversas que tivémos foi sobre a Elena Ferrante. Ela, que tinha lido tudo na altura em que tinha saído em Itália, tinha uma memória fotográfica dos eventos da tetralogia e em duas ou três conversas eu entendi que tinha de ler aqueles quatro volumes. De alguma forma, isso é bem adequado, a crónica da amizade entre a Lila e a Lena para mim vai ficar sempre ligada à história da minha amizade com a Antonella. Eu li a tetralogia numa altura em que estava a viajar entre Oxford e Paris e aconteceu comigo aquilo que a maior parte dos leitores relata: os romances consumiram a minha atenção da mesma maneira que acontece na adolescência, o que alimenta a nossa atenção não é o espaço que abre para a nossa reflexão, mas a urgência do enredo. Há qualquer coisa de fundamental acerca do modo como vivemos hoje, da estrutura das nossas sociedades, que é capturada naquele enredo. Não é apenas o facto de que há um lado de bildungsroman [romance de formação] que é provavelmente universalmente apelativo, porque todos passamos por histórias que têm uma estrutura mais ou menos semelhante, infância, amigos, escola, primeiros amores, universidade, empregos. O que é talvez verdadeiramente inesperado e profundamente convincente é o quão decisiva a narrativa de uma mobilidade social ligada a uma determinada educação é para a personagem principal. Há por outro lado uma representação do lado mais violento da vida que é muito plausível, e que abole a simetria que se esperaria de uma leitura confortável. Essa incerteza é também indispensável e muito real, muito fiel à nossa experiência. A somar a isto, o modo como as relações que mantemos nos tornam quem somos. Se havia ainda uma forma épica que o romance pudesse assumir — afinal contra o que Georg Lukács tinha especulado na Teoria do Romance — então o tema tinha de ser esse e essa autora anónima a escrever fora do mundo anglo-saxónico, longe de cursos de escrita criativa e de grandes casas editoriais, conseguiu demonstrar que o romance ainda tem esse potencial épico. Isto, claro, diz-nos algumas coisas sobre o tempo que vivemos e refuta outras. Sobretudo diz-nos que escrever uma obra-prima num mundo onde a informação circula a cada vez mais velocidade vai continuar a ter um elemento de inesperado.
Sobre ler Ferrante com um olhar de classicista, a coisa que mais ficou comigo foi aquele ensaio mais ou menos falhado sobre Virgílio que continua a voltar durante os primeiros dois romances. Aquilo pode mesmo acontecer quando se tenta escrever sobre Virgílio. Há, claro, a outra implicação mais profunda, de que a própria Ferrante falava: toda a literatura tem algo de uma operação de inteligência colectiva, e a presença de uma ideia de Clássicas como disciplina e as alusões a textos clássicos acrescentam um peso que vai para lá do imediato. As alusões a Dido e Eneias são premonitórias, e relevantes para caracterização das personagens envolvidas. Há um livro de um autor chamado R. M. Lynne intitulado Further Voices in Vergil’s Aeneid (1987). É um ensaio sobre o valor da alusão em Virgílio, sobre como o texto da Eneida é o que está à superfície e as alusões internas e externas, históricas, culturais e literárias, que dão uma espessura à épica de Virgílio, que está para lá do óbvio, como Virgílio é e não é um poeta do seu tempo, mas também da tradição literária que o precede e do presente mais imediato, do que estava a acontecer em Roma quando ele saía à rua e de como a sua épica comenta sobre isso de uma forma oblíqua. A isso costuma chamar-se de valor universal ou intemporal da literatura, mas é uma maneira de confundir o tempo e testar a nossa empatia. Eu vejo as alusões aos clássicos em Ferrante, a própria presença das Clássicas enquanto disciplina, como um elemento que tem essa função.
Deriva — Em sua resenha crítica da tetralogia napolitana, você escreveu: “A comparação com Homero não é irresponsável, sobretudo se quisermos acreditar no hype (tanto comercial quanto crítico) que acompanhou a recepção da obra de Ferrante, e por que, como com Homero, há ao mesmo tempo qualquer coisa de profundamente convencional acerca da tetralogia, isto é, dependente das expectativas que nos são inspiradas por convenções supostas por géneros literários, e partindo dessas expectativas, à medida que atravessamos as linhas temáticas que separam os primeiros dois romances dos dois últimos (ou seja, quando passamos da crónica da juventude para a idade adulta), estas são estilhaçadas uma a uma (talvez por isso a maior parte dos leitores prefira os primeiros dois romances), o que em parte explica o lado profundamente inovador da tetralogia”. Como vê essa relação com Homero em relação ao embate tradição versus inovação na obra de Ferrante? Ainda nesse sentido, comente um pouco mais sobre esse estilhaçamento que vê acontecer nos dois últimos romances da tetralogia.
Tatiana Faia — Há um lado de ler Homero no século XXI que de alguma forma nos vai passar sempre ao lado. Primeiramente, porque o texto é performativo e foi pensado para uma performance, e depois porque nós lemos Homero depois do romantismo, que de um modo geral, enquanto movimento estético, colocou o autor no centro do enredo, o mito do génio no centro, sem o qual a obra não se explica. É na verdade revelador que um dos momentos seminais da teorização literária no século XX aconteça com um filósofo treinado em Clássicas que em parte implica uma reacção a essa ideia: Roland Barthes em A Morte do Autor (1968) propõe uma visão da literatura em que sugere que o autor é incidental ao texto, que um texto é uma rede de escrita e reescrita e alusão. Mas essa noção da morte do autor é artificial, demonstra-o o facto de poucos meses depois de eu ter escrito esse texto [a resenha crítica mencionada na pergunta], um jornalista ter exposto, com máximo mediatismo, a “identidade” de Elena Ferrante. Um dos poucos textos que de facto têm de ser lidos partindo do princípio que o seu autor pode muito bem não ter existido são a Ilíada e a Odisseia. Até se revelar a identidade de Elena Ferrante, nós, leitores, tínhamos de nos contentar com um princípio semelhante. Ela própria afirmou algures, em linha com Barthes e com o que (não) se sabe de Homero, que a literatura é uma operação de inteligência colectiva, que de alguma forma o anonimato dela prestava homenagem a essa ideia. Nesse sentido, não há um embate com a tradição, é mais o caso, bem mais plausível de resto, que não há inovação sem tradição. O estilo directo e visceral, que é um dos aspectos mais inovadores da tetralogia, eu vejo em parte como um resultado directo da vitalidade do diálogo do texto com a tradição clássica, mas também com outros períodos e outros subgéneros do romance, nomeadamente a forma do bildungsroman, mas até mesmo formas mais populares e mais kitsch. Podia haver (e creio que, propositadamente ou não, há) ali um jogo com um género de romance de cordel — na posição convencional que certas personagens ocupam no enredo, em certas cenas (sobretudo as que envolvem Nino), na inteligência quase implausível das duas personagens principais, na forma como certos papéis parecem a princípio definidos por convenções de género —, que é sabotado pela profundidade das personagens e pela volta que os acontecimentos levam. Isso permite-me fazer uma generalização em relação à transição entre os dois romances. Na tetralogia, assim como no modo como vivemos as nossas vidas, à medida que vamos ficando mais velhos, as narrativas das nossas vidas podem ir-se cristalizando, assumindo formas que apontam menos para a descoberta do potencial de futuros que a nossa história pode seguir e mais para um movimento que aponta para trás e que nos revela, impondo de algum modo uma leitura sobre quem somos. A separação afinal entre o que vamos ser e o que nos tornamos. Os últimos dois romances são muito sobre esse exercício, tentar descobrir ao certo e sem dúvida quem certas personagens são, e essas são também as personagens moralmente mais ambivalentes do enredo: Nino, Lila (um pouco como Páris e Helena na Ilíada), aquelas que se preocupam menos com o modo como as suas acções afectam os outros. Mas creio que é também menos sobre o que acontece e mais sobre provar o nosso próprio veneno, sobre admitir a catástrofe da nossa própria personalidade e continuar a viver. E esse exercício pode bem ser o que torna estes quatro livros tão relevantes, o que faz deles grande literatura.
Deriva — Para além de Ferrante, a Antiguidade Clássica continua ecoando na literatura contemporânea, como percebemos ao ler os contos de Alice Munro e David Foster Wallace, a obra de Christa Wolf e Clarice Lispector e os recentes romances Destinos e Fúrias (2015), de Lauren Groff, e Laços (2014), de Domenico Starnone. Que outros exemplos você recomendaria para quem se interessa por esse diálogo entre o mundo clássico e o contemporâneo?
Tatiana Faia — Isso é verdade e este é talvez o melhor ano para pensar sobre isso. Só nos últimos meses saíram quatro romances que são adaptações de tragédias gregas: Bright air black, de David Vann (uma versão da Medeia de Eurípides); House of Names, de Colm Tóibín (uma versão da Oresteia de Ésquilo); The Children of Jocasta, de Natalie Haynes (a partir do Édipo e da Antígona de Sófocles); Home Fire, de Kamila Shamsie (uma Antígona na época da Jihad, nomeado para o Booker Prize).
Essa contaminação dos clássicos na literatura contemporânea tem uma tradição longa e vital. Gota d’Água, de Chico Buarque, é uma Medeia. Duas das melhores transposições da Ilíada que conheço foram feitas no século XX e XXI, War Music (1981), de Christopher Logue, e Memorial (2011), de Alice Oswald. Há algo de muito vital e muito belo nas duas versões de Christa Wolf das vidas de Cassandra e Medeia, para simplificar muito, dois textos sobre vidas de mulheres, ou de como as figuras dos mitos clássicos podem ser centrais para um projecto feminista. A Morte de Virgílio (1938), de Hermann Broch, quase tudo o que Ismail Kadaré, um dos maiores escritores vivos, na minha opinião, emprestou ou adaptou dos clássicos, mas especialmente A Filha de Agamémnon (2003) e Twilight of the Eastern Gods (2014), duas novelas que atestam o modo como as histórias dos clássicos são importantes porque nos ajudam a pensar onde estamos moralmente em termos pessoais e políticos. Há depois a poesia de Anne Carson, para lá dos livros mais evidentes (Autobiography of Red, de 1998, sobre Gerion, de Estesícoro; Grief Lessons, quatro tragédias de Eurípides, de 2006, e An Oresteia, de 2009), eu podia sugerir aqui um livro de ensaios, talvez menos conhecido — The Economy of the Unlost (1999), que é sobre um poeta grego arcaico, Simónides de Ceos, Paul Celan e, como o título deixa adivinhar, economia. Como pôr um preço ao que não tem preço?, é a pergunta no cerne do livro.
Na literatura portuguesa, há os poemas de Sophia Andresen e eu aí destacaria talvez O Búzio de Cós (1997) e Ilhas (1989), dois livros povoados dos ecos de Ésquilo, Byron, Ricardo Reis e da Grécia, e o indispensável Aracne (2004), de António Franco Alexandre, vagamente a partir de Ovídio. Na poesia brasileira de agora, que eu conheça, e eu não conheço tão bem quanto gostaria, há Guilherme Gontijo Flores e Érico Nogueira, a fixação de Ricardo Domeneck com alguns clássicos e com clássicos via Kavafis, e Ratzara (2017), de Sergio Maciel.
Deriva — Em sua resenha crítica de Laços, de Starnone, você faz um paralelo entre Vanda, uma das personagens centrais do romance, e Olga, narradora de Dias de Abandono (2002), de Ferrante, aproximando ambas de Ésquilo, mais do que de Eurípides. Ao contrário de parte da crítica, que aposta na analogia com Medeia, para você, Vanda e Olga estariam mais perto de Clitemnestra. Você se importaria de nos contar um pouco mais sobre essa hipótese?
Tatiana Faia — Eu não acho que Medeia seja uma má analogia, mas é uma analogia incompleta, que pode fazer as pessoas pensarem puramente no lado privado e mais estereotipado da acção de Medeia: uma mulher tresloucada que mata os filhos para se vingar do marido. É verdade que tanto Dias de Abandono como Laços olham para o impacto de uma separação sobre toda uma família, incluindo o seu lado mais cruel, o modo como os filhos se tornam moeda de troca nesse processo. E é verdade que, tal como em Eurípides, há uma ênfase muito forte num estudo psicológico das mulheres no centro da acção. O ciclo da Oresteia, de Ésquilo, no entanto, tem outra preocupação que talvez não seja tão evidente em Eurípides, porque a decisão de Medeia se refere a uma acção imediata e restringida no tempo, o tempo de Medeia é apenas o tempo de Medeia e do casamento dela com Jasão, as decisões que ela toma ocorrem no imediato. De alguma forma, é o privado que tem implicações finais no lado público da vida destas personagens, a vingança contra Jasão vem de dentro de casa, é de certa forma um drama privado, de uma mulher estrangeira às margens de uma comunidade. Com o fim do casamento, os filhos de Jasão e Medeia perderiam o seu estatuto e ficariam à mercê da caridade de Jasão como filhos bastardos, o cálculo de Medeia é rápido, absoluto e desesperado. Matar os filhos, poupá-los de um destino de suplicantes, vingar-se de Jasão. Tanto o romance de Ferrante como o de Starnone têm no centro uma preocupação, e uma crítica mais geral, com a estrutura tradicional da família, que é herdeira de um modelo de gerações anteriores, o que tem um paralelo relevante com Ésquilo. A maldição da casa dos Atridas não começa com Agamemnon e Clitemnestra, começa bem antes. Há aqui um padrão de comportamentos que passam de geração em geração como uma espécie de maldição. As personagens das novelas de Ferrante e Starnone são herdeiras de uma certa ordem social e, com isso, de uma certa pressão histórica, que tem um impacto nas decisões que elas tomam em relação aos seus casamentos, isso é bastante óbvio em Starnone, em certos monólogos do marido e nas cartas da esposa, mas também no modo como essa estrutura no final prevalece. Essa noção de uma ordem vigente que é lançada no caos é também muito mais evidente em Ésquilo do que em Eurípides, sobretudo nas Suplicantes, onde Clitemnestra surge sozinha como matriarca da casa dos Atridas. Em Eurípides, tudo está em desordem desde o princípio. Esta ideia de uma mulher que se torna responsável por uma casa é bastante o que acontece tanto com Olga como com Vanda. Clitemnestra, como Olga e como Vanda, ainda que temporariamente, chega a tomar o poder sobre a casa dos Atridas na ausência de Agamémnon e depois da morte dele. Ela fracassa por causa de algo mais ancestral, que já estava inscrito na forma como ela se vinga de Agamémnon e até no crime cometido por Agamémnon. De certa forma, o mesmo é válido para Vanda. O marido parte semeando a desordem e regressa sem esperar que ela se vingue. Vanda fracassa porque, ao contrário de Medeia, não tem força para dissolver a ordem vigente. O mesmo é verdade para Olga, mas apenas parcialmente. Olga leva um longo tempo até entender que a ordem que o casamento dela supunha tinha chegado ao fim, que nenhuma vingança vai permitir uma expiação, que é preciso construir algo sobre isso ou morrer tentando. Mas o percurso de Olga é bem diferente do de Vanda e do de Clitemnestra. Olga acaba por triunfar onde Vanda falha e o preço que ela paga não é bem o de Medeia.
Deriva — Atualmente, você vive e trabalha em Oxford. Quais diferenças importantes consegue observar entre a cultura acadêmica e editorial em Portugal e na Inglaterra?
Tatiana Faia — Quando eu me mudei para Inglaterra, achava que as diferenças culturais não iam ser muito uma questão. Nós vivemos num mundo global, vestimos mais ou menos as mesmas roupas, bebemos os mesmos refrigerantes, as instituições que formam o tecido das nossas cidades são mais ou menos as mesmas. Essa era a minha teoria. A minha experiência foi muito diferente. Há diferenças culturais que só se expressam como uma espécie de resistência cuja causa nós não conseguimos identificar muito bem ao princípio. O meu filosofar preliminar é mais relevante para a minha experiência da cultura académica na Inglaterra do que da editorial. Embora haja, no mercado editorial, espaços para projectos independentes não muito diferentes da Enfermaria, e aí haja bastantes semelhanças, o mercado editorial português em comparação com o inglês é, para o melhor e para o pior, verdadeiramente amador. As grandes casas editoriais inglesas são, por regra, corporações com escritórios editoriais pelo mundo todo, com fornecedores localizados normalmente no sul da Ásia, com os principais escritórios normalmente sediados em dois continentes, normalmente um em Inglaterra e outro nos Estados Unidos, num esforço de coordenação constante. A primeira distinção mais óbvia é que o mercado da edição académica, por exemplo, é isso mesmo — um negócio que gera milhões de dólares em lucro, enquanto editoras académicas em Portugal são mais ou menos inexistentes, ou simplesmente não assumem, porque não podem assumir, uma expressão a essa escala. Isto para dizer que a dimensão simplesmente não é a mesma. No campo das editoras de ficção, o que se chama , parece-me que há mais oportunidades para um autor a escrever em língua inglesa de desenvolver o seu trabalho e isso tem também muito que ver com a estrutura das editoras. A figura do agente em Portugal é algo que ainda não existe ao certo, é tudo mais informal e no mundo anglo-saxónico essa figura pode ser instrumental na profissionalização de um escritor. Há algumas vantagens no modo como o mercado editorial português funciona, que se expressa na aura de uma certa pureza quase novecentista, no sentido que o autor é menos vulnerável às pressões do mercado editorial, o seu génio (ou a ilusão dele) pode ser cultivado numa certa solidão.
A isto acresce um fenómeno paralelo: em Portugal, as licenciaturas em escrita criativa não são ainda uma coisa, enquanto em Inglaterra, como nos Estados Unidos, têm cada vez uma expressão mais forte, e isso em Portugal, a meu ver, ajuda a um descentramento e a uma descentralização, a que continuem a surgir textos verdadeiramente inesperados. Isso é interessante porque, no seu pior, os cursos de escrita criativa estão a estandardizar a escrita nos países de expressão anglo-saxónica, muitas coisas vêm envolvidas por uma bela técnica, mas soam ao mesmo e não convencem. A máxima de Horácio talvez ainda se aplique em toda a sua extensão — poeta nascitur, non fit. Ou numa variação disso o que escreveu Sophia sobre poetas cultos, mas sem substância — quando eles escrevem, as ménades não dançam. Literatura é uma coisa que acontece alguns passos à frente da retórica. Embora possa haver uma contaminação útil, elas não se confundem.
Em relação à academia, eu tive a sorte de passar três anos como academic visitor num departamento de Clássicas que, pelo menos na minha experiência, que, no entanto, não é a regra geral, porque as Clássicas podem ser muito conservadoras em Inglaterra, é muito virado para fora, muito preocupado com estudar o modo como os clássicos podem ser usados como uma lente para ler o presente, para o entender melhor. Essa é uma diferença. A outra é que é uma academia com mais vitalidade, e muito mais internacional, com pessoas que vêm de todas as partes do mundo. Também por causa da escala, isso significa que há subdisciplinas dentro das clássicas, o que propicia um ambiente de escola e fomenta um debate constante. Em Portugal, um estudante de doutoramento sofre um pouco mais da solidão do corredor de longa distância. No seu pior, isto significa que se pode cultivar o mito do génio na solidão da própria cabeça e permanecer ignorante sem que ninguém nos atrapalhe. É fácil uma pessoa achar-se inteligente quando não há contraditório, quando não se é exposto às ideias dos outros e ao modo como elas se relacionam com as nossas. A desvantagem disso é que não se evolui enquanto académico e há coisas que nunca aprendemos sem a ajuda dos outros. Há uma tensão em discordar de alguém que é fundamental para se evoluir e em Portugal isso ainda se confunde em alguns casos com atacar a autoridade sagrada dos mestres. Nenhuma ideia é boa se não gerar diálogo e controvérsia. Mas quero pensar que também em Portugal essa tendência está a mudar.
Fabiane Secches é editora da Deriva, psicanalista e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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